Cientistas criam estímulo cerebral que transfere conhecimento como em Matrix… Só que não

Emerson Alecrim
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• Atualizado há 1 semana
Cérebro

O cérebro humano é fascinante. Bilhões de neurônios com trilhões de conexões permitem que esse órgão realize coisas fantásticas. Não parece, mas ler um texto como este é uma delas: seus olhos enviam informação visual para o órgão que, por sua vez, interpreta cada símbolo (letra), “monta” as palavras e contextualiza tudo, trazendo, por fim, a compreensão.

Provavelmente, ler é uma tarefa trivial para você. Mas você deve se lembrar de que nem sempre foi assim. Lá na sua infância, te ensinaram que ‘b’ com ‘a’ é ‘ba’ e que depois do ’10’ vem uma infinidade de números. Hoje, você para o carro na subida numa boa, sem pensar em todos os movimentos necessários para isso. Porém, durante algum tempo, você deixou o carro morrer, deu solavancos na hora de sair com ele, tentou trocar de marcha lembrando tardiamente que é necessário pisar na embreagem antes.

Normal. Todas essas situações descrevem processos de aprendizagem. Você vai passar boa da sua vida fazendo coisas assim. A parte mais interessante é que, quando somos crianças, ficamos loucos para aprender, afinal, aquele cérebro novinho ali não tem outra coisa para fazer. Mas, quando terminamos a faculdade, por exemplo, sentimos certo alívio por, entre outras razões, nunca mais termos que aprender tanta coisa complicada ou chata.

Quadro negro

É um engano, é claro. As coisas mudam constantemente. Você precisa continuar aprendendo para se adaptar. Só que isso cansa e, muitas vezes, ocupa uma parte significativa de um tempo que você já não tem. Não seria ótimo, portanto, que você pudesse conectar alguma coisa ao seu cérebro para absorver conhecimento rapidamente?

Cérebro turbinado

Se seria! E não é que um grupo de cientistas do HRL Laboratories, nos Estados Unidos, conseguiu criar algo nessa linha? Bom, pelo menos é o que estão dizendo por aí.

Divulgado na revista científica Frontiers in Human Neuroscience (publicação que não tem uma reputação muito boa, mas enfim), o trabalho do HRL descreve uma técnica que permite “transferir” informações de um cérebro a outro a partir de um processo de Estimulação Transcraniana por Corrente Continua (ETCC ou, na sigla em inglês, tDCS). É impossível não comparar: parece uma ideia extraída de Matrix, só que em escala muito menor.

A pesquisa tem como base um experimento conduzido da seguinte maneira: pilotos de aviões comerciais e militares com bastante experiência usaram um simulador de voo enquanto aparatos colocados em suas cabeças identificavam e traçavam padrões cerebrais relacionados ao trabalho de pilotagem.

Na etapa seguinte, pilotos menos experientes foram submetidos ao simulador, mas com uma diferença: uma espécie de capacete com ETCC foi usado para “imprimir” no cérebro de cada um deles o padrão cerebral obtido dos pilotos experientes.

Matthew Phillips, líder da pesquisa, explica que, quando você aprende alguma coisa, o seu cérebro se submete a um processo de neuroplasticidade, isto é, passa por mudanças que ocorrem em resposta a lesões, condições variadas (como privação do sono) e, no caso de aprendizagem, atividades cognitivas. Resumidamente, a neuroplasticidade é parte do mecanismo que reforça as conexões no cérebro correspondentes ao conhecimento adquirido.

Phillips e equipe acreditam que a ETCC pode ajudar nesse processo tornando a aprendizagem mais rápida a partir da estimulação das áreas corretas do cérebro. No experimento, esses pontos foram identificados a partir do mapeamento da atividade cerebral dos pilotos experientes. Bastou então “reproduzir” esse padrão nos pilotos mais novos.

Funcionou? Bem, o estudo mostra que, na comparação com um grupo “placebo”, os pilotos que passaram pela ETCC apresentaram capacidade de aprendizagem 33% maior, ou seja, eles conseguiram assimilar mais rápido as lições de voo.

