Lives, likes e streams: os desafios da música independente no digital

É inegável que a tecnologia facilita a criação e produção de músicas – mas como lidar com a concorrência no ambiente online?

Ana Marques
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• Atualizado há 1 ano
Especial: Lives, likes e streams. (Imagem: Henrique Pochmann/Tecnoblog)
Especial – Lives, likes e streams: os desafios da música independente no digital (Imagem: Henrique Pochmann/Tecnoblog)

A música independente nunca esteve tão difusa – das playlists do Spotify às trilhas de vídeos do TikTok. De pequenos nichos em seus espaços físicos, ela ultrapassou barreiras nos últimos anos, atingindo outras cidades e países. Mas a tecnologia também traz desafios aos artistas que trabalham sem o apoio de grandes marcas ou gravadoras.

Uma pesquisa da ABMI – Associação Brasileira de Música Independente publicada na última quinta-feira (15) revela que 53,5% dos artistas que frequentaram o TOP 200 do Spotify ao longo de 2019 são independentes.

Apesar de o cenário ser, de certa forma, promissor, os números absolutos contam outra história. Um artigo do MIDiA Research revelou que 82% da participação na receita do Spotify em 2019 corresponde ao grupo de grandes gravadoras somadas à Merlin, entidade que reúne selos e independentes.

Porém, isolando a receita da Merlin, é possível observar a participação majoritária das empresas renomadas (Universal, Sony e Warner, chamadas de “Majors” na tabela abaixo).

Receita do Spotify por MIDiA Research. (Imagem: Reprodução/MIDiA Research)
Receita do Spotify por MIDiA Research. (Imagem: Reprodução/MIDiA Research)

Ainda assim, fala-se em crescimento da participação de artistas independentes nas plataformas de streaming – o que não deixa de ser um fato. Em 2019, esse crescimento foi de 48% no Spotify, de acordo com os dados do MIDiA Research, mas em números absolutos, a categoria arrecada menos do que o mainstream (que é minoria em número de aristas).

De acordo com Dani Ribas, especialista em Gestão e Políticas Culturais e diretora do núcleo de pesquisa DATA SIM e do Sonar Cultural, esse fenômeno se explica pela grande adesão de músicos e bandas independentes às novas tecnologias nos últimos anos, mas é preciso interpretar os números para não cair em “pegadinhas”.

O que acontece é que há muitos artistas aderindo às novas ferramentas agora. Então existe esse crescimento em participação, é normal. Mas são muitos [artistas] e, no digital, eles disputam a atenção com todo o tipo de serviço – até com a Netflix e com Games. É o que chamamos de “Economia da Atenção”.

Dani Ribas

A escalada em qualidade de produção

Produzir, mesmo que de forma independente, em casa, ficou mais acessível com o avanço da tecnologia. Prova disso é a proliferação de Home Studios, que teve início nos anos 80, com a chegada do protocolo MIDI, a interface que facilitou a comunicação entre instrumentos e computadores em tempo real.

Nos anos 90, os softwares sequenciadores e a gravação digital permitiu que mais produtores começassem a trabalhar por conta própria. Na segunda metade dos anos 2000, os programas para criar música eletrônica se tornaram ainda mais populares, especialmente entre dispositivos móveis, como tablets e smartphones.

Equipamentos para gravação de músicas ficaram mais acessíveis. (Imagem: Pixabay)
Equipamentos para gravação de músicas ficaram mais acessíveis. (Imagem: Pixabay)

Já foi o tempo em que a música independente tinha aquele som de vitrola arranhada. Você até encontra essa vibe, se quiser, mas é muito mais uma questão de escolha do artista do que limitação técnica.

Para Leo DaCosta, produtor musical autônomo, o avanço tecnológico proporcionou benefícios em produção, mas também comprometeu a visibilidade de novos artistas.

Hoje em dia existem excelentes equipamentos a preços viáveis para a maioria dos artistas. A tecnologia “chegou lá” e tornou viável qualquer pessoa gravar com qualidade comercial em um home studio simples e com equipamentos relativamente baratos. […] A desvantagem maior é que, fazendo um paralelo com as redes sociais, é ótimo que todos tenham voz, mas nem todo mundo tem algo bom pra dizer. Então, existe uma saturação de artistas iniciantes em plataformas digitais, e acabamos mais uma vez dependentes dos algoritmos como “curadoria” musical. Isso gera bolhas artísticas que nem sempre são interessantes nem para os artistas e nem para o público.

