Como um software fez a Volkswagen se meter em um dos maiores escândalos do setor automobilístico

Emerson Alecrim
Por
• Atualizado há 1 ano
Volkswagen

A Volkswagen se meteu numa enrascada das grandes. Na terça-feira (22), a montadora alemã reconheceu ter implementado um software em pelo menos 11 milhões de carros com motor a diesel para distorcer os resultados dos veículos em testes de emissão de poluentes. Os efeitos já estão sendo sentidos: as ações da companhia estão despencando e o CEO do grupo foi obrigado a abandonar o cargo. Mas as consequências não vão parar por aí.

O escândalo começou a ganhar força na semana passada. Na sexta-feira (18), a Agência de Proteção ao Meio Ambiente (EPA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos acusou a montadora formalmente de trapacear nos testes que avaliam os níveis de gases emitidos pelos veículos.

Trata-se de um truque engenhoso. Basicamente, o software implementado nos carros é capaz de detectar quando o veículo está ligado a uma máquina de testes de poluentes. Quando isso acontece, um mecanismo passa a controlar a liberação de gases pelo motor para deixar a emissão dentro dos níveis que são aceitos pelas autoridades. Quando o equipamento é desconectado do carro, o mecanismo para de fazer esse controle para não afetar a performance do veículo.

Os modelos afetados

Jetta
Jetta

Ainda não se sabe oficialmente quais modelos contam com o tal software. A EPA, no entanto, relata que, nos Estados Unidos, os seguintes modelos foram afetados: Jetta, Beetle, Audi A3 e Passat, todos fabricados entre 2009 e 2015.

Esses veículos emitem de 10 até 40 vezes mais poluentes

Nos cálculos da EPA, esses veículos emitem de 10 até 40 vezes mais poluentes do que os níveis detectados nos testes de emissão convencionais. É uma diferença absurdamente alta. Só nos Estados Unidos, pouco mais de 482 mil unidades são suscetíveis a essa trapaça. Considerando também as unidades a diesel comercializadas em outros países — todas com motor TDI EA 189 —, esse número aumenta para 11 milhões, como informado no início do texto.

O desrespeito às leis ambientais de cada país — por si só um problema já bastante grave — não é a única complicação para a Volkswagen. As alterações nos resultados dos testes podem indicar ainda que os veículos têm médias de consumo de combustível maiores do que as informadas pela fabricante.

Deu para perceber o tamanho da encrenca, né? Não bastasse os problemas com órgãos reguladores, a montadora poderá enfrentar contestações de entidades que defendem os direitos dos consumidores e até mesmo ações coletivas de clientes que se sentem enganados.

Passat
Passat
“Temos que consertar esses carros, evitar que isso volte a acontecer”

Tudo indica que foram enganados mesmo. A Volkswagen não admitiu isso diretamente, mas o presidente da companhia nos Estados Unidos Michael Horn não tentou se desvencilhar do assunto: “nossa empresa foi desonesta com a EPA, com a CARB (agência ambiental da Califórnia) e com os consumidores (…). Temos que consertar esses carros, evitar que isso volte a acontecer e trabalhar do jeito correto (…). Esse comportamento vai totalmente contra o que acreditamos ser certo”, disse em um evento na noite da última segunda-feira (21) que marcou (ou deveria marcar) o lançamento de uma nova versão do Passat.

A descoberta do truque

Assim como muitos escândalos do meio corporativo, a suspeita de fraude na Volkswagen começou por acaso. Cerca de dois anos atrás, a International Council on Clean Transportation (ICCT), uma ONG que trabalha em prol do uso consciente de combustível em veículos, decidiu testar três veículos a diesel tidos como limpos na Europa para saber se eles respeitavam os critérios de emissão de poluentes dos Estados Unidos. A intenção era principalmente fazer com que as autoridades europeias adotassem regras ambientais mais rigorosas.

a suspeita de fraude na Volkswagen começou por acaso

Executados em parceria com a Universidade da Virgínia Ocidental, os testes incluíram avaliações em laboratório e em condições reais de uso, ou seja, em rodovias.

