Domínio público do Mickey em 2024 tira Disney da zona de conforto
Mickey mudou a legislação para evitar cair em domínio público; propriedade da Disney sobre Steamboat Willie acaba em 2024
Mickey mudou a legislação para evitar cair em domínio público; propriedade da Disney sobre Steamboat Willie acaba em 2024
Em menos de dez anos o Steamboat Willie (1928), a primeira versão do Mickey, alcançará os 100 anos de publicação. Em 2024, passados os seus 95 anos, a edição cairá em domínio público. Após tantas vezes conseguir mudar a legislação para manter a propriedade do personagem mais famoso da Disney, a empresa não dá indícios de que tentará outra investida. Uma nova leva de desafios está por vir. Fora da zona de conforto, a Disney terá que usar outros argumentos e recursos para preservá-lo, quando cair nas mãos de todos, por força da lei.
A resposta é: o Mickey será de domínio público. Assim como as 50 obras de Sherlock Holmes publicadas antes de 1923, as quais não foram englobadas pela nova legislação estadunidense, já estão em domínio público. Ou seja, qualquer pessoa pode criar novos conteúdos baseados no personagem que aparece nessas primeiras 50 histórias criadas por Arthur Conan Doyle.
No caso de Sherlock Holmes, menos de 10 obras publicadas entre 1925 e 1927 estão fora do domínio público. Essas ainda devem ser licenciadas para que seja feito uso ou reprodução do personagem assim como qualquer outro elemento das obras sob proteção da lei de copyright dos Estados Unidos.
O mesmo deve ocorrer com o Mickey Mouse em 2024, quando o prazo do direito autoral expirar. A partir de 1º de janeiro de 2024, se nada for alterado em relação à legislação atual, qualquer pessoa poderá usar o Mickey sem um acordo de licença. Entretanto, isso diz respeito apenas a versão que aparece no curta-metragem do Steamboat Willie, de 1928 — a qual está protegida até 2023, no limite dos 95 anos após a primeira publicação.
Lembrando que, em Steamboat Willie, o personagem aparece sem as luvas brancas e em preto e branco. Apenas essa versão do Mickey será de domínio público em 2024. Outros elementos, como as luvas e as cores que conhecemos hoje, foram introduzidos em versões posteriores que ainda estarão protegidas pela lei de copyright por mais alguns anos.
A primeira lei de direito autoral surgiu nos Estados Unidos em 1909. Ela permitia que um autor mantivesse e pudesse lucrar com sua obra por 56 anos. Em 1984, o Mickey Mouse já deveria ser de domínio público, mas isso não ocorreu.
Na década de 70, a Disney já era grande, com a Disneyland, a Disney World, o Mickey Mouse Club e outros conteúdos também para a TV. O sucesso não se restringia apenas à produção audiovisual. Foi nessa década que ocorreu a primeira investida da companhia para preservar o domínio sobre o rato.
Em 1976, o Congresso dos Estados Unidos aprovou, a partir de intervenções da Disney, uma nova lei que prorrogou o prazo de direito autoral de obras que ainda não estavam em domínio público de 56 para 75 anos. Sendo assim, o Mickey Mouse do Steamboat Willie estaria protegido até 2003.
Próximo desse prazo, Michael Eisner, o então diretor executivo da Disney, passou a visitar escritórios de políticos para conversar sobre uma nova prorrogação do prazo de expiração do direito autoral de uma obra.
Só que o terreno vinha sendo preparado pouco antes da nova mudança ocorrer. o Tech Insider mostrou que, desde o início da década de 90, a Disney passou a doar dinheiro em lobby político. Entre 1992 e 1998, foram doados mais de US$ 4 milhões pela companhia.
O projeto foi introduzido pelo produtor, cantor, ator e político Sonny Bono (Salvatore Phillip “Sonny” Bono, ex-marido de Cher) e, após aprovado, foi assinado em 27 de outubro de 1998, pelo presidente Bill Clinton, estendendo o prazo de propriedade do direito autoral para 95 anos.
É assim que Steamboat Willie está protegido até 2023 com a legislação que ficou conhecida como “Sonny Bono Act” ou “Mickey Mouse Protection Act”.
Com um salto de 56 para 95 anos de propriedade do direito autoral, a Disney não era a única beneficiada nessas legislações. Obviamente que, se não fosse por ela, outras empresas poderiam arriscar a investida para propor uma extensão do prazo de expiração do domínio de uma obra.
O fato é que a Disney tinha força para fazer isso e ela não queria correr o risco de ver seu personagem mais lucrativo cair em domínio público. Ao proteger o Mickey, outras empresas poderiam continuar lucrando com seus próprios personagens.
Se o prazo para uma obra continuasse em 56 anos, além do Mickey, alguns dos personagens que já pertenceriam ao domínio público seriam: Batman (1939), Super-Homem (1938), Homem-Aranha (1962), Capitão América (1940), Perna-Longa (1940), os X-Men (1963), Tom e Jerry (1940), Os Flintstones (1960), Os Jetsons (1962), Pica-Pau (1940)…
Basicamente, neste ano de 2020, todos os personagens criados antes de 1963 já estariam em domínio público. Com a duração de 56 anos, a propriedade das empresas sobre obras anteriores a 1963 acabaria em 2019.
