Minha gata Matilda e os perfis do Instagram que se unem por remédio de R$ 30 mil

Tutores de gatos se unem no Instagram para conseguir arrecadar dinheiro para tratamento experimental contra PIF, considerada incurável até alguns anos atrás

Giovanni Santa Rosa
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• Atualizado há 5 meses

Há alguns meses, Matilda, a menor das minhas duas gatas, estava com dificuldades para andar, cambaleando e caindo constantemente. A veterinária suspeitou de uma doença chamada PIF, que é terrivelmente letal. Ou melhor, era: um tratamento foi descoberto nos últimos anos, mas o laboratório que desenvolveu a droga se recusa a licenciar seu uso. Mesmo assim empresas chinesas fabricam e vendem o medicamento. Donos de gatos doentes recorrem à solidariedade para arcar com os custos, que ficam em algo em torno de R$ 30 mil.

A peritonite infecciosa felina (PIF) é causada por uma mutação do coronavírus entérico felino — apesar de ser também um coronavírus como o SARS-CoV-2, que causa a COVID-19, ele não infecta humanos. Extremamente prevalente, ele causa uma infecção leve ou até mesmo assintomática na maioria dos casos. O grande problema surge quando o vírus sofre uma mutação no organismo e se torna o coronavírus da peritonite infecciosa felina.

A PIF tem duas versões: a úmida, em que há acumulo de fluidos no abdome ou no peito do animal, e a seca. A primeira é mais comum e progride mais rápido, enquanto a segunda costuma levar a danos oculares ou neurológicos. Outros sinais são diarreia, falta de apetite, febre, perda de peso e icterícia.

O diagnóstico é difícil, já que não há um teste específico — é preciso analisar vários fatores e excluir outras hipóteses. A doença costumava ser uma sentença de morte para os gatos: após diagnosticada, o animal tem um prognóstico de semanas ou meses de sobrevida. Há alguns anos, porém, isso começou a mudar.

A cura que foi descoberta mas não chegou

Em um estudo de campo realizado em 2018 na Universidade da Califórnia em Davis, 31 gatos com PIF foram tratados com um medicamento de nome complicado: GS-441524. Destes, 25 se curaram, sendo 18 em um primeiro ciclo de aplicações e outros sete após recaírem e receberem mais doses. Os resultados não eram apenas animadores: eles destoavam completamente de outras tentativas anteriores.

Para se ter uma ideia, um dos maiores sucessos até então tinha sido em um estudo de 2017. Ele envolveu 20 gatos e uma droga chamada GC376, com sete sobreviventes — os outros 13 responderam inicialmente ao tratamento mas não resistiram. Pode parecer pouco, mas já seria um enorme avanço.

Os dois estudos têm um autor em comum: o veterinário Niels C. Pedersen. Ele também foi o responsável por identificar, nos anos 80, o vírus da imunodeficiência felina, o FIV — outra sigla bastante temida por quem tem gatos. Pedersen dedicou grande parte de sua carreira a estudar a PIF e tentar encontrar uma cura.

Pederson conhecia um ex-chefe científico da Gilead Sciences, laboratório que desenvolveu o GS-441524, da época em que a empresa desenvolvia os primeiros medicamentos para HIV e ele estudava primatas, que serviam de cobaias dos primeiros testes. O veterinário pediu algumas moléculas em desenvolvimento para testar nos felinos, e pesquisadores da empresa participaram dos ensaios com os bichos.

Porém, o que seria o grande sucesso de sua carreira não saiu como o esperado: a companhia se recusou a licenciar a droga para uso em gatos.

Medicamento teve sucesso contra PIF
Medicamento teve sucesso contra PIF (Imagem: Unsplash/Louis Reed)

Se você acompanhou mais a fundo as notícias sobre a pandemia de COVID-19, o nome da Gilead Sciences não deve soar estranho: ela é a responsável pela criação do remdesivir.

Este medicamento foi testado primeiro contra o Ebola, mas sem sucesso. Com o surgimento da COVID-19, ele voltou a ser uma esperança passou por novos testes. Mesmo com resultados modestos, foi aprovado para uso emergencial em várias partes do mundo — incluindo o Brasil.

