Google

Muita gente ainda vê o Google como uma empresa jovial, que inova por tocar os seus negócios com uma cultura que destoa dos padrões corporativos. Parte desse modo de trabalho é refletida em uma frase que virou mantra da companhia logo nos seus primeiros anos: não seja mau (don’t be evil). Mas já não é assim, tanto que o Google removeu a expressão quase que totalmente do seu código de conduta.

O que mudou, afinal de contas?

Don’t be evil

A frase foi adotada oficialmente em 2004, quando a companhia passou a ser listada na bolsa de valores. A despeito disso, o Google ainda carregava uma imagem de startup por conta dos seus escritórios coloridos e informais, mimos para funcionários que incluem salas de jogos e comida à vontade, além de uma preocupação declarada e até então atípica com o bem-estar do usuário — ou algo próximo disso.

O ambiente dos escritórios até hoje lembra o campus de uma universidade. De fato, a empresa se esforçou no começo para ter uma atmosfera universitária. Durante anos, essa foi uma forma de atrair talentos e as mentes recém-formadas mais promissoras. A estratégia teve grande relação com o mantra. Apesar de ter sido adotada para valer em 2004, a frase surgiu por volta de 2000, quando o Google já despontava como uma empresa disruptiva.

Janet Lowe, autora do livro Google: lições de Sergey Brin e Larry Page, explica na obra que, naquela época, a companhia tentava envolver os funcionários no estabelecimento de objetivos para a empresa. Predominantemente jovens, os engenheiros rejeitavam rituais corporativos, por assim dizer, razão pela qual não gostavam daquelas reuniões. Até que um deles, Paul Buchheit (um dos principais desenvolvedores do Gmail), disse que todas as ideias tratadas ali poderiam ser resumidas na frase “não seja mau”.

Deu certo, a frase pegou, tanto que passou até a ser interpretada como o slogan do Google. Quem é que não quer trabalhar em uma companhia com uma postura tão positiva? Quem não quer utilizar serviços que, além de inovadores, são conduzidos por uma empresa que se recusa a seguir por caminhos errados? Mas havia um problema.

Sala de jogos do Google na Suíça
Sala de jogos do Google na Suíça

O que é maldade?

Parece simples, mas não é. O próprio Google tinha dificuldades para definir “maldade” dentro da sua cultura — seria assim com qualquer outra empresa. No livro, Janet Lowe cita uma aparente falta de interesse de Eric Schmidt pelo assunto: certa vez, o então CEO do Google afirmou que maldade era qualquer coisa que Sergey Brin (cofundador) dissesse ser.

Era uma brincadeira, é claro, mas que fazia referência ao fato de o próprio Brin ter participado de diversas discussões sobre o assunto e percebido a complexidade do lema: “sempre há alguém chateado, não importa o que gente faça. Temos que tomar decisões, senão, começa um debate interminável”, disse Brin em entrevista à Playboy norte-americana em 2004.

Há muitos exemplos de situações que colocaram o mantra contra a parede. O Chrome é um deles (veja bem, apenas um). Esse é o navegador mais popular da atualidade, mas, antes do seu lançamento, o Google apoiava abertamente o Firefox, tendo inclusive remunerado editores que promoviam o browser em seus sites via AdSense.

Era uma relação tão próxima que muita gente achou que o Google traiu a Mozilla. A companhia teria promovido o Firefox apenas para derrubar o domínio do Internet Explorer enquanto ganhava tempo para criar o próprio navegador. Aí começa a discussão: mesmo sendo totalmente capaz de desenvolver um navegador, o Google foi maldoso ao deixar de apoiar o Firefox em prol de uma solução própria?

Por aí já dá para perceber que, frequentemente, o entendimento sobre maldade vai depender do lado afetado. Talvez seja por conta disso que o Google passou a fazer o mantra valer no sentido de proteger os interesses do usuário. Isso não quer dizer, necessariamente, que a companhia começou a prejudicar rivais, mas que não deixou de adotar estratégias competitivas apenas para não parecer má.

