Onde estão os carros autônomos que nos prometeram?

Prometidos para 2020, os carros autônomos não devem chegar tão cedo às ruas. Legislação, 5G e IA são os principais desafios

Darlan Helder
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• Atualizado há 11 meses
Onde estão os carros autônomos que nos prometeram? (Imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog
Onde estão os carros autônomos que nos prometeram? (Imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog)

Há dez anos, chips implantados em nossas cabeças, viagens comerciais ao espaço, carros autônomos e voadores eram as principais novidades futuristas para o ano de 2020. Corta para os tempos atuais, algumas dessas tecnologias já até existem, foram executadas, mas não de forma predominante e popular como esperávamos.

Falando especificamente dos veículos de direção autônoma, muitos fabricantes prometeram colocar essas inovações nas ruas em 2020, mas a verdade é que esse sonho ainda parece distante.

Especial de carros autônomos em vídeo

A chegada dos carros autônomos está atrelada a outras inovações como cidades conectadas, inteligentes e Internet das Coisas (IoT), que atuam como “braço direito” auxiliando os veículos que dispensam a interferência humana. Enquanto o automóvel anda sozinho e se comunica com outros veículos, você pode ler um livro, acessar as redes sociais, fazer uma ligação ou simplesmente dormir.

Afinal, se eles deveriam estar disponíveis agora, o que será que aconteceu? O Tecnoblog ouviu os principais especialistas no assunto aqui no Brasil para entender todas dificuldades atuais, que não são poucas.

Como o carro autônomo funciona e os níveis de automação

A cidade do futuro com carros autônomos (Imagem: Divulgação/Audi)
A cidade do futuro com carros autônomos (Imagem: Divulgação/Audi)

Para funcionar eficientemente, o carro autônomo depende de cinco tecnologias fundamentais: câmeras, sensores (como LiDAR), GPS, Inteligência Artificial (IA) e uma central de comando — o cérebro do carro. Na prática, todas elas devem trabalhar para gerar respostas precisas, tais como fazer o carro mudar de faixa na hora certa, reconhecer semáforos, objetos, pedestres, animais e agir em situações de perigo.

Além das cinco tecnologias mencionadas, eles trabalham com outros cinco níveis de automação que ajudam a entender o estágio em que determinado automóvel se encontra no campo da direção autônoma. Conheça cada um deles:

Nível 0 – Sem automação: o veículo é dependente do ser humano, controlado de forma 100% manual;

Nível 1 – Assistência ao motorista: é o grau mais simples e pode ser encontrado em muitos veículos atualmente. Nele, o condutor pode contar com recursos como o Controle de Cruzeiro Adaptativo (ACC), ou piloto automático, e usá-lo como auxílio na direção;

Nível 2 – Automação parcial (semiautônomo): permite que o veículo controle o volante e os pedais sozinho, logo o carro pode trafegar sem interferência humana por poucos quilômetros. Ainda assim, o motorista precisa ficar atento para agir em situações de risco. Esse nível é encontrado em carros da Tesla (Autopilot), bem como no Volvo XC60;

Nível 3 – Automação condicional: é uma extensão do nível 2. Nele, o carro consegue fazer detecções por sensores e tomar decisões sozinho. Mas o condutor deve estar pronto para intervir em casos em que o veículo não consiga executar certos comandos. De acordo com o Centro de Experimentação e Segurança Viária (Cesvi Brasil), projetos da Uber e do Google estão nesta fase;

Nível 4 – Alta automação de direção: o veículo pode operar sozinho e tem capacidade para tomar decisões graças à Inteligência Artificial, mas também pode solicitar a sua ajuda em alguns momentos. A partir deste nível, o motorista pode dormir, mexer no celular ou ler um livro, enquanto a máquina trabalha 100% sem depender do ser humano. Mas há barreiras: o carro nesta etapa pode ter dificuldade para trabalhar em condições climáticas adversas;

Nível 5 – Automação plena: pode atuar sem interferência humana em ruas, avenidas e rodovias, além de tomar decisões e até corrigir possíveis falhas. Nesta etapa, o veículo não precisa de volante e pedais, e o motorista, ou melhor, o passageiro, pode fazer outras atividades dentro do carro.

Por que eles não chegaram em 2020

Cadillac CT6 (Imagem: Divulgação/GM)
Cadillac CT6 (Imagem: Divulgação/GM)

Os níveis de automação que mostramos anteriormente já revelam o motivo do atraso. Nos últimos dez anos, empresas desembolsaram muito dinheiro, fizeram parcerias e dedicaram tempo para que a direção autônoma chegasse até o ano de 2020. Apesar disso, como fazer um automóvel que se dirige sozinho ser altamente confiável? Essa é a pergunta que freia a chegada dessa inovação no mundo.

De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), anualmente 50 milhões de pessoas se acidentam em rodovias pelo mundo e muitas dessas fatalidades acontecem devido à falha humana. No futuro, os veículos que ganharem autonomia terão de reduzir essa estatística. Sim, é uma responsabilidade muito grande para todas as organizações que trabalham em projetos de carros autônomos.