As duas substâncias têm muito em comum: o remdesivir é metabolizado no organismo e se transforma em GS-441524. A ação é a mesma: eles entram na replicação de RNA dos vírus e emperram o processo, combatendo a infecção.

A semelhança é o grande motivo para a Gilead se negar a liberar a droga para uso nos gatos: efeitos inesperados podem atrapalhar a aprovação de um uso mais amplo do remdesivir. Como Richard Sachleben, um veterano da indústria farmacêutica, explica à Atlantic, uma das regras do desenvolvimento de medicamentos é justamente esta: não fazer testes desnecessários para evitar resultados problemáticos.

Algumas empresas chinesas tentaram licenciar a droga, mas não houve acordo. Só que esse não foi o fim da linha: elas seguiram adiante e começaram a fabricar o medicamento mesmo sem autorização.

Solidariedade para conseguir

Em um desses dias em que minha gata estava doente, uma propaganda apareceu para mim. Provavelmente o algoritmo do Instagram identificou que eu passo muito tempo vendo Reels de bichinhos. Talvez ele tenha até cruzado os dados e descoberto que eu estava pesquisando sobre a doença. Eu era o público perfeito.

Minha gata Matilda em seus primeiros meses aqui em casa
Minha gata Matilda em seus primeiros meses aqui em casa (Imagem: Tecnoblog/Giovanni Santa Rosa)

O post patrocinado era de um gato pedindo ajuda para pagar seu tratamento contra a PIF. Nos comentários daquele post, havia mais perfis de gatos, quase todos com “pif” no username. Eles também pediam ajuda e mandavam mensagens de apoio ao colega — ou “amicat”, como chamam. Foi aí que eu descobri que recorrer à solidariedade era praticamente a única opção para pagar o tal medicamento.

Para salvar seus gatos da PIF, os donos recorrem às empresas chinesas que fabricam o GS-441524 — ou apenas GS, como ele é chamado pelos tutores. O tratamento, porém, tem um custo muito alto: uma coluna da Folha fala em US$ 5 mil a US$ 10 mil; no Brasil, estima-se algo em torno de R$ 30 mil.

Além de ser caríssimo para nossa realidade, é preciso conseguir o dinheiro rapidamente. O protocolo de tratamento segue o estudo de observação feito por Pedersen, com 84 injeções diárias. A dose aplicada depende do peso do bichinho e de alguns parâmetros, como o tipo de PIF e presença de acometimento neurológico ou ocular. Por isso, o custo pode ser menor ou maior.

O medicamento representa o maior gasto, mas não o único. Durante esse tempo, é preciso repetir periodicamente os exames para conferir a evolução da saúde, ajustar as doses e até mesmo estender o tratamento, se necessário.

Caso tudo esteja certo, é preciso observar o animal por mais 90 dias, intervalo em que ainda pode haver recaídas e necessidade de mais aplicações. Só depois disso é possível dizer que o gato foi curado.

Gato tomando sol
Gato tomando sol (Imagem: Unsplash/Giannis Panagiotatos)

Para conseguir comprar o remédio, os tutores pedem doações e fazem rifas de produtos para pets, eletrônicos e até quantias em dinheiro. Eles também procuram padrinhos ou, como geralmente chamam, “dindos”: pessoas que se comprometam a ajudar mensalmente e acompanhar mais de perto o tratamento do bichinho.

Alguns vendem roupas e outros pertences, fazem artesanato ou doces, pedem para que seguidores façam compras em grandes varejistas e pet shops usando seus links de afiliados. Tudo isso para conseguir dinheiro para bancar o tratamento.

Dois momentos são especialmente difíceis na arrecadação. Um é no começo, quando o animal geralmente está muito doente e precisa iniciar o tratamento o mais rápido possível, mas o número de seguidores ainda é baixo.

O outro é na “reta final”. A PIF ataca principalmente filhotes e, durante o tratamento, eles crescem. Além disso, ficam mais saudáveis e ganham peso. Isso significa que as doses das aplicações ficam maiores. Com isso, os tutores precisam fazer pedidos de quantidades maiores de remédio ou com mais frequência.

Os casos variam bastante. Tem quem pegou um gatinho que se tornou adorado pelas crianças da família e não quer que ele parta em tão pouco tempo. Tem os que foram adotados e devolvidos aos abrigos quando a doença foi diagnosticada. Tem protetores que já gastam muito para manter alimentação de vários animais, mas mesmo assim decidem não desistir da vida de um gatinho doente. Tem quem resgatou uma ninhada e só descobriu que existia uma chance de cura quando havia restado apenas um sobrevivente da doença. E por aí vai.

