Cale a boca e tome o meu dinheiro

"Kickstarter tirou o poder de decisão de produção de um game das empresas e o dividiu entre aqueles com boas ideias e o público disposto a pagar para ver".

Izzy Nobre
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Meu pai foi pastor evangélico por muitos anos. Volta e meia a igreja que ele liderava se envolvia em projetos de ajuda comunitária no bairro humilde onde a congregação ficava. Foi aí que eu aprendi a palavra “mutirão”, que é o nome que se dá pra mobilização de um monte de gente com um objetivo em comum.

O termo geralmente implica que o trabalho está sendo feito gratuitamente, o que, apesar de não ser exatamente adequado neste contexto, ainda acho que pode ser utilizado para explorar um assunto do qual não falei antes na minha coluna. Estou me referindo ao Kickstarter e, mais especificamente, como ele virou meio que de uma hora pra outra um reduto de desenvolvedores sem dinheiro.

Kickstarter é um serviço de crowdfunding (leia também sobre o tal do crowdsourcing num artigo especial produzido por convidado), que é um neologismo que para “você mostra uma ideia bacana pra turma, e eles jogam dinheiro na sua direção para que você possa executar a idéia”. É essencialmente a materialização deste clássico meme:

Quando conheci o Kickstarter, ele era mais usado para divulgar projetos ousados de tecnologia que careciam de capital para manufatura. Eu mesmo adquiri um dos produtos anunciados lá, aliás: este sistema de lentes para o iPhone 4. E estou de olho em alguns outros.

De uns tempos pra cá, desenvolvedores de games começaram a orbitar ao redor do serviço. Algumas histórias de sucesso fenomenais foram o resultado.

A mais notável foi a da Double Fine, o estúdio do lendário Tim Schafer. O produtor (que parece uma versão futura do Bobby Moynihan; diz aí se estou errado!) já era um queridinho dos PC gamers de maior idade por ser o homem por trás de clássicos atemporais como Day of the Tentacle, Full Throttle e Grim Fandango; agora ele entrou nesse negócio de pedir ajuda a gamers com um vídeo extremamente carismático e remanescente do tipo de humor meio ácido pelo qual seus games eram conhecidos.

É muito fácil se relacionar com o vídeo caso você seja um fã do gênero em que o Schafer se consagrou um mestre. Numa das cenas ele discute com um hipotético fã sobre os problemas de tentar fazer um jogo de aventura point and click, e o cabeludo responde com o argumento e tom que são certamente os que um fã desse estilo de jogo usaria. Isso me causa a impressão de que o Schafer (que é sem dúvida quem deve ter escrito todo o roteiro do curta) está na mesma sintonia que os consumidores da sua obra. Ele entende o que queremos, porque no fim das contas isso parece ser o que ele também quer. E, caramba, o sujeito é muito carismático!

Não é à toa que o projeto ultrapassou todas as metas do desenvolvedor (num curtíssimo período de tempo, ainda por cima): eles precisavam de 400 mil dólares e acabaram embolsando mais de três milhões de obamas. Houve até quem investiu dez mil dólares no negócio (sem saber sequer o nome do jogo; ele ainda não tem um). Para o desenvolvimento de um game independente, 3 milhões de dólares é uma quantia exorbitante.

Outro game do Kickstarter que me deixou empolgado é Republique. O jogo é atípico porque em vez de encarnar o personagem principal na tela do seu celular ou tablet, o jogador é ele próprio dentro da história do jogo. Você interage com a protagonista usando seu aparelho portátil como se estivesse numa ligação com a personagem principal, manipulando os sistemas de vigilância de um governo distópico através do seu gadget e ajudando-a a escapar.


(Vídeo do YouTube)

Vale aqui um parêntese: esse tipo de jogo que derruba a quarta parede é algo que ainda não foi explorado o quanto deveria. Recepciono iniciativas como esta de braços abertos; acho que essa indústria precisa um pouco mais desse tipo de coisa, e de menos séries inacabáveis de FPSs (mas isso é uma reclamação pra outra coluna).

O Kickstarter tirou o poder de decisão de produção de um game das grandes empresas e o dividiu entre os pequenos notáveis com boas ideias e o público disposto ao famoso “pagar pra ver”. Isso é excelente porque, por um lado, permite que jogos mais “arriscados” venham a ser produzidos. Mas tem seu lado negativo também.

Em quase todo Kickstarter de game, os desenvolvedores enfatizam o envolvimento com a comunidade e, mais especificamente, feedback que resulta em mudanças ou implementações novas no jogo. Por um lado isso agrada qualquer pessoa que sentiu dor física ao ver que um jogo não dispoe de uma determinada funcionalidade, e se viu resignado a aceitar o fato de que talvez jamais a terá. Settlers de iOS e sua falta de um modo freeplay, estou olhando diretamente para você.

Por outro lado, eu não estou inteiramente convencido de que dar as rédeas (ainda que de maneira limitada) a uma cambada de gamers é lá uma ideia tão boa assim, por dois motivos. Em primeiro lugar, os desenvolvedores acabam meio que se tornando uma vítima de uma faceta negativa do processo de desenvolvimento — ceder controle criativo aos homens que detêm a grana (muitos desenvolvedores visam a fugir disso levando suas ideias para o tribunal do Kickstarter).

Em segundo lugar, como diria o finado fundador da Apple, as pessoas às vezes não sabem o que querem até que você mostre pra elas. Minha mãe costumava dizer que dois cozinheiros azedam a sopa; imagina milhares deles. Inevitavelmente, você acabará ignorando as sugestões de diversas pessoas e cultivará, então, uma sensação de ressentimento. Por outro lado, se o desenvolvedor tentar ouvir todo mundo, pode acabar perdendo a visão original para o jogo. Existe um termo gringo que define bem este sentimento: “design by committee“.

Estou sendo fatalista, claro. Uma das minhas funções de nerd gamer com um espaço na internet é ver o ponto negativo em tudo. É que eu realmente não consigo afastar da cabeça a imagem destes desenvolvedores de Kickstarter prometendo engajamento com a comunidade e adaptar todos os seus sonhos e expectativas no jogo. De um lado do espectro soa insincero, do outro, parece uma receita pra um desastre de jogo.

O que você acha dessa nova leva de games bancados por mutirão?

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Izzy Nobre

Izzy Nobre

Ex-autor

Israel Nobre trabalhou no Tecnoblog entre 2009 e 2013, na cobertura de jogos, gadgets e demais temas com o time de autores. Tem passagens por outros veículos, mas é conhecido pelo seu canal "Izzy Nobre" no YouTube, criado em 2006 e no qual aborda diversos temas, dentre eles tecnologia, até hoje.

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