A companhia dos games na quarentena: anjo e demônio sobre os ombros

Jogos ajudam a manter as pessoas em casa durante o período de isolamento social, mas não devem ser a única atividade da rotina

Lucas Lima
• Atualizado há 1 ano e 3 meses
A companhia dos games na quarentena / imagem de Henrique Pochmann / Tecnoblog

As portas estão fechadas — de bares, restaurantes, cinemas e qualquer outro lugar em que poderíamos nos reunir com outras pessoas. O motivo é justo, e a maneira mais segura de fazer esse encontro é pela internet, para evitar ou desacelerar a contaminação do novo coronavírus (causador da COVID-19). Manter as pessoas em casa, por livre e espontânea vontade, é um objetivo bem-sucedido dos games, eu diria. Por outro lado, abusar desse entretenimento chega a ser preocupante para especialistas de saúde.

Então, com muita gente em casa com tempo livre, o que fazer? Estudar, assistir a um curso online, aprender um instrumento, ver filmes e séries por streaming, cozinhar. Há várias opções, mas o destaque vai para a indústria dos games: empresas estão liberando jogos gratuitos, aplicando promoções incomuns, lançando modos de jogo. Tudo para aproveitar a disponibilidade dos jogadores. Bem ou mal, tem ajudado.

O psicanalista Carlos André Donzelli citou que o isolamento é algo totalmente novo e esse “desconhecido” gera medo nas pessoas, em como se portar. “Todas [as pessoas] estão sendo confrontadas com essa questão, inclusive questões éticas: de ficar ou não em casa”, disse em entrevista ao Tecnoblog.

“Isso gera frustração e também ansiedade. De repente, uma pessoa acostumada a seguir uma linha, tem um monte de opções à disposição. Também tem a questão de não saber lidar com si próprio, elas [as pessoas] estão parando agora para pensar. Com a rotina anterior, ninguém parava em casa. Agora, todos têm que se reinventar. Para alguns, é a primeira vez que estão entrando em contato consigo mesmo”, explicou, sobre o momento do isolamento.

Em relação ao mundo dos jogos, Donzelli — que já trabalhou com produção de conteúdo de games — disse que há uma libertação do nosso mundo real “cinza”, como chamou, ao imergir nesse universo. “Quando vou para o game, há vários pontos que posso trabalhar, desde as regras, o empenho, a competição. Estou livre das leis do mundo real. Se eu errei, reinicio e começo de novo. Isso acaba diminuindo a sensação de frustração e de ansiedade”.

Para ele, é uma forma de escapar desse momento em que não devemos sair de casa. “Essa imersão dos gráficos, das músicas e dos cenários trazem um certo alento. Ocupo minha cabeça naquele momento e trabalho com questões cognitivas. Serve como alívio para esse cenário novo [da pandemia]”, completou.

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O cenário de Ori and the Will of the Wisps é reconfortante

É isso que espera Thalles Cristiano, jornalista de 23 anos e que disse ao Tecnoblog ser fã de videogames desde sempre. Há cerca de três semanas, ele fica o dia todo em casa e mergulhar nesse universo é o que tem feito: “Agora [com o isolamento] que temos mais tempo para pesquisar coisas, para ficar atento às novidades, estamos sempre buscando jogar, experimentar. Quando acaba um jogo já procuro um próximo para ocupar o tempo”, afirmou.

“Quando eu estou jogando eu não me estresso. Estou sempre focado e atinjo um nível de concentração com a jogatina, com o que eu estou fazendo, que normalmente eu não atingiria em situação nenhuma da minha vida”, completou. Ver filmes e séries, para Thalles, é uma atividade em que ele se dispersa com o tempo, dando espaço para “preencher a mente com os problemas da vida”, diferente do videogame.

Não fossem os jogos, ele citou que estaria tentando ocupar a cabeça de alguma forma, com algum projeto paralelo ou uma atividade mais produtiva. Mas, ainda há muito conteúdo para explorar.