Essas empresas precisam realizar muitos treinamentos com Inteligência Artificial e os carros têm de rodar milhares de quilômetros e fazer viagens longas, sem apresentar nenhum problema de segurança. Já os sensores precisam atuar sem erros lidando com todas as condições climáticas e identificar todos os objetos que podem eventualmente estar na via.

Ademais, existe outro obstáculo no caminho: a legislação. No Brasil, além da tradicional burocracia, esbarramos no artigo 252 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que considera infração média “dirigir o veículo com apenas uma das mãos, exceto quando deva fazer sinais regulamentares de braço, mudar a marcha do veículo, ou acionar equipamentos e acessórios do veículo”.

Protótipo autônomo Volvo 360c (Imagem: Divulgação/Volvo)
Protótipo autônomo Volvo 360c (Imagem: Divulgação/Volvo)

As principais barreiras para os veículos autônomos hoje são basicamente duas: a primeira delas tem a ver com a infraestrutura viária, isso não só no Brasil, mas em diversos países, os veículos deveriam se comunicar com a infraestrutura tanto para se posicionar melhor quanto para interagir com mais inteligência e com a infraestrutura. Isso é algo que já está em desenvolvimento em muitos lugares, mas que ainda não existe na magnitude necessária.

A segunda área que ainda falta a ser desenvolvida (…) é a própria legislação. Na maioria dos países por mais que possa existir tecnologia para que o veículo dirija sozinho, (…) o condutor ainda precisa ser o último responsável pela operação (…) Então, são esses dois pilares — infraestrutura e legislação — são os principais que precisam ser desenvolvidos para uma utilização plena dos veículos autônomos.

João Oliveira, diretor geral de operações e inovação da Volvo Car Brasil

Carro autônomo da Ford (Imagem: Divulgação/Ford)
Carro autônomo da Ford (Imagem: Divulgação/Ford)

A pandemia do novo coronavírus desacelerou os investimentos, já que muitos fabricantes passaram a rever seus planos atuais em detrimento da crise global na qual passamos. Quando a COVID-19 bateu à porta, a Ford, que investe bilhões na tecnologia, informou que seu projeto de táxi autônomo foi adiado para 2022. A previsão de lançamento era em 2021.

Em junho de 2020, Mercedes-Benz e BMW pausaram uma parceria histórica de desenvolvimento de tecnologias de condução autônoma de nível 4. Mais de 1 mil profissionais estavam envolvidos no projeto.

O bilionário e CEO da Tesla, Elon Musk, promete um carro de nível 5 até dezembro deste ano, mas é melhor você não ficar tão animado com essa afirmação dele, já que até agora não vimos nada muito concreto nessa etapa mais avançada.

No geral, as previsões não são muito otimistas. Por enquanto, não há nenhum sinal que indique que eles chegarão ainda em 2020 ou em 2021.

Tesla Model S (imagem: divulgação/Tesla)
Tesla Model S (imagem: divulgação/Tesla)

Quase todas as fabricantes do setor automotivo trabalham hoje no desenvolvimento da direção autônoma. Ford, Volvo, General Motors, Audi e Tesla são algumas delas, contudo, devemos prestar atenção especialmente na Waymo, uma empresa que pertence à Alphabet, uma holding que também controla o Google.

Carro autônomo da Waymo (Imagem: Divulgação/Waymo)
Carro autônomo da Waymo (Imagem: Divulgação/Waymo)

Por que precisamos ficar de olho nela? A Waymo é pioneira na direção autônoma e tem chances de liderar essa corrida. Em 2018, os carros sem condutor da companhia percorrem 1,2 milhão de quilômetros na Califórnia (Estados Unidos). Em janeiro deste ano, eles atingiram a marca de 32,2 milhões de quilômetros.

O cenário atual é bem curioso, tendo em vista que essa corrida é formada por empresas de tecnologia e do setor automotivo. Essa situação, porém, abre uma importante discussão: quem vai colocar os carros autônomos nas ruas primeiro? Será que Uber, Apple, Waymo e outras startups vão se destacar?

A resposta é sim e não. Tanto montadoras tradicionais quanto empresas de tecnologia já apresentaram seus primeiros protótipos. Pesa a favor das empresas de tecnologia uma situação muito favorável de caixa disponível para investimento em pesquisa e desenvolvimento. Para as montadoras tradicionais, pesam os mais de 100 anos de conhecimento acumulado em engenharia automotiva.

Colocar rodas no celular pode não ser tão fácil quanto colocar o celular no carro. De qualquer forma, a concorrência é sempre saudável para a evolução e a pergunta não é quem fará primeiro, mas quem fará disso um negócio sustentável.

