Por que culpar o videogame pelos ataques de violência é uma falácia

Jogos frequentemente são associados a massacres como o de Suzano, mas o problema é muito mais embaixo

Emerson Alecrim
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• Atualizado há 11 meses
Jogador (imagem: Max Pixel)

Na última quarta-feira (13), dois jovens invadiram uma escola em Suzano, na Grande São Paulo, e atacaram alunos e funcionários. O massacre resultou em oito mortes (sem contar os assassinos, também mortos) e deixou ao menos 11 pessoas feridas. A comoção em torno do caso foi imediata e trouxe consigo um discurso recorrente em casos como esse: o do videogame como vetor da violência.

O assunto entrou em voga especialmente depois de o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, ter dado a entender que jogos eletrônicos associados à falta de atividades sociais e educativas influenciam no comportamento nocivo de crianças e adolescentes.

“Hoje a gente vê essa garotada viciada em videogames e videogames violentos. Só isso que fazem. Quando eu era criança e adolescente, jogava bola, soltava pipa, jogava bola de gude, hoje não vemos mais essas coisas. É isso que temos que estar preocupados”, disse Mourão à imprensa.

É preciso ter cuidado com esse tipo de afirmação. Primeiro porque atribuir culpa ao videogame, mesmo que parcialmente, pode acabar desviando o assunto das causas mais tangíveis do problema. Além disso, uma discussão mais pertinente acaba ficando fora de foco: se há banalização ou não da violência no universo gamer.

Por que o videogame está sempre levando a culpa?

Há tempos que o videogame é associado a comportamentos errantes de crianças e adolescentes. Eu, por exemplo, cresci ouvindo familiares dizendo que os jogos fazem mal para as vistas, da mesma forma que vi — e vejo — pais culpando a jogatina pelo sedentarismo ou inabilidade social dos filhos.

Não deixar de haver alguma lógica nesses argumentos. Independente de faixa etária, é comum que o jogador fique por demais concentrado no game e pisque menos, causando irritação aos olhos.

Já uma pessoa que passa horas a fio jogando pode mesmo deixar as atividades físicas de lado, bem como negligenciar evento sociais ou culturais, trazendo prejuízo para a sua saúde, tanto no âmbito físico quanto mental.

Mas note que esses problemas frequentemente estão relacionados ao excesso. Há quem, voluntariamente ou por influência de pessoas próximas, perceba o abuso e passe a moderar o tempo gasto nos jogos. Outras percebem o problema, mas têm dificuldades para combatê-lo. Não é à toa que, em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a considerar o vício em videogame um problema de saúde mental.

Só que a questão da violência segue um viés diferente e precipitado: a de que a exposição desmedida a jogos violentos, por si só, é capaz de moldar o caráter do indivíduo a ponto de ele extravasar a agressividade supostamente desenvolvida ali no mundo real.

Joystick (imagem: Pixnio)

Em maior ou menor grau, todo ato de violência que atinge proporções trágicas gera comoção e indignação. Esses sentimentos rapidamente alimentam a necessidade de se entender as causas.

Um ataque terrorista pode ter como motivação questões políticas ou ideológicas. Um assalto que resulta em morte de inocentes tem a ganância como pano de fundo. Em todas essas situações, as razões não diminuem a gravidade do ato ou a dor resultante, mas ao menos entende-se — o que não é o mesmo de concordar com — o que engatilhou o ato de violência.

Porém, quando uma pessoa promove um ataque violento sem motivação aparente, a necessidade primária de explicação se manifesta pela busca do fator lógico mais próximo: de onde é mais provável que um jovem aparentemente sem contato prévio com o crime tenha extraído a ideia de um ataque? Verifique se ele jogava. Se positivo, então os jogos são a causa mais provável.

Não são só os videogames que entram na mira. Filmes, quadrinhos, músicas e livros também podem ser alvos. Logo após o atentado de Parkland, na Flórida, em fevereiro de 2018, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump disse que, além de jogos, filmes violentos podem influenciar tiroteios em escolas.

Mas os jogos eletrônicos parecem ser os alvos preferidos porque são mais frequentemente relacionados ao comportamento imaturo ou irresponsável dos jovens. Além disso, games de tiro colocam o jogador no papel de executor. Quem vê de fora pode interpretar isso como uma forma de estímulo ou até de treino.

O problema é que, ao culpabilizar os jogos, a mídia e autoridades acabam deixando de admitir que, na verdade, atentados como os de Parkland e Suzano costumam ter causas muito mais complexas, não raramente, multifatoriais.

O que dizem os pesquisadores

A postulação do videogame como causa de atos de violência ganhou força depois do massacre de Columbine, em 1999. De lá para cá, diversos estudos foram realizados para avaliar o assunto. Até hoje, nenhum deles conseguiu provar a relação de jogos com ataques violentos.