Um dos veículos, um BMW X5, passou pelos dois testes sem apresentar anormalidades. Mas qual não foi a surpresa dos avaliadores ao descobrirem que os outros dois veículos, ambos da Volkswagen, tiveram enormes discrepâncias nos resultados: na rodovia, um Jetta emitiu entre 15 a 35 vezes mais poluentes que o permitido; um Passat, entre 5 e 20 vezes mais. Em contrapartida, os dois veículos se comportaram bem no laboratório.

A princípio, os avaliadores desconfiaram de algum erro nos testes, afinal, há vários fatores que podem interferir no desempenho de um carro. Mas a CARB foi informada das medições e, por ter mais preparo para esse tipo de avaliação, decidiu colaborar. Aí veio a certeza de que algo não estava certo: a CARB constatou que os carros da Volkswagen emitem de 30 a 40 vezes mais óxido de nitrogênio do que o permitido.

O software

A conta é um pouco mais complexa do que isso, mas se resume ao seguinte: quanto menos óxido de nitrogênio emitir, mais combustível será consumido pelo motor a diesel e pior será o seu desempenho. A tecnologia desenvolvida pela Volkswagen parecia oferecer o equilíbrio ideal entre esses dois pesos. Só agora, seis anos depois da implementação da tecnologia, é que o mundo descobriu que não é bem assim.

Nesse ponto, há duas situações paradoxais. A primeira é que ninguém imaginaria que uma companhia do porte da Volkswagen recorreria a uma artimanha tão desleal. Se as autoridades não desconfiam de nada, provavelmente não gastarão tempo e recursos verificando a fundo o cumprimento de normas.

Teste - poluição

Além de paradoxal, a segunda situação é irônica. A própria EPA refutou a ideia de analisar a tecnologia da Volkswagen — o software em si — pelo temor de ferir alguma lei de proteção de direitos autorais e também pelo risco de a análise do sistema abrir brechas para que gente com conhecimento suficiente alterasse o código-fonte para aumentar a performance do carro e, consequentemente, elevar os níveis de poluição do veículo.

Por conta disso, ninguém além dos engenheiros da Volkswagen sabe até agora como o software realmente funciona. A única certeza que as autoridades norte-americanas têm é que a tecnologia é bastante sofisticada e, como se vê, serve muito bem ao propósito real para o qual foi desenvolvida.

Implicações para a Volkswagen

“Peço sinceras desculpas aos nossos clientes, às autoridades e à opinião pública por esta falta”. Essas são as palavras do até então CEO da Volkswagen Martin Winterkorn, que também prometeu empenho para resolver o problema. Mas isso não surtiu nenhum efeito.

Estima-se que a Volkswagen tenha perdido até agora 20 bilhões de euros do seu valor de mercado por conta do escândalo. Só nas bolsas europeias, as ações da companhia acumulam quedas que chegam a 38%. E essa é apenas a ponta do iceberg.

Martin Winterkorn, CEO da Volkswagen
Martin Winterkorn, agora ex-CEO da Volkswagen

Os investidores temem prejuízos enormes com multas e, principalmente, programas de recall. Sem contar as ações judiciais coletivas que a Volkswagen muito provavelmente enfrentará em vários países. Esses são os principais fatores para a queda das ações da empresa. A companhia até já reservou 6,5 bilhões de euros para lidar com esses custos que, pelo andar da carruagem, são iniciais.

São grandes as chances de que a Volkswagen também enfrente baixas nas vendas em determinados países. Primeiro pela desconfiança de consumidores. Segundo pela suspensão das vendas dos modelos afetados. A montadora já tomou essa decisão nos Estados Unidos, o que não impediu o Departamento de Justiça do país de abrir uma investigação criminal.

Na Alemanha, o governo não se manteve alheio ao caso. A chanceler alemã Angela Merkel pediu à Volkswagen “transparência total” sobre o assunto. “Espero que os fatos sejam esclarecidos o mais rápido possível”, afirmou em uma coletiva de imprensa.

