Ônibus por app: a briga entre Buser e viações tradicionais

Os detalhes da briga que sacode o setor de ônibus: de um lado, serviços como Buser; do outro, empresas de linhas rodoviárias

Emerson Alecrim
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• Atualizado há 1 ano
Ônibus por app (imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog)
Ônibus por app (imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog)

A Uber mudou a forma como as pessoas usam transporte individual e, por um tempo, despertou a ira de taxistas. O Airbnb ampliou as opções de hospedagem e deixou o setor hoteleiro sobressaltado. Mas, para o segmento de ônibus rodoviário, nenhuma ameaça despontava no horizonte. Isso até 2017, quando uma startup chamada Buser surgiu no Brasil.

De repente, um sem-número de pessoas percebeu que poderia chegar às principais cidades brasileiras viajando em ônibus com qualidade equivalente aos que são oferecidos em linhas regulares, mas pagando menos e precisando recorrer apenas a um aplicativo.

O problema é que os usuários viajam no meio de um fogo cruzado. De um lado estão Buser e plataformas similares que defendem um modelo de “fretamento colaborativo”. Do outro, órgãos fiscalizadores (como a ANTT) e empresas de ônibus tradicionais que acusam os novos serviços de concorrência desleal.

Qual é o alcance dessa briga? Para tentar descobrir, eu conversei com Marcelo Abritta, cofundador e CEO da Buser, e Letícia Pineschi, conselheira da Abrati, associação que reúne as maiores empresas de transporte rodoviário interestadual do Brasil.

Fretamento colaborativo

A página Sobre do site da Buser diz como o serviço nasceu. Em 2016, Marcelo Abritta precisava organizar uma viagem para 30 pessoas saindo de Minas Gerais para Arraial d’Ajuda (BA) para a celebração de seu casamento. Ao fretar um veículo para o grupo, ele descobriu que os custos eram inferiores ao total que seria gasto se cada pessoa fizesse a viagem por linha de ônibus.

O episódio serviu para que Abritta tivesse a ideia de criar uma plataforma que permitisse a formação de grupos interessados em viajar de um local específico para outro e fretasse ônibus para isso. Oito meses depois, a Buser realizava a sua primeira viagem. Trata-se de um modelo de operação que a startup chama de fretamento colaborativo.

De fato, todos os ônibus que operam para a Buser pertencem a empresas de fretamento. A startup em si não é dona de nenhum veículo, nem mesmo daqueles que ostentam a marca do serviço.

Ônibus ligados à Buser (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)
Ônibus ligados à Buser (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)

Sempre que questionada a respeito, a Buser se define como uma plataforma de tecnologia que conecta empresas de fretamento e passageiros, não como uma empresa de ônibus.

Essa conexão começa no site ou aplicativo da Buser. O usuário faz um rápido cadastro no serviço e depois precisa apenas pesquisar entre os vários destinos disponíveis. Cada trecho oferecido corresponde a um grupo. Se o grupo for confirmado, a viagem será realizada no dia e horário marcados por uma das empresas de fretamento credenciadas.

Não existe passagem na Buser. O valor pago por cada passageiro corresponde a uma parcela de um rateio. É por isso que, se não houver um número suficiente de viajantes para cobrir os custos da viagem, o grupo poderá não ser confirmado.

Um grupo não confirmado se traduz em viagem não realizada. Mas, para muitos usuários, o fator economia faz valer a pena correr esse risco: os custos de viagens confirmadas são até 60% menores em relação aos preços de passagens de linhas regulares.

Sem nenhuma surpresa, as empresas de ônibus que operam essas linhas não gostaram nem um pouco disso.

Abrati: Buser é serviço clandestino

A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati) representa mais de 70 empresas de ônibus rodoviários no Brasil. Entre elas estão nomes muito conhecidos e tradicionais, como Águia Branca, Andorinha, Cometa, Garcia, Guanabara, Ouro e Prata e Progresso.

Ônibus da Águia Branca e Cometa no Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)
Ônibus da Águia Branca e Cometa no Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)

No final de outubro de 2020, a entidade realizou uma campanha de conscientização contra o transporte clandestino, problema antigo e crônico no Brasil — o acidente que matou cerca de 20 pessoas em Minas Gerais no último dia 4 foi causado por um ônibus irregular.

Para divulgar a campanha, a Abrati realizou uma coletiva de imprensa em 28 de outubro. Inevitavelmente, o assunto dos aplicativos de transporte foi levantado por jornalistas presentes. Eduardo Tude, presidente da associação, não hesitou em classificar Buser e afins como serviços clandestinos.

Mas, se os serviços por aplicativo operam com empresas de fretamento, o que há de irregular nisso? Em entrevista realizada duas semanas depois, Letícia Pineschi, conselheira da Abrati, explicou ao Tecnoblog o posicionamento da entidade.

A executiva destacou que, como plataforma para fretamento de ônibus, a proposta original da Buser não é ruim, pois corresponde a um serviço privado. O problema é quando esse tipo de operação intervém no serviço público, a modalidade oferecida via linhas regulares.