Larry Page, Eric Schmidt e Sergey Brin (Foto: Forbes)
Larry Page, Eric Schmidt e Sergey Brin

Faz sentido se levarmos em conta que o Google teve, pelo menos nos seus primeiros anos, uma preocupação muito forte em não tornar os seus serviços inconvenientes para o usuário. É o que fez a companhia não aceitar dinheiro em troca de priorizar determinados sites nas buscas ou o que impediu a página principal do buscador de ter muitas informações.

Essa abordagem tem íntima relação com outro lema dos primeiros anos do Google: atraia usuários primeiro, preocupe-se em fazer o serviço dar dinheiro depois. Foi assim com o Gmail, Maps e vários outros produtos.

O problema é que o dinheiro precisa mesmo entrar. Investidores e acionistas querem ser recompensados e vão pressionar. Aí o Google teve, cada vez mais, que recorrer à moeda de troca dos seus serviços: os dados dos usuários. Para dar uma noção, eles passaram a ser usados para exibir anúncios contextualizados no topo dos resultados de busca, ideia inadmissível muitos anos atrás.

Outro exemplo: o Google foi criticado por “ler” as mensagens no Gmail. Na verdade, os algoritmos apenas faziam uma análise do conteúdo para exibir anúncios relacionados. Mesmo assim, a companhia vivia tendo que justificar essa abordagem. Os questionamentos só pararam no ano passado, quando o Gmail deixou de ser considerado na exibição de publicidade.

Esse são só alguns exemplos. Vira e mexe o Google precisa lidar com questões ligadas à privacidade. Até situações mais complexas, como a acusação de abuso de poder de mercado pela União Europeia em 2015, têm como base os dados dos usuários. É por isso que, ao longo dos anos, o Google foi se distanciando do seu lema.

Faça a coisa certa

Isso não significa que o Google decidiu ser mau. O “don’t be evil” pode ter funcionado por algum tempo, mas hoje já não faz sentido por se mostrar muito subjetivo.

Por conta do Android, serviços nas nuvens e tendências tecnológicas, o Google teve que se aproximar de companhias tradicionais. De certa forma, isso o faz não ser muito diferente delas. A criação da Alphabet prova que a postura anticorporativista foi só uma fase. A consequência está em decisões que podem ser consideradas boas ou maldosas, tudo depende do contexto.

Alphabet

Não por menos, o mantra já foi duramente criticado. Steve Jobs já o chamou de besteira; Jeff Bezos, o chefão da Amazon, certa vez disse que não se deve mesmo ser mau, mas também “que ninguém deve se gabar por isso”.

Recentemente, o Gizmodo notou que o mantra foi retirado sem alarde do código de conduta da Alphabet, havendo apenas uma menção a ele no final do documento. Mas, na prática, é assim há algum tempo: desde o surgimento da Alphabet, o lema tem sido “faça a coisa certa” (do the right thing).

A frase não tem o mesmo impacto, mas pelo menos traz mais flexibilidade para o Google tomar decisões que podem ser consideradas positivas sob determinadas circunstâncias e negativas em outras. Basicamente, se elas estão dentro da lei ou podem ser defendidas em vez de justificadas, para a Alphabet está tudo bem.

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Emerson Alecrim

Emerson Alecrim

Repórter

Emerson Alecrim cobre tecnologia desde 2001 e entrou para o Tecnoblog em 2013, se especializando na cobertura de temas como hardware, sistemas operacionais e negócios. Formado em ciência da computação, seguiu carreira em comunicação, sempre mantendo a tecnologia como base. Em 2022, foi reconhecido no Prêmio ESET de Segurança em Informação. Em 2023, foi reconhecido no Prêmio Especialistas, em eletroeletrônicos. Participa do Tecnocast, já passou pelo TechTudo e mantém o site Infowester.

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