Um dos estudos mais recentes vem da Universidade de Oxford. Divulgado em fevereiro, a pesquisa, feita com mais de mil adolescentes e seus pais, indica que os jovens que jogam videogame regularmente não são mais propensos à violência do que aqueles que não o fazem.

Andrew Przybylski, professor que liderou a pesquisa, diz que os jogadores até podem manifestar sentimentos de raiva por conta de alguma frustração no jogo, mas que esse comportamento não tem relação direta com ações agressivas na vida real.

Przybylski aponta que, na verdade, estudos anteriores podem ter sido conduzidos por pesquisadores que já tinham algum tipo de preconceito sobre o assunto e, por conta disso, terem tido conclusões distorcidas a respeito da relação da violência com os jogos.

Cena de Call of Duty

Eis um possível exemplo: um estudo do psicólogo Brad J. Bushman publicado em 2012 chegou a defender que jogos em primeira pessoa ajudam a melhorar a pontaria do jogador com armas na vida real. Mas Bushman teve que se retratar por esse estudo por conta de erros na aplicação dos métodos científicos.

Outro: a Associação Americana de Psicologia (APA, na sigla em inglês) publicou um estudo em 2015 afirmando que pessoas que jogam games violentos têm mais probabilidade de assumir comportamentos agressivos. Mas esse estudo também foi questionado por conta de seus métodos.

Após a revisão do estudo, a APA manteve a sua posição, mas classificou a “pesquisa insuficiente para vincular jogo violentos à violência criminal”.

Essa revisão ressalta ainda que nenhum fator de risco conduz, sozinho, a um ato de violência. “Ao contrário, é o acúmulo de fatores de risco que tende a levar a um comportamento agressivo ou violento. A pesquisa revisada aqui demonstra que o uso violento de videogames é um desses fatores de risco”.

Isso quer dizer, no entendimento da entidade, que até existe a possibilidade de jogos violentos potencializarem atos agressivos, mas não isoladamente: é preciso que esse fator seja combinado a outros, por exemplo, a algum tipo de transtorno psicológico.

O buraco é mais embaixo

Em 2011, dias após o Massacre de Realengo, a TV Record exibiu uma reportagem insinuando que os jogos podem ter influenciado o atirador, Wellington Menezes de Oliveira, a cometer tamanha atrocidade — até uma hashtag foi criada na época em protesto: #gamerscontrar7.

Mas a Polícia Federal descobriu, meses depois, que o atirador foi incentivado por um chan (fórum anônimo) que promovia discursos e ações de ódio contra mulheres, negros, homossexuais, nordestinos e judeus.

Com relação ao massacre de Suzano, a polícia já investiga o envolvimento de Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro, os autores do atentado, em um chan chamado Dogolochan, na deep web. O fórum foi criado pelos mesmos responsáveis pelo grupo que recebeu Wellington.

Participantes desses fóruns podem até ter predileção por determinados jogos (ou filmes, músicas, etc.), mas não é isso que alimenta o seu radicalismo. Na raiz de tanto ódio costuma estar problemas sociais e psicológicos severos.

Não se pode dizer que rigorosamente todos os ataques violentos são orquestrados por grupos ou indivíduos extremistas, mas os casos citados e tantos outros deixam claro que o assunto é bastante complexo e grave. Simplesmente colocar a culpa no videogame acaba sendo, portanto, uma maneira evasiva e certamente ineficaz de lidar com o assunto.

Arma - violência (imagem: Pixabay)

Discutir a violência nos jogos é válido

É um equívoco posicionar os jogos como pano de fundo de atentados, mas isso não quer dizer que a violência ou comportamentos nocivos não devam ser analisados e debatidos no universo gamer. Por exemplo, será que não é pertinente discutir se a abordagem de determinados jogos não banaliza a agressividade na vida real?

Ou, então, não seria válido questionar se a forma como a competitividade é estimulada em determinados jogos online não acaba alimentando o comportamento hostil que muitos jogadores têm nesses ambientes ou, ainda, se isso pode levar a quadros de ansiedade, irritabilidade e afins?

A meu ver, esse é um exercício de reflexão que vale a pena ser posto em prática, afinal, um jogo violento não é uma escola de assassinos, mas nem por isso devemos nos esquivar da responsabilidade de identificar e combater os problemas que existem em muitas comunidades de jogadores.

Com informações: Agência BrasilNew York Times, Business Insider, Independent, Forbes, BBC, FolhaPolygon.

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Emerson Alecrim

Emerson Alecrim

Repórter

Emerson Alecrim cobre tecnologia desde 2001 e entrou para o Tecnoblog em 2013, se especializando na cobertura de temas como hardware, sistemas operacionais e negócios. Formado em ciência da computação, seguiu carreira em comunicação, sempre mantendo a tecnologia como base. Em 2022, foi reconhecido no Prêmio ESET de Segurança em Informação. Em 2023, foi reconhecido no Prêmio Especialistas, em eletroeletrônicos. Participa do Tecnocast, já passou pelo TechTudo e mantém o site Infowester.

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