App do Instagram (Imagem: Brett Jordan/Unsplash)
App do Instagram (Imagem: Brett Jordan/Unsplash)

Cada like conta

O Instagram virou, inclusive, uma comunidade para vários tutores. E ao mesmo tempo que a rede social é uma ótima forma de conseguir mais gente disposta a ajudar, é preciso saber “driblar” o algoritmo. Já faz um tempo que o feed não é mais organizado em ordem cronológica; em vez disso, ele exibe apenas conteúdos considerados interessantes para o usuário. Por isso, a ajuda mútua é fundamental.

Os perfis dos gatos com PIF — ou “pifentinhos”, apelido carinhoso para uma doença tão terrível — comentam nas publicações uns dos outros e compartilham nos stories quando um animal precisa de tratamento ou está sem dinheiro para fazer um novo pedido.

Os donos também pedem para curtir, compartilhar, comentar com pelo menos quatro palavras (e sem repetir outros posts nem publicar várias vezes, para o algoritmo não considerar spam), marcar amigos e salvar a publicação.

Assim, o Instagram “entende” que o post é relevante e ele aparece para mais pessoas, aumentando a chance de conseguir contribuições. Em todos, há uma série de hashtags, tanto específicas da doença quanto de temas mais amplos, como gatos ou pets.

Isso faz muita diferença — tanta que mesmo os donos dos gatos curados continuam ativos na rede para participar desse jeito. Eles explicam que mesmo quem não tem como contribuir financeiramente pode ajudar a “construir” o Instagram de um bichinho doente com essas interações. Aquele dia em que o Facebook e seus produtos ficaram fora do ar, aliás, foi péssimo em termos de arrecadação, tamanha a importância da plataforma.

A transparência no processo também é importante porque muita gente desconfia de golpe. Os donos compartilham resultados dos exames, receitas médicas, recibos de pagamento e fotos das ampolas de medicamento. Alguns chegam até a postar vídeos dos bichinhos recebendo as injeções para provar que a doença é real e a arrecadação é mesmo necessária.

Matilda também é colega de home office
Matilda também é colega de home office (Imagem: Tecnoblog/Giovanni Santa Rosa)

Uma segunda opinião descartou a PIF da minha gatinha — a hipótese agora é de um problema muscular genético, que pode ser contornado com suplementos de proteínas e vitaminas. Desde então, ela ganhou peso, parou de cambalear e voltou a brincar pela casa.

Mesmo assim, eu continuei acompanhando e seguindo os “pifentinhos”. Meu feed do Instagram virou uma roleta de sentimentos. Fico triste quando vejo que um filhote, ainda no início de tratamento, não resistiu e virou “estrelinha”. Comemoro quando o período de tratamento de um bichinho é encerrado ou quando a observação termina sem recaídas. Compartilho um pouco da angústia dos donos que correm contra o tempo para conseguir o remédio.

Em um artigo publicado em 2019, Pedersen mostra ter ciência do mercado ilegal de medicamentos para gatos. Ele adverte que há muitas incertezas tanto em relação a como fazer o tratamento fora de condições de laboratório quanto à qualidade dos produtos, mas promete que vai continuar fazendo pesquisas para guiar donos e veterinários.

O cientista afirma que a droga com certeza será aprovada e comercializada normalmente nos próximos anos. Ainda que o remédio continue caro, isso certamente facilitaria o acesso ao tratamento.

Eu espero que ele esteja certo. Verei muitos posts felizes no meu Instagram neste dia.

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Giovanni Santa Rosa

Giovanni Santa Rosa

Repórter

Giovanni Santa Rosa é formado em jornalismo pela ECA-USP e cobre ciência e tecnologia desde 2012. Foi editor-assistente do Gizmodo Brasil e escreveu para o UOL Tilt e para o Jornal da USP. Cobriu o Snapdragon Tech Summit, em Maui (EUA), o Fórum Internacional de Software Livre, em Porto Alegre (RS), e a Campus Party, em São Paulo (SP). Atualmente, é autor no Tecnoblog.

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