O governo da Coreia do Sul também já convocou representantes da montadora para prestar esclarecimentos, movimento que deve ser seguido por outros países nos próximos dias.

Por aqui, a companhia não deve enfrentar muitos problemas. Os veículos para consumidores finais comercializados pela Volkswagen no Brasil têm predominantemente motores a álcool e gasolina. Atualmente, somente a picape Amarok é oferecida no país com motor a diesel.

“Estou chocado sobre como foi possível um erro de tamanha magnitude no Grupo Volkswagen”

Sem surpresa, também houve pressão, principalmente por parte de investidores, para que Martin Winterkorn deixasse de ser CEO da empresa. O posto era ocupado por ele desde 2007, portanto, há quem se pergunte se o executivo não estava a par dessa “engenhosidade” desde o início. Apesar disso, Winterkorn dava sinais de que não estava disposto a sair.

Não teve jeito: nesta quarta-feira (23), Martin Winterkorn renunciou ao cargo dizendo que não sabia das irregularidades, mas que, mesmo assim, aceita a responsabilidade pelo problema. “Estou chocado sobre como foi possível um erro de tamanha magnitude no Grupo Volkswagen”, disse. “A companhia precisa de um novo começo — também em termos de pessoal. Estou abrindo espaço para esse novo começo com a minha saída”, completou.

O substituto deve ser anunciado na próxima sexta-feira.

Implicações para a indústria automobilística

O escândalo da Volkswagen deve pressionar autoridades reguladoras, principalmente na Europa, a elaborarem testes de emissão de poluentes bem mais rigorosos que os atuais.

Na verdade, esse plano já vem sendo considerado há algum tempo. Alguns estudos já comprovaram que, em situações de uso real, a emissão de gases por veículos é cerca de sete vezes maior do que as medições feitas em laboratório.

Motor TDI

Não que haja outras montadoras realizando trapaça (se há, ainda não foram descobertas). O problema é que os testes de laboratório frequentemente se baseiam em parâmetros não tão realistas, por assim dizer.

Testes do “mundo real” devem ser adotados a partir de 2017 na União Europeia. Já há um modelo para servir de base: os testes que analisam veículos pesados. Os Estados Unidos, por exemplo, avaliam essa categoria com mais rigor desde a década de 1990, quando vários fabricantes de motores a diesel foram processados por fraudes ligeiramente parecidas.

É provável que outras implicações apareçam no longo prazo. Fraudes relacionadas a medições no consumo de combustível e emissão de poluentes já aconteceram antes, mas adulteração controlada por software é novidade, pelo menos no que diz respeito a uma quantidade tão ampla de veículos.

Assim, é de se esperar que entidades reguladoras passem a elaborar critérios relacionados a esse aspecto. Se o software já é parte tão importante dos veículos assim, talvez tenha chegado a hora de haver normas rigorosas para a sua adoção.

Dada a natureza complexa do software, essas medidas não impedirão a existência de fraudes, mas devem tornar essa prática mais difícil. Há anos atrás, na escola, um colega de sala tentando ser engraçadinho perguntou ao professor se ele poderia colar na prova. O professor disse “pode, só não deixe que eu descubra”. Digamos que as normas seriam um recado equivalente ao aviso desse professor pelos órgãos reguladores às montadoras.

Com informações: Ars Technica, Wired, The New York Times, Car and Driver, New Scientist, BBC

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Emerson Alecrim

Emerson Alecrim

Repórter

Emerson Alecrim cobre tecnologia desde 2001 e entrou para o Tecnoblog em 2013, se especializando na cobertura de temas como hardware, sistemas operacionais e negócios. Formado em ciência da computação, seguiu carreira em comunicação, sempre mantendo a tecnologia como base. Em 2022, foi reconhecido no Prêmio ESET de Segurança em Informação. Em 2023, foi reconhecido no Prêmio Especialistas, em eletroeletrônicos. Participa do Tecnocast, já passou pelo TechTudo e mantém o site Infowester.

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