Leo DaCosta, produtor musical

Leo, que também é músico, chama a atenção para a importância de profissionais capacitados durante a produção de um novo material, com conhecimento mais avançado em captação, mixagem e masterização

Por mais independente que um artista seja, é muito difícil transcender ao ponto de enxergar o próprio trabalho com uma visão externa. Isso é fundamental para que se obtenha o melhor resultado possível. […] Mesmo no mercado independente, a busca por bons produtores (principalmente os que trabalham com nichos específicos) continua em alta. Pode-se obter grandes resultados com equipamentos simples e o produtor musical é geralmente o “elo perdido” entre o orçamento baixo e um disco bem finalizado.

Leo DaCosta

Dani Ribas alerta ainda para as diferenças entre qualificação e profissionalização da classe. “Os músicos têm as ferramentas à disposição. (…) Eu posso chegar e produzir uma música e colocar em uma plataforma digital, tudo isso de forma independente. Mas como eu vou ganhar dinheiro com isso, atrair o público, é outra história”, explica.

As etapas para a distribuição em plataformas de streaming

Para ter a sua música em plataformas como Deezer, Spotify e Amazon Music, você deve enviá-las por meio de distribuidoras parceiras. Existem diversas empresas que fazem esse serviço, como a CD Baby, a ONErpm e a Record Union, só para citar algumas.

Essas distribuidoras cobram uma taxa para que você envie um single, EP ou álbum completo. Elas também podem gerar o UPC para a sua música (algo semelhante ao código de barras de um produto, que permite controlar as vendas daquele material).

Spotify no celular (Imagem: Unsplash)
Spotify no celular. (Imagem: Unsplash)

O processo é menos complicado do que parece – no geral, as distribuidoras contam com uma interface bastante simples, que direcionam o artista para preencher os campos necessários, definir uma data para lançamento e decidir em quais plataformas a música será distribuída. Também por meio desse sistema, você pode enviar músicas para os Stories do Instagram ou na biblioteca de sons do TikTok.

No YouTube, ainda é possível subir um vídeo por conta própria – mas a plataforma exige uma distribuidora parceira para transformar o seu canal em um canal oficial de artista.

Na indústria como um todo pode ser interessante para um artista independente ter um parceiro que o ajude a distribuir a música, como um intermediário entre o artista e diferentes players, e desempenhe esse papel de administrar os lançamentos com todas as plataformas disponíveis e parceiros para o artista. Na hora de assinar o contrato, é importante entender quais as condições do contrato e divisão de royalties

Natalia Julio, Gerente de parcerias para desenvolvimento de artistas no YouTube

O ‘jabá 2.0’

Novas formas de distribuição também encontram novos “atalhos” para ultrapassar a concorrência. Para isso, muitos músicos (ou seus representantes) acabam recorrendo ao “jabá 2.0” – tal qual acontece na programação de rádios, o artista paga para aparecer em playlists populares de serviços de streaming.

Para o artista, a vantagem inicial é a explosão no número de reproduções da música. Mas a prática não é bem vista sob os holofotes.

“Você pode até pagar para ter muitos ‘plays’ em plataformas, mas isso não compra uma indicação sincera da mídia”, comenta o editor do Hits Perdidos. Ele afirma que o trabalho deve ser consistente para agradar muitos stakeholders e entrar ser recomendado e premiado.

Segundo Bernardo Bassin, gerente de relacionamento com o artista da Deezer, a empresa é contra a prática de comprar um espaço em playlists, e conta ainda com sistemas antifraude para derrubar possíveis esquemas que estejam forjando o número de reproduções.

Capacitação é importante e urgente

Dominar as novas ferramentas e formas de comunicação no mundo digital torna-se uma missão para o artista independente que deseja ter sucesso online. Para Rafael López, editor do site Hits Perdidos, falta entendimento sobre como fazer a abordagem correta a veículos, na hora de divulgar um material lançado.

Uma vez eu recebi um release sobre o lançamento de um material, e pensei ‘nossa, [a banda] não deveria estar mandando esse trabalho para blogs ou sites, e sim para produtoras’. (…) Acho que falta um pouco de entendimento sobre como falar, pesquisa sobre o que o veículo costuma abordar.