E como seria o mercado hoje se os principais personagens de grandes estúdios estivessem em domínio público? O Batman, por exemplo, poderia ser usado por qualquer um, a partir de 1996. Já Homem-Aranha, de 1962 e que tanto é disputado entre a Sony e Marvel pelos direitos no cinema, a esta altura, receberia adaptações de qualquer estúdio — desde que não extrapolasse os limites da primeira versão.
Digamos que haveria uma maior flexibilidade em relação à criação de conteúdo para essas figuras. Obviamente que as maiores produções ainda viriam dos estúdios que os lançaram, pelo maior investimento ou credibilidade.
Voltemos o foco ao Mickey, preto e branco e sem as luvas. A realidade é que esse “modelo” é o que menos está nas prateleiras. O personagem ascende em épocas comemorativas, diga-se de passagem as exposições dos 90 anos do personagem que tivemos em 2018 e 2019.
Ainda assim é o Mickey. Como nostalgia é um negócio rentável, a celebração para os 95 anos do personagem está bem próxima, em 2023. É o último aniversário dele antes de entrar em domínio público. Nos 100 anos, que ocorrerá em 2028, muita coisa deve estar diferente. E o que a Disney poderá fazer?
Como o Ars Technica reportou em 2018, o grande conglomerado de mídia de Hollywood — a Motion Picture Association of America, a Associação Americana da Indústria de Gravação e a Authors Guild — não tem interesse em estender o prazo de expiração dos direitos autorais.
Os tempos são outros. Na década de 90, enquanto a Disney conquistava influência no cenário político a partir de lobby para conseguir mudar a legislação, não havia tantos grupos, também de lobistas, do outro lado, contra a extensão do copyright.
O último exemplo que temos é relacionado às propostas da SOPA (Stop Online Piracy Act ou Lei de Combate à Pirataria Online) e o PIPA (Protect IP Act ou Lei de Proteção Online Contra Roubo de Criatividade ou Propriedade Intelectual).
Esses dois projetos tinham o objetivo de proteger o direito autoral, propriedade intelectual e combater a pirataria. Entretanto, as medidas para isso eram extremas, chegando a obrigar mecanismos de busca a excluir as páginas suspeitas dos resultados ou servidores de DNS a colocar os endereços em uma lista negra, o que foi interpretado como censura.
Os manifestos, em 2012, contra as duas propostas acima, mostraram o outro lado da moeda: a força popular e de empresas contrárias às novas legislações que propõem mudanças nas regras de direito autoral.
Sem expectativas de uma nova lei, resta apelar para a marca registrada, se isso for possível. A marca registrada não tem vencimento, ou seja, não expira como a propriedade do direito autoral. As marcas registradas do Mickey permanecerão sob domínio da Disney para sempre.
Teremos que esperar para ver se o argumento poderá ser usado para impedir reproduções do Mickey em 2024, com alegação de violação da marca registrada da companhia.
De acordo com históricos anteriores, o judiciário estadunidense recusou argumentos de marca registrada para impedir a reprodução e modificação de uma obra em domínio público. O caso ocorreu em 2003, quando uma empresa chamada Dastar modificou e republicou partes de um documentário que antes pertencia a 20th Century Fox.
A Disney deve ter excelentes advogados estudando maneiras de controlar a produção paralela de conteúdos para o Mickey de 1928. Mas, será mesmo que conseguirão?
Não dá para prever o que acontecerá daqui a alguns anos. Eu acredito que a resposta da empresa será a produção genuína de novos atrativos do Mickey (animações, características, histórias e colecionáveis), os quais permanecerão sob propriedade da empresa e de seu poder de distribuição.
O Mickey de 1928, de Steamboat Willie, é preto e branco, não usa luvas e tem uma personalidade maliciosa. Essa é a versão que entra em domínio público a partir de 2024. Nada mais que isso neste ano.
Para adicionar às luvas às suas produções, os criadores devem esperar até 2025, quando a versão The Opry House também entrar em domínio público.
Um Mickey colorido aparece pela primeira vez em 1935, em The Band Concert, mas é em Mickey’s Garden, do mesmo ano, que ele aparece com seu uniforme tradicional, suas luvas tem um amarelado, ao invés de serem brancas.
Em 1936, no episódio Moving Day, as luvas são brancas e os sapatos deixam de ter cores tão vibrantes.
O Mickey moderno, como estamos acostumados, surgiu em 1939. Em Mickey’s Surprise Party o personagem tem um aspecto mais humano, encorpado e com expressões melhores. Uma notável diferença está em seu olho, que deixa de ter apenas uma forma oval preta para ter características de um globo ocular.
Audiovisual | Ano de publicação | Ano do domínio público |
Steamboat Willie | 1928 | 2024 |
The Opry House | 1929 | 2025 |
The Band Concert | 1935 | 2031 |
Mickey’s Garden | 1935 | 2031 |
Moving Day | 1936 | 2032 |
Mickey’s Surprise Party | 1939 | 2035 |
Por que tudo isso é importante?
Os criadores ansiosos por 2024 devem se atentar a cada detalhe e evolução do personagem ao longo dos anos para não serem pegos por produções ainda protegidas pela lei do direito autoral.
Desde aspectos físicos, falas, ações e até a personalidade do personagem devem ser meticulosamente analisadas antes de qualquer publicação. Se os criadores não fizerem isso, a começar pelas obras de 1928, pode ter certeza que os advogados da Disney o farão.
Com informações: Ars Technica 1, Ars Technica 2, Globo 1, Globo 2, Tech Insider (YouTube), Dave Lee Down Under (YouTube).