Jonathan Marxen, mentor de Sistemas Autônomos na SAE Brasil

Por que o 5G é tão importante para os carros autônomos

Volvo e China Unicom trabalham no desenvolvimento de tecnologia de comunicação 5G na China (Imagem: Divulgação/Volvo)
Volvo e China Unicom trabalham no desenvolvimento de tecnologia de comunicação 5G na China (Imagem: Divulgação/Volvo)

As redes móveis de quinta geração serão extremamente úteis para estimular o funcionamento adequado desses veículos. Essa tecnologia pode resolver um dos principais gargalos existentes hoje nos carros autônomos: a latência. Isso significa maior segurança, já que o automóvel irá conseguir responder mais rapidamente a comandos, reduzindo consideravelmente o tempo de reação.

Mas não é só isso. Estamos falando também de uma melhor interpretação do tráfego, melhor comunicação com outros veículos e interação até com semáforos. Definitivamente, os carros serão mais inteligentes e menos dependentes do ser humano.

A cidade do futuro com carros autônomos (Imagem: Divulgação/Audi)
A cidade do futuro com carros autônomos (Imagem: Divulgação/Audi)

Na prática, o tão aguardado 5G potencializará o V2V, a intercomunicação veículo a veículo; o V2I, a interação veículo e infraestrutura, para analisar, por exemplo, as condições do tráfego. Ou melhor, os carros autônomos trabalharão com V2X — grave esse código —, que são carros conectados que se comunicam com tudo.

De acordo com Paulo Bernardocki, diretor de soluções e redes da Ericsson, a tecnologia 5G será essencial para a comunicação entre os veículos e, ao mesmo tempo, ajudará a tomar decisões.

Com essa tecnologia, o automóvel se comunica com outras coisas conectadas, deixando de reagir ao ambiente e passa a receber informação adicional em como ele pode antecipar problemas. Então, vocês imaginem: um acidente que ocorra a alguns quilômetros à frente, essa informação pode chegar no carro antes dele se aproximar do acidente (…) e já tomar uma decisão de mudança de rota.

E com todos os veículos conectados, a gente pode pensar até numa coordenação central do tráfego, então sabendo que muitos carros que dirigem por uma determinada rota, essa coordenação central toma decisão de repartir o fluxo por dois caminhos diferentes e assim evitar um congestionamento. Essa é a importância do 5G com o carro conectado, você consegue uma coordenação, consegue antecipar coisas que apenas o carro autônomo sem conectividade não conseguiria.

Paulo Bernardocki, diretor de soluções e redes da Ericsson

O Brasil está pronto para os carros autônomos?

Protótipo autônomo Volvo 360c (Imagem: Divulgação/Volvo)
Protótipo autônomo Volvo 360c (Imagem: Divulgação/Volvo)

O Brasil é o país menos preparado para os carros autônomos, revela o estudo Índice de Prontidão para Veículos Autônomos 2020, da KPMG. Respectivamente, Singapura, Holanda, Noruega, Estados Unidos e Finlândia são os cinco países mais capacitados para receber essa tecnologia. A KPMG lembra no relatório que Singapura investiu mais de US$ 4,3 milhões nesta inovação, permitiu avaliações em suas rodovias e trabalha com metas de adoção massiva.

Ainda que o Brasil adote novas tecnologias com entusiasmo, o país conflita com várias áreas que impulsionam a direção autônoma e os carros conectados. Além disso, o governo brasileiro não incentiva nem mostra interesse em colocar esses projetos nas ruas. Enquanto isso, apenas empresas do setor privado abraçam os veículos autônomos para uso em suas estruturas.

O Brasil ainda tem uma lição a fazer nos quesitos infraestrutura, legislação, tecnologia e aceitação pública. A consultoria KPMG tem apontado isso anualmente (…) A boa notícia é que já estamos vendo veículos autônomos, ainda que lá fora (a automação parcial já chegou em carros, caminhões e ônibus). A outra boa notícia é que a automação completa chegará primeiro nos locais onde a tecnologia se paga mais rápido e onde há menos entraves regulatórios, que são com veículos comerciais que trafegam em áreas privadas.

Jonathan Marxen, mentor de Sistemas Autônomos na SAE Brasil

Ainda que em ritmo mais discreto e tímido, os carros autônomos estão a caminho. Apesar de inúmeros desafios e aprimoramentos, muitas empresas já provaram que é possível. Quando iremos vê-los nas ruas? Isso só tempo dirá, mas não será em 2020!

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Darlan Helder

Darlan Helder

Ex-autor

Darlan Helder é jornalista e escreve sobre tecnologia desde 2019. Já analisou mais de 200 produtos, de smartphones e TVs a fones de ouvido e lâmpadas inteligentes. Também cobriu eventos de gigantes do setor, como Apple, Samsung, Motorola, LG, Xiaomi, Google, MediaTek, dentre outras. No Tecnoblog, foi autor entre 2020 e 2022. Ganhou menção honrosa no 15º Prêmio SAE de Jornalismo 2021 com a reportagem "Onde estão os carros autônomos que nos prometeram?", publicada no Tecnoblog. 

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