Para prestar transporte público coletivo de passageiros, as empresas do setor precisam seguir uma série de obrigações para garantir universalidade, continuidade e disponibilidade de serviço, explica Pineschi.

Entre as obrigações estão cumprimento de horários (os ônibus partem mesmo se tiverem poucos passageiros), manutenção de frota, treinamento de motoristas, disponibilização de pontos de apoio (para descanso de motoristas e ônibus reservas) e gratuidade de transporte para idosos e jovens carentes (ID Jovem) sob determinadas condições (benefício não existente nos serviços por app).

Dentro das regras do serviço público você abraça toda a população. Os mais favorecidos, os menos favorecidos, aquelas pessoas cujo único meio de locomoção do ponto A para B é o transporte público.

Letícia Pineschi

Outra obrigação das empresas que operam o serviço público é o chamado subsídio cruzado. Isso significa que a companhia pode operar trechos mais movimentados e rentáveis, mas também deve assumir linhas pouco ou nada lucrativas (normalmente, para atendimento a cidades pequenas).

Com relação a esse ponto, as empresas de linha regulares reclamam que Buser e afins colocam veículos apenas em trechos rentáveis. De acordo com Pineschi, isso causa um desequilíbrio no serviço público, pois as empresas de ônibus perdem demanda nas linhas que são rentáveis e, mesmo assim, precisam operar as deficitárias.

Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)
Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)

O preço é um barato que sai caro?

A vertente tecnológica da Buser é um dos atrativos da plataforma, mas o próprio Marcelo Abritta, CEO da empresa, reconhece que o fator preço é o maior chamariz: na comparação com as passagens dos serviços rodoviários tradicionais, as viagens pela plataforma chegam a custar até 60% menos. Mas será que isso não é refletido negativamente na qualidade do serviço?

Na primeira olhada, os pontos de embarque e desembarque da Buser fazem parecer que sim. Na capital paulista, por exemplo, o principal local para saída e chegada de passageiros é um estacionamento que fica ao lado do Terminal Rodoviário do Tietê, ponto que também é utilizado por outras plataformas do ramo, como a 4bus.

Entrada para embarque da Buser ao lado do Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)
Entrada para embarque da Buser ao lado do Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)

Tudo ali é improvisado. Não há banheiros, restaurantes ou lojas de conveniência. O único conforto para os passageiros que esperam o momento de embarcar são alguns bancos pintados com a cor rosa da Buser.

Quando questionado sobre isso, Abritta explicou que as estruturas para embarque e desembarque são melhoradas aos poucos. Ainda em São Paulo, embarques também estão sendo realizados no Shopping Eldorado, por exemplo.

No Rio de Janeiro (RJ), os clientes sobem e descem dos ônibus em um estacionamento ao lado do posto GNV Glória, mas outro ponto está sendo preparado para esse fim.

Ponto de embarque da Buser ao lado da Rodoviária do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)
Ponto de embarque da Buser ao lado do Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)

O CEO da Buser ainda destaca que, embora esses locais possam parecer desvantajosos, eles são bem localizados e, por isso, muitos clientes preferem embarcar a partir deles do que ter que ir para uma estação que fica distante, a exemplo da Rodoviária do Rio (outrora conhecida como Rodoviária Novo Rio).

Outro aspecto que levanta desconfiança é o dos ônibus em si. Em sua maioria, as empresas de fretamento ligadas à Buser são de pequeno porte. Será, então, que os veículos oferecidos por elas são confiáveis? Abritta garante que a frota ligada à Buser não deve nada aos veículos das linhas rodoviárias.

Essas empresas têm muita experiência, fazem isso [transporte de passageiros] há décadas, são inspecionadas, respeitam as normas de segurança que regem o setor de fretamento e o de passageiros [em linhas], emitem nota fiscal, têm seguro, motoristas profissionais, enfim.

Marcelo Abritta

O CEO da Buser garante também que nenhum ônibus entra em operação na plataforma sem passar por inspeção e que, para reforçar a segurança nas estradas, a companhia contratou um serviço de telemetria que já está presente em 90% dos veículos — a meta é chegar em 100% em breve.

Até uma “câmera de fadiga” vem sendo instalada nos ônibus para monitoramento em tempo real dos motoristas.

Se a gente perceber que o motorista está com sinais de fadiga, mandamos ele encostar e enviamos outro condutor.

Marcelo Abritta

Ônibus no ponto de embarque da Buser (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)
Ônibus no ponto de embarque da Buser ao lado do Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)

Apreensões de ônibus e ações judiciais

A despeito desses cuidados, dois problemas têm dificultado as operações da Buser: numerosos processos judiciais e apreensões frequentes de veículos ligados à plataforma, principalmente em datas próximas a feriados.

Um exemplo: em 22 de outubro, a Buser usou as redes sociais para anunciar que, por determinação da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, não poderia atuar em Santa Catarina e no Paraná. Para o desembargador Rogerio Favreto, a Buser “não obteve prévia autorização para tal atividade, tratando-se de serviço irregular de fretamento”.

