O Kindle Unlimited surgiu com uma proposta deveras interessante: você paga um valor fixo por mês — no Brasil, de R$ 19,90 — e tem acesso irrestrito a milhares de livros. Obras independentes também podem fazer parte do acervo disponível no serviço. É uma ótima oportunidade para autores de ebooks ou para quem almeja se destacar no cenário literário. Pena que sempre há maçãs podres: tem gente usando artifícios desonestos para ganhar dinheiro com o programa.

Remuneração por página lida

Como o Kindle Unlimited não é um serviço baseado em volume de vendas, a Amazon implementou uma forma peculiar de remuneração: inicialmente, os autores eram pagos conforme a quantidade de downloads de suas obras; mas em junho do ano passado passou a vigorar um modelo de pagamento por página lida.

Isso significa que, se um assinante do Kindle Unlimited ler apenas metade de um livro de 100 páginas, o programa pagará ao autor um valor correspondente a 50 páginas. Se o livro for lido outras vezes pelo mesmo usuário, essas leituras adicionais não serão remuneradas. Somente a primeira vez é que conta.

Como a assinatura dá acesso ilimitado ao acervo do serviço, muitos usuários baixam vários livros por mera curiosidade ou interrompem a leitura logo no início quando descobrem que a obra não é interessante — ou simplesmente não presta. Nesse processo, livros acabam “esquecidos”. Essa situação explica a preocupação da Amazon de remunerar os autores por página lida, não por download.

Só que alguns espertinhos descobriram que o KENPC (Kindle Edition Normalized Page Count), o sistema que determinada o número de páginas lidas, tem uma limitação: para fazer a contagem, o mecanismo usa como referência a última página de cada livro sincronizada pelo usuário.

Dessa forma, se você parar a leitura de um livro na página 30, a sua conta será sincronizada para guardar a informação de que as páginas de 1 a 30 foram lidas. Assim você poderá retornar a leitura de onde parou, independente do dispositivo usado para esse fim (você pode começar em um Kindle e continuar a leitura no seu smartphone, por exemplo). Essa mesma informação serve de parâmetro para o KENPC presumir quantas páginas você já leu (novamente, as páginas de 1 a 30).

Kindle Unlimited

Os truques

Membros da comunidade em torno da Amazon descobriram, porém, que alguns participantes do programa estavam (ou ainda estão) conseguindo burlar esse sistema a partir de três métodos principais.

Em um deles, o autor malandro coloca o índice ou uma lista de conteúdos específicos no final do livro, obrigando o leitor a ir até as últimas páginas para saber por onde começar. Se o usuário parar ali, o KENPC poderá entender que quase todo o livro foi lido.

Outro truque, mais engenhoso, é a inclusão de traduções de determinado conteúdo para vários idiomas na mesma publicação (muitas vezes sem cuidado nenhum, usando serviços como Google Translate para esse trabalho) com a versão em inglês sendo deixada por último, afinal, a maioria dos usuários lê nesse idioma, o que os faz pular para a parte final do livro.

Também há a estratégia de encher livros com conteúdo inútil — muitas vezes com 3 mil páginas, o máximo suportado pela Amazon para fins de contagem — e colocar links no início que direcionam para as páginas finais.

Nesse último truque, as avaliações dos usuários podem deixar claro para outros leitores que aquele livro não presta, certo? Não exatamente: descobriram também que muitas páginas dessas “obras” no site da Amazon receberam falsas avaliações positivas justamente para atrair leitores inocentes.

Consequências

Isso é ruim para os assinantes do Kindle Unlimited, afinal, eles ficam sujeitos a livros de qualidade duvidosa ou notoriamente ruins. Mas são os autores legítimos, que se esforçam para oferecer conteúdo relevante, que acabam sendo mais prejudicados.

Para fazer o pagamento de royalties, a Amazon determina um fundo mensal com base em vários parâmetros, como políticas de preço, taxas de câmbio e impostos. Se em um mês o fundo for de US$ 10 milhões e houver 100 milhões de páginas lidas, o referido montante será dividido por essa quantidade. Assim, se um autor teve dez mil páginas lidas, ele receberá US$ 1 mil naquele mês (US$ 10 milhões multiplicados por 10 mil de páginas do autor divididos por 100 milhões de páginas lidas).

Note que, com esse sistema, os custos da Amazon permanecem controlados, ou seja, o valor do fundo de royalties não aumenta significativamente mesmo que a quantidade de autores seja maior. Porém, os escritores honestos acabam recebendo menos, pois dividem os ganhos com participantes que usaram artifícios para inflar o número de páginas lidas.

A Amazon reage, mas sem fazer alarde

A Amazon vem sendo procurada para comentar o assunto, é claro, mas prefere manter a discrição: “para não dar informações importantes a potenciais transgressores, não vamos discutir os detalhes das ferramentas que usamos para verificar se há abusos, mas estamos trabalhando constantemente para melhorá-las”, disse um representante da companhia.

Mas já dá para perceber que algumas medidas de prevenção foram colocadas em prática. Muitos ebooks fraudulentos já foram removidos e políticas foram mudadas recentemente para, por exemplo, impedir que índices ou tabelas com links para conteúdo sejam colocados no final do livro. Já há relatos de autores que adotavam essa abordagem (mesmo que sem nenhuma intenção maliciosa) que foram notificados pela Amazon sobre a necessidade de reformatar as suas obras.

Publicada originalmente em 1995, a série Metropolitan, de Walter Jon Williams, teve que ser reformatada para se adequar às novas regras da Amazon
Publicada originalmente em 1995, a série Metropolitan, de Walter Jon Williams, teve que ser reformatada para se adequar às novas regras

Além disso, a Amazon vem adotando técnicas para bloquear trapaças. Os sistemas da empresa já são capazes de notar que um usuário avançou muito rapidamente para as páginas finais de um livro e, nessas circunstâncias, não fazem a contagem — ninguém é capaz de ler centenas de páginas em poucos minutos.

São iniciativas bem-vindas, certamente, mas é de se esperar que a Amazon faça mais para proteger o serviço. Já que não é viável analisar obra por obra antes de publicá-las, provavelmente um mecanismo de inteligência artificial poderia ser usado para identificar características de publicações suspeitas ou de avaliações falsas.

É verdade que sistemas como esse são complexos e, assim, não podem ser desenvolvidos da noite para o dia. Sem contar que mesmo medidas mais simples exigem cuidados: contar efetivamente todas as páginas lidas, por exemplo, ajudaria a evitar as fraudes, mas poderia aumentar os gastos de internet do usuário (cada página lida exigiria envio de informações para os servidores da companhia) ou, pior, ferir políticas de privacidade.

Como dá para perceber, o verdadeiro desafio da Amazon está em achar um ponto de equilíbrio: combater as fraudes, mas evitar que as ações de prevenção prejudiquem a experiência dos usuários e a participação de autores que jogam limpo. Capacidade técnica para isso a Amazon tem. Tomara que boa vontade também.

Com informações: Observer, Ann ChristyBoingBoing

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Emerson Alecrim

Emerson Alecrim

Repórter

Emerson Alecrim cobre tecnologia desde 2001 e entrou para o Tecnoblog em 2013, se especializando na cobertura de temas como hardware, sistemas operacionais e negócios. Formado em ciência da computação, seguiu carreira em comunicação, sempre mantendo a tecnologia como base. Em 2022, foi reconhecido no Prêmio ESET de Segurança em Informação. Em 2023, foi reconhecido no Prêmio Especialistas, em eletroeletrônicos. Participa do Tecnocast, já passou pelo TechTudo e mantém o site Infowester.

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