Rafael López, editor do Hits Perdidos

Rafael está constantemente “puxando a orelha” de artistas de forma descontraída em seu perfil do Twitter. Ele afirma que a criatividade é a chave para conquistar a mídia e cativar o público.

Na pandemia [da COVID-19], todo mundo quis fazer música sobre o isolamento. Tudo bem, mas como essa música vai ser vista depois? O que ela pode passar para além daquele momento? O seu público quer consumir esse tema de forma melancólica ou não?

Rafael López

Algumas empresas já contam com ferramentas de análise de audiência com interface amigável (Spotify for Artists, Deezer Backstage e YouTube for Artists são exemplos). Por meio delas, o artista pode ter uma visão sobre seu público e outros dados de consumo, como os dias e músicas que melhor performaram em um determinado intervalo.

Dados de audiência no Spotify for Artists. (Imagem: Reprodução/Spotify)
Dados de audiência no Spotify for Artists. (Imagem: Reprodução/Spotify)

Para Bernardo Bassin, da Deezer, é importante que o músico ou banda também ensine a seus fãs sobre como interagir com as plataformas, de forma que a música possa alcançar mais pessoas.

Com o mecanismo do Flow, na Deezer, o público pode conhecer novos artistas por meio de uma seleção feita com a ajuda de inteligência artificial. Por isso, é importante dar like naquela música e pedir para que o seu público também interaja, assim você ensina o algoritmo sobre a relevância daquele trabalho. A ferramenta é capaz de identificar o contexto de música e indicá-la para pessoas que provavelmente irão se interessar.

Bernardo Bassin

Bassin também ressalta a importância de conexões que promovam a ascensão de artistas, como os coletivos de música independente que surgem em diversos nichos e podem dar voz a músicos e bandas em diferentes estilos ou cenários culturais.

O artista independente também tem importância para o YouTube. A plataforma conta com o NextUp, um camping de mentoria para artistas em começo da carreira, e com o Foundry, um acompanhamento de otimização de canal em parceria com distribuidoras e selos independentes.

Pensando na capacitação de músicos que são novos no ambiente digital, Dani Ribas ministra cursos e workshops sobre estratégia de carreira. Ela também produz conteúdo sobre o mercado musical em seu perfil do Instagram.

Perspectivas sobre o futuro do streaming

O futuro da indústria musical ainda não está totalmente claro, mas existem tendências de mercado que começam a se consolidar. O streaming, apesar de ilustrar as novas formas de consumo, ainda deve passar por reformas nos próximos anos.

Uma delas já é abordada pela Deezer atualmente. De acordo com a empresa, a remuneração ao artista pode ser mais justa com a implementação de um novo sistema de pagamentos centrado no usuário (UCPS).

Com essa dinâmica, o que você paga ao assinar e ouvir músicas em plataformas de streaming vai apenas para os artistas que você ouve (descontando o percentual da plataforma, é claro).

Trata-se de um esquema diferente do que acontece com a cota de mercado atualmente, onde a receita de todos os assinantes não é tratada com distinção, e acaba compondo um mesmo montante, que é repassado de acordo com a quantidade de “plays” que cada artista recebe.

Para Polyana Ferrari, Gerente de PR da Deezer, é questão de tempo e amadurecimento de mercado até que mais players estejam dispostos a mudar esse sistema, que traria mais benefícios a artistas de diferentes gêneros e nichos específicos.

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Ana Marques

Gerente de Conteúdo

Ana Marques é jornalista e cobre o universo de eletrônicos de consumo desde 2016. Já participou de eventos nacionais e internacionais da indústria de tecnologia a convite de empresas como Samsung, Motorola, LG e Xiaomi. Analisou celulares, tablets, fones de ouvido, notebooks e wearables, entre outros dispositivos. Ana entrou no Tecnoblog em 2020, como repórter, foi editora-assistente de Notícias e, em 2022, passou a integrar o time de estratégia do site, como Gerente de Conteúdo. Escreveu a coluna "Vida Digital" no site da revista Seleções (Reader's Digest). Trabalhou no TechTudo e no hub de conteúdo do Zoom/Buscapé.

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