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Se quiser, pode até viajar para outro mundo com The Outer Worlds

A oportunidade da indústria de videogames

Thalles é assinante do Xbox Game Pass, um serviço da Microsoft que dá acesso a uma biblioteca de jogos sem custo adicional, no PC ou no Xbox (é comum pensar como uma “Netflix de jogos”), e por lá tem aproveitado promoções do Deals with Gold (descontos inclusos no Game Pass) para adquirir jogos e se entreter nesse período.

Mas não foi só a Microsoft que abraçou a oportunidade: a Sony já é conhecida por ter muitas promoções dentro da PS Store, a última notável foi a Tesouros Ocultos, que teve descontos de 20% a 98% em 260 jogos — oferta expirou em 20 de maio.

A marca também lançou a iniciativa “Play At Home”, na qual deu Uncharted: The Nathan Drake Collection (que inclui os três jogos da franquia da Naughty Dog remasterizados para o PS4) e Journey, além de alocar US$ 10 milhões para apoiar desenvolvedores e parceiros independentes.

Outra campanha para distribuir conteúdo gratuito foi a “Play Your Part, Play At Home” da Ubisoft, com finais de semana de títulos gratuitos como Rayman Legends, Child of Light, Rabbids Coding e Assassin’s Creed Odyssey. Esse último, inclusive, ganhou, junto com o Assassin’s Creed Origins, o modo Discovery Tour, em que permite passear pelo cenário para aprender sobre os locais e civilizações antigas sem se preocupar com a campanha — uma forma de usar os games para a educação.

Já a Nintendo viu seu atual console, o Nintendo Switch, alcançar 55,77 milhões de vendas desde o lançamento, em 2017. Só no primeiro trimestre deste ano, foram 3,29 milhões de unidades e ouso dizer que só não vendeu mais por falta nos estoques, devido a paralisação das fábricas e da logística para exportação.

Mas, o grande destaque da empresa japonesa vai para Animal Crossing: New Horizons. Lançado em 20 de março, chegou a 11,77 milhões de unidades vendidas nos dez primeiros dias. A Nintendo revelou que o número já passou de 13,41 milhões nas primeiras seis semanas, tornando o sexto jogo mais vendido do Switch.

Animal Crossing é um caso à parte: o jogador é levado para uma ilha deserta para viver a vida à sua maneira. Pode-se pescar, plantar, personalizar a ilha, trazer novos moradores ou mesmo se reunir com outros amigos que também tenham o jogo para fazer algo juntos. Tudo sem pressa e ao som de uma trilha sonora relaxante.

E considerando que não é recomendado sair de casa, Animal Crossing consegue transmitir esse sentimento de exploração e companhia à comunidade do game, já que o modo multiplayer permite que um vá até a ilha do outro. Tal relevância também pode ser medida pelas redes sociais infestadas de publicações de jogadores compartilhando suas criações ou descobertas.

E os jogos de mesa ou tabuleiro? A Wizard of the Coast, de Magic The Gathering, criou uma versão online (no MTG Arena) do Friday Night Magic — um evento semanal que reúne (reunia) pessoas em lojas físicas para trocar experiências do jogo. Ao participar dessas edições “FNM em Casa”, os jogadores foram recompensados pela loja em que se encontravam.

E por aí vai. Há demanda e há oferta. Só no primeiro trimestre deste ano, os Estados Unidos bateram um recorde de consumo com videogames: foram US$ 10,9 bilhões, uma marca nunca alcançada trimestralmente. Desse montante, US$ 9,6 bilhões vieram de microtransações, enquanto o restante de destaques como Call of Duty: Modern Warfare, Doom Eternal, Dragon Ball Z: Kakarot, Fortnite, GTA V, Minecraft e outros além, claro, de Animal Crossing.