De acordo com Marcelo Abritta, a Buser já gastou R$ 15 milhões com as idas e vindas aos tribunais. Só recentemente a startup voltou a oferecer viagens de e para o Paraná. Santa Catarina tem apenas algumas rotas atendidas.

Em São Paulo, a situação é mais confortável. Em 9 de dezembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou improcedente um recurso do Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (Setpesp) que tentava barrar a Buser sob acusação de transporte ilegal de passageiros. Ainda cabe recurso.

Ônibus da 4bus, outro serviço de aplicativo (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)
Ônibus da 4bus, outro serviço de aplicativo (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)

Já as apreensões de veículos são tão ou mais problemáticas, pois interrompem viagens em andamento. Elas são promovidas principalmente pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), autarquia que, entre outras funções, regula linhas rodoviárias interestaduais e internacionais no Brasil.

Também cabe à ANTT ações de fiscalização. Nesse sentido, o órgão anunciou, em julho, a Operação Pascal, que visa combater o transporte clandestino de passageiros no país. Desde então, apreensões de ônibus ligados a plataformas como Buser e 4bus dispararam.

A ANTT tem reiterado que não fiscaliza aplicativos de transporte, mas empresas que fazem transporte interestadual de passageiros, sejam elas parceiras de serviços como Buser ou não.

Mas algumas ações têm sido marcadas por atritos entre fiscais da agência e representantes das empresas. Em novembro, a Associação dos Servidores da ANTT (ASEANTT) chegou a publicar uma nota de repúdio contra o que classifica como intimidações da Buser contra os fiscais do órgão.

A empresa diz que apenas tem denunciado agentes que não respeitam as decisões judiciais favoráveis à circulação dos ônibus das empresas ligadas à plataforma. “São sempre os mesmos fiscais, nas mesmas regiões”, diz Abritta.

Os imbróglios são se limitam à ANTT. Os serviços de aplicativos também enfrentam o rigor de órgãos estaduais, a exemplo da Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp). Para pôr fim ao que consideram perseguição, representantes da Buser e 4bus promovem protestos e, no início do mês, até se encontraram com o presidente Jair Bolsonaro.

Águia Flex e Wemobi: a reação

É difícil prever o desfecho dessa trama. De um lado estão serviços que, apoiados na tecnologia, promovem um modelo de negócio até então inédito no Brasil e bem aceito pelos usuários. Do outro, estão empresas que, para operar linhas de ônibus, são realmente condicionadas a seguir uma série de obrigações que não existem para a outra parte.

Os duelos nos tribunais não devem acabar tão cedo, consequentemente. Por conta disso, algumas empresas tentam responder à altura. Eis dois exemplos: a gigante Águia Branca criou a Águia Flex; já o Grupo JCA, responsável por companhias como Cometa, 1001, Catarinense e Expresso do Sul, criou a Wemobi.

Ônibus da Wemobi (imagem: divulgação/Grupo JCA)
Ônibus da Wemobi (imagem: divulgação/Grupo JCA)

As duas plataformas lembram o modelo de atuação da Buser, com a diferença de operarem apenas nos trechos nas quais Águia Branca e JCA têm autorização. Os usuários compram passagens pela internet com preços reduzidos e, dependendo da rota, podem embarcar ou desembarcar em pontos alternativos às rodoviárias (e que, portanto, também podem ter limitação de estrutura).

Letícia Pineschi, da Abrati, frisa que esses serviços aproveitam a infraestrutura (como frota e pontos de apoio) que essas empresas mantêm para operar linhas regulares, o que traz mais segurança para o usuário, e não canibalizam o serviço público: as viagens oferecidas são complementares e não substituem as partidas das rodoviárias.

Ônibus no Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)
Ônibus no Terminal Rodoviário do Tietê (imagem: Emerson Alecrim/Tecnoblog)

Não podemos esperar que cada empresa crie uma plataforma de viagens. Mas, mesmo sem esse tipo de serviço, Pineschi lembra que muitas companhias oferecem assentos com preços promocionais para bilhetes comprados com antecedência, abordagem que lembra a estratégia de companhias aéreas.

No fim das contas, o que o usuário espera encontrar é justamente isso, concorrência. Mas é preciso que essa concorrência seja saudável. Nos resta esperar que o poder público analise a questão e tome decisões com todo o cuidado que o assunto merece.

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Repórter

Emerson Alecrim cobre tecnologia desde 2001 e entrou para o Tecnoblog em 2013, se especializando na cobertura de temas como hardware, sistemas operacionais e negócios. Formado em ciência da computação, seguiu carreira em comunicação, sempre mantendo a tecnologia como base. Em 2022, foi reconhecido no Prêmio ESET de Segurança em Informação. Em 2023, foi reconhecido no Prêmio Especialistas, em eletroeletrônicos. Participa do Tecnocast, já passou pelo TechTudo e mantém o site Infowester.

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