A vida e a obra de ANGELINA, programa que usa inteligência artificial para criar jogos

Projeto de um estudante britânico, "ela" até participou de uma gamejam em dezembro

Giovana Penatti
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• Atualizado há 2 semanas

Eu não esperava que um jogo chamado Sex, Lies and Rape me deixasse confortável. Com mecânica simples, ele é um game de plataforma no qual o personagem principal precisa chegar a uma ambulância. Não dá para entender direito quem é esse personagem; ele parece se vestir com uma armadura. Ao longo da fase, encontra inimigos engravatados que atiram perigosas bolinhas vermelhas.

Enquanto ele flutua pelo cenário com uma música tensa, surgem imagens ao fundo: uma, um desenho de uma família; outra, uma garotinha sorrindo, com os dizeres “porque nada importa mais” (“because nothing matters more”); por fim, a pintura Tarquínio e Lucrécia, que retrata o estupro da mulher. Em certo momento, uma voz feminina começa a cantar, da forma mais macabra possível, algo indecifrável. É desesperador. A sensação de alívio ao terminar a fase mal existe, tão perturbadora ela é.

Que tipo de mente problemática poderia criar algo como Sex, Lies and Rape? Ela atende por ANGELINA, e não é exatamente uma mente, mas um software de inteligência artificial especializado em criar jogos.

ANGELINA foi criada por Michael Cook. Ela é o projeto de PhD em computação criativa no dele Goldsmiths College, em Londres, e seu nome é a sigla para A Novel Game-Evolving Labrat I’ve Named ANGELINA (algo como “um novo experimento de evolução de games que chamei de ANGELINA”), que já explica bem do que se trata. Cook começou a desenvolver o software em 2010 e, desde então, ANGELINA já criou dezenas de jogos: cerca de 40 foram finalizados e outros vários ele descartou por estarem incompletos.

Para criar os games, Cook dá um tema a ANGELINA e ela se encarrega de tudo: faz uma pesquisa online para descobrir como usar o tema, buscar modelos gráficos e efeitos sonoros e trilha que combinem com ele.

“Para o game design principal, como o layout das fases, ela usa evolução computacional, que é uma técnica para encontrar soluções para problemas complexos”, explica seu criador. “Todas as versões da ANGELINA usam um template básico. Para os de plataforma, lhe dei a noção de pular, se mover e tal. O trabalho dela foi fazer o design, colocar inimigos e escolher seus comportamentos, decidir powerups”. Por isso, os jogos em cada fase de ANGELINA são bem parecidos.

Ludum Dare

Para Sex, Lies and Rape, o tema dado foi uma manchete do Guardian: “Rochdale gang found guilty of sexually exploiting girls”. Para a inscrição de Cook no Ludum Dare, gamejam que teve sua última edição em dezembro, foi dada a ANGELINA a frase “You Only Get One”. Com base nela, dois jogos foram criados: To That Sect, que recebeu bastante atenção do público e teve mais de 16 mil jogadores, e Stretch Bouquet Point, que ficou na obscuridade.

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A descrição dos jogos, disponível nos respectivos links, também foi escrita por ANGELINA, o que é mais um ponto surpreendente em como ela é inteligente: elas definitivamente parecem ter sido escritas por uma pessoa. A de To That Sect é esta (optei por não traduzir para mostrar exatamente as construções de frases feitas pela inteligência artificial):

This is a game about a disgruntled child. A Founder. The game only has one level, and the objective is to reach the exit (the yellow cylinder). Along the way, you must avoid the Tomb as they kill you, and collect the Ship.

I use some sound effects from FreeSound, like the sound of Ship. Using Google and a tool called Metaphor Magnet, I discovered that people feel charmed by Founder sometimes. So I chose a unnerving piece of music from Kevin Macleod’s Incompetech website to complement the game’s mood.

Let me know what you think. In future I’ll put more levels into my games, and also make the mechanics more interesting.

A reação do público ao saber que um deles havia sido criado por um “robô” e o outro não também faz parte da pesquisa, para ver como as pessoas reagem a essa informação – muito mais gente jogou To That Sect, provavelmente pela curiosidade. Dando uma olhada nos comentários de cada um, no geral, a diferença é que, no jogo que foi identificado como criado por um “robô”, as pessoas parecem surpresas e compreendem o motivo das bizarrices dos elementos.

Sem emoções

Os jogos criados por ANGELINA têm alguns pontos em comum. Todos são meio surrealistas e tensos, como se a mistura de elementos seguindo padrões que só ANGELINA domina necessariamente resultasse nisso. Talvez o fato de sabermos que não foi criado por um ser humano também contribua para esse sentimento de vulnerabilidade que sentimos dentro dos jogos.

A ausência de sentimentos de ANGELINA tem um lado bom: faz com que não haja barreiras para sua criação, nem algo sendo extravasado no jogo. Ao Polygon, Cook comenta que essa pode ser uma vantagem sobre os humanos, mas também pode ser um aprendizado para game devs, já que ANGELINA consegue explorar novas ideias e técnicas que, talvez, nunca tenha passado pela cabeça deles.

Por outro lado, jogos que mexem diretamente com os sentimentos dos jogadores são cada vez mais comuns, e não apenas os de grandes publishers, como The Last Of Us: produções mais simples, como Brothers: A Tale Of Two Sons, são capazes de arrancar muitas lágrimas.

Esse não deve ser um problema para ANGELINA, no entanto, já que ela não precisa sentir para saber o que são emoções. “Ela pode ver como as pessoas falam no Twitter quando alguém morre. Pode ler reações a guerras e política em sites de notícias e fóruns. Ela não tem sentimentos, mas é possível que ela entenda algo sobre essas emoções e represente-as num jogo”, explica Cook.

Aprendizado

Enquanto ANGELINA pode aprender como se manifestam diversas emoções – o que parece algo relativamente complexo – , seu aprendizado ainda é relativamente limitado. Como dito antes, ela não consegue criar novas mecânicas de jogos sozinha: é necessário que Cook lhe dê as ferramentas necessárias (ou melhor, o código) para isso.

No entanto, Cook está trabalhando em algo para que seu software possa surpreender ainda mais. Ele espera que, num futuro próximo, ANGELINA consiga escrever suas próprias mecânicas. “Fiz algumas coisas numa ferramenta chamada Mechanic Miner que poderia descobrir mecânicas de jogo ao testar e avaliar código. Logo devo colocar isso em ANGELINA e devemos obter algo legal”, declara.

Enquanto isso, em seu quarto ano de existência, o projeto vai indo muito bem, apesar de não tão rápido, já que é só Cook quem cuida dele. Além disso, o estudante também está aprendendo a fazer jogos junto com ANGELINA – afinal, precisa ensiná-la.

Para os próximos anos, ele espera que ela se torne um software bem mais estável do que hoje. Cook também acredita que, algum dia ANGELINA será considerada uma game dev “de verdade”, mas ainda vai demorar muito para isso e talvez ele não esteja vivo para ver. “Software será visto como igual aos humanos algum dia; se não for por todo mundo, será por alguns”, imagina.

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Giovana Penatti

Giovana Penatti

Ex-editora

Giovana Penatti é jornalista formada pela Unesp e foi editora no Tecnoblog entre 2013 e 2014. Escreveu sobre inovação, produtos, crowdfunding e cobriu eventos nacionais e internacionais. Em 2009, foi vencedora do prêmio Rumos do Jornalismo Cultural, do Itaú. É especialista em marketing de conteúdo e comunicação corporativa.

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