E por falar em demanda…

Com vários jogadores disponíveis em casa, maior é o interesse de desenvolvedores em lançar modos de jogo, campanhas (como citadas acima) ou mesmo títulos para aproveitar esse aumento repentino de pessoas dispostas a descobrir conteúdo novo.

Em entrevista ao Tecnoblog, Cleyton Palauro, que é especialista em desenvolvimento de games para educação, para treinamento corporativo e docente na rede Senac São Paulo, comentou que houve uma mudança no consumo e na forma como estão buscando os jogos. “Hoje tem uma reunião muito maior e um tempo muito maior [com as pessoas em casa]”, falou.

Palauro chegou a ser procurado por algumas empresas que precisavam de profissionais da área. “Empresas que trabalham no desenvolvimento de games começaram a ter uma demanda muito maior por conta do público que aumentou para consumir o jogo”, explicou. O argumento das desenvolvedoras foi de que havia modos de jogos para antecipar porque a “hora era perfeita” para apresentar esse conteúdo ao público.

Games / Alex Haney / Unsplash

Apesar do foco em treinamento corporativo e educação, Palauro também comentou sobre o modo Discovery Tour de Assassin’s Creed ser usado como alternativa e de caráter educativo. “Traz todo o conhecimento de uma forma exploratória. Isso agrega muito para a educação e é o que a gente espera para o futuro”, disse.

Pause o jogo e vá tomar um banho

Ainda que o momento seja propício e não haja tantos outros atrativos para passar o tempo em casa, jogar por uma jornada longa de horas seguidas pode ser prejudicial à saúde, especialmente se essa for a única atividade durante todo o dia de uma pessoa.

O psicanalista Donzelli falou que o problema aparece quando os jogos começam a se tornar uma adicção. “De repente a pessoa tem tanta frustração no mundo real, de estar lidando com essas coisas que não são cenários conhecidos, não tem tantas recompensas e o empenho tem que ser maior, que elas acabam ficando somente no universo seguro do game, ali ela sabe como se portar”, explicou. “Isso acaba gerando esse sentimento de insegurança”, complementou.

A preocupação de Donzelli é a volta ao cotidiano. “O jogo é uma simulação do real, mas ali eu sou senhor de mim mesmo. O problema é quando [a pessoa] começa a internalizar esses mecanismos psíquicos de não suportar uma frustração, de querer que a regra que passe a valer no mundo sejam só as delas. Esse é o grande nó que temos que tentar mediar como profissionais de saúde”, refletiu.

Pessoa jogando / Rhett Noonan / Unsplash

A sugestão é equilibrar, usar como entretenimento, mas também manter outros elementos e interesses durante o dia. “É tentar estabelecer uma rotina de coisas não só ligadas à tecnologia, mas fazer um curso, ler alguma coisa, estudar um instrumento, assistir um filme ou série. Procurar coisas para se nutrir nesse momento de incerteza. Tentar usar o que chamamos de energia de vida para coisas produtivas, mas também curtir o ócio e não se cobrar tanto de não estar fazendo nada”, sugeriu.

Donzelli acredita que o resultado desse experimento, de jogar por horas e dias a fio, deve vir só daqui a uns 20 anos, para esclarecer o impacto das mídias na forma em que as pessoas se relacionam com o mundo.

Enquanto o momento é este, de ficar em casa para proteger também os outros, não faz mal aproveitar sem culpa aquele videogame parado na estante – desde que haja moderação, desde que faça as pausas necessárias, seja para comer ou… tomar um banho.

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Lucas Lima

Lucas Lima

Coordenador de conteúdo

Lucas Lima trabalha no Tecnoblog desde 2019 cobrindo software, hardware e serviços. Pós-graduando em Data Science, formou-se em Jornalismo em 2018 e concluiu o técnico em Informática em 2014, mas respira tecnologia desde 2006, quando ganhou o primeiro computador e varava noites abrindo janelas do Windows XP. Teve experiências com comunicação no poder público e no setor de educação musical antes de atuar na estratégia de conteúdo e SEO do TB.