É uma margem bem significativa. Fazendo uma estimativa rápida, é como se você precisasse de apenas dois meses para aprender bem algo que normalmente leva três meses — simplesmente você tem mais facilidade para absorver conhecimento, portanto, a compreensão é mais rápida.

Os resultados foram tão empolgantes que Phillips já vê a técnica sendo implementada em várias atividades que exigem muita dedicação da nossa parte: aprender a dirigir, estudar um idioma diferente, se preparar para provas extensas (como um vestibular) e por aí vai.

Não é bem assim

Só que é bom ter cuidado com as expectativas. O estudo pode ter obtido resultados interessantes, mas eles não são suficientes para comprovar que é possível “transferir” aprendizagem de um cérebro a outro por meio de ETCC.

Para começar, o teste envolveu um grupo muito pequeno de participantes: seis pilotos experientes e 32 novatos, sendo que uma parte do último grupo recebeu um tratamento “placebo”.

Vale ressaltar também que a ETCC é uma técnica usada há décadas para tratar condições como doença de Parkinson, fibromialgia e problemas causados por acidente vascular cerebral. Ainda que muitas vezes os resultados dessas abordagens tenham sido duvidosos, cientistas presumiram a partir daí que a ETCC poderia atender a outras finalidades.

Entre elas está o aprendizado: se a ETCC pode (supostamente) ajudar na reabilitação de pessoas que sofreram lesões cerebrais, uma abordagem mais controlada não poderia “turbinar” um cérebro sem danos, com efeito, fazendo a pessoa aprender mais rápido?

Piloto - simulação

Esse é um assunto polêmico. Até agora, nenhum experimento conseguiu comprovar que a estimulação elétrica consegue deixar o cérebro mais “afiado”, não em um padrão que funcione para todo mundo.

Mais um ponto: pode ser que a pesquisa da equipe de Phillips tenha realmente alcançado os resultados apontados, mas pela estimulação elétrica em si (ainda que não haja comprovação de que isso funcione), não pelo o que seria a reprodução do padrão de atividade dos pilotos experientes.

Nesse sentido, é possível que a estimulação elétrica a partir de padrões aleatórios traga resultados semelhantes. Não que a pesquisa do HRL Laboratories seja completamente inválida, mas ainda há muito trabalho a ser feito nesse campo para que o assunto seja tratado com tanta empolgação.

De todo modo, a aprendizagem é um processo extremamente complexo e que envolve vários fatores. Já se sabe muito sobre o cérebro, mas ainda há vários aspectos que são um mistério, inclusive no que diz respeito à formação de memórias e às conexões que constituem tudo o que sabemos. Sem conhecimento dos pormenores, não dá para simplesmente transferir informação de um cérebro para outro a partir de ETCC ou qualquer técnica parecida. Não funciona assim.

Pode ser que um dia seja realmente possível “turbinar” o cérebro ou transferir conhecimento no melhor estilo Matrix, mas esse é um processo extenso, que requer muita pesquisa. Quais seriam as consequências disso, por exemplo? Qual o preço que pagaríamos por tamanha sofisticação? O que o cérebro tem de complexo (e fascinante), tem de delicado, logo, algum efeito adverso deve surgir. Por ora, é melhor respeitarmos o seu ritmo.

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Emerson Alecrim

Emerson Alecrim

Repórter

Emerson Alecrim cobre tecnologia desde 2001 e entrou para o Tecnoblog em 2013, se especializando na cobertura de temas como hardware, sistemas operacionais e negócios. Formado em ciência da computação, seguiu carreira em comunicação, sempre mantendo a tecnologia como base. Em 2022, foi reconhecido no Prêmio ESET de Segurança em Informação. Em 2023, foi reconhecido no Prêmio Especialistas, em eletroeletrônicos. Participa do Tecnocast, já passou pelo TechTudo e mantém o site Infowester.

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