Você deveria parar de prestar tanta atenção nas especificações de hardware dos smartphones

Comparar especificações técnicas faz cada vez menos sentido

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• Atualizado há 1 ano
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Nota do editor: O Gabriel Arruda é leitor de longa data do TB e sempre aparece na área de comentários dos posts para dar seus pitacos. Neste artigo, aproveitando a euforia do Apple A7 de 64 bits, além do nosso desejo por números cada vez maiores nas fichas técnicas dos smartphones, ele explica por que você deveria parar de prestar tanta atenção em especificações de hardware. (Paulo Higa)

O termo heurística é bastante utilizado em computação e se aplica muito bem a análise de especificações técnicas. Grosseiramente falando, a heurística é uma espécie de chute criterioso, um atalho para encontrar a solução de um problema mais rapidamente. Entretanto, esse atalho nem sempre resulta na melhor solução e quem o utiliza precisa ter consciência dessas falhas.

Comparar especificações de computadores é uma heurística. Ela já funcionou muito bem na era dos PCs mais simples, mas está ficando cada vez mais falha e desnecessária no universo heterogêneo dos smartphones e tablets. Além disso, poucos se preocupam com as falhas ao fazer essas comparações.

Temos duas opções para resolver o problema: estudar arquitetura de computadores ou utilizar outras formas de comparação, como benchmarks e reviews. O que você prefere não sei, só espero que as pessoas parem de comparar smartphones através de núcleos do processador.

IBM-PC: época de ouro das especificações

Até os anos 2000, qualquer geek que tivesse o mínimo de respaldo deveria montar o seu desktop escolhendo peça por peça: processador, memória, placa mãe, placa de vídeo, fonte, etc. Nessa época, praticamente tudo se resumia às especificações técnicas.

Não era uma ideia ruim: apesar de ser uma plataforma aberta a qualquer fabricante, os PCs nunca diferiram muito entre si. A esmagadora maioria roda Windows, processador Intel ou AMD e placa de vídeo Nvidia (3Dfx, dependendo da época) ou AMD. Comparando as especificações técnicas entre esses componentes, era possível comprar um bom computador.

O problema é que algumas dessas comparações deixaram de funcionar com o tempo, principalmente com o crescimento do mercado móvel e parece que ninguém ligou. Vou dar minhas suposições do porquê de algumas especificações terem se tornado tão importantes e explicar por que elas não fazem mais sentido.

O clock dos processadores

A comparação de processadores através de clock faz muito sentido, mas apenas se pertencerem a mesma “família” e possuírem os demais números razoavelmente equivalentes. Tentarei explicar o conceito de clock através de uma analogia simples: uma bomba manual para encher pneus.

Suponha que tenhamos duas pessoas com bombas exatamente iguais. A primeira pessoa consegue bombear 30 vezes por minuto, a segunda consegue bombear 60 vezes por minuto. A segunda pessoa será duas vezes mais rápida. Mas e se as bombas forem diferentes entre si?

Imagine que a bomba da primeira pessoa seja mais eficiente, ou seja, a cada bombeada mais ar seja expelido. Nesse caso, não podemos considerar apenas o número de vezes que a pessoa bombeia, medida que seria equivalente ao clock do processador. Ao comparar o clock de processadores distintos, você está cometendo o mesmo erro de comparar bombas distintas.

Apesar de processadores possuírem desempenhos diferentes com o mesmo clock, ele funcionou como métrica por muito tempo porque, a cada nova geração de processadores, o clock aumentava junto. A frequência de um processador novo costumava ser maior que a de um processador antigo. Isso foi verdade até chegarmos aos 3 GHz, quando as frequências maiores não se “popularizaram” no mercado doméstico.

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Esse “limite” chegou porque mais clock significa mais calor dissipado e mais energia consumida: ruim para desktops e inaceitável para dispositivos móveis. Desde então, a indústria passou a investir em outras formas de aumentar desempenho. As recentes disputas entre Intel e AMD mostram que a comparação de clocks já não funciona mais, mas isso é muito pior nos dispositivos móveis.

Os processadores da Intel e AMD são compatíveis entre si, ou seja, compartilham de arquiteturas similares para o qual o Windows é compilado. Isso não é verdade para processadores que equipam smartphones e tablets, eles podem ser muito diferentes entre si. Retomando a analogia, as “bombas” que Intel e AMD fabricam são muito mais parecidas do que as bombas que Qualcomm e Samsung fabricam. Isso pode deixar a comparação de clock mais frágil ainda.

Além disso, mais clock em seu smartphone deveria ser entendido mais como um problema do que vantagem: quanto será que esse aparelho irá esquentar e quanto minha bateria irá durar? Querer números grandes em seu smartphone como no seu desktop pode ser uma burrada.

Os famosos núcleos

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Eu disse que a indústria optou por outras estratégias para aumentar o desempenho dos processadores, a mais famosa delas é o paralelismo. Essa é uma questão mais sensível que o clock. A quantidade de núcleos não deve ser comparada nem entre processadores da mesma família, pois é possível que a sua aplicação não aproveite um incremento de paralelismo.

O maior problema dos núcleos é encontrar como separar o processamento entre eles. Isso não é simples, passamos gerações programando com apenas um processador. É muito mais complexo pensar em vários processadores. Além disso, há tarefas que não podem ser paralelizadas: não adianta colocar 9 mulheres para fazer um filho em um mês. O review do Moto X feito pelo AnandTech mostrou que seu processador de dois núcleos consegue se sair muito bem em algumas atividades que não se beneficiam do paralelismo, mas sim de seu clock mais elevado (provavelmente possibilitado pelos processadores auxiliares).

Além dos softwares precisarem ser bem adaptados para o paralelismo, a diferença entre processadores se agravou. Os processadores Core 2 Duo de 1,86 GHz eram mais rápidos que os Pentium D de 3,4 GHz, ambos com dois núcleos de processamento. A diferença era uma arquitetura muito melhor, desenvolvida para processadores paralelos. O Pentium D era baseado em dois processadores Pentium 4 que, no final das contas, nunca foi uma boa arquitetura. Ainda há outro detalhe para complicar mais a situação: existem outros tipos de paralelismo, como o famoso hyper-threading da Intel, que funcionam de forma diferente dos múltiplos núcleos.

Comparar clock entre processadores diferentes é errado, comparar núcleos então é uma insanidade. Ambas são medidas importantes de desempenho, mas que possuem muitas variáveis extras a serem observadas em conjunto. Ainda assim, melhor comparar quantidade de núcleos que o tamanho de registradores dos processadores.

Os bits dos processadores

iPhone 5s: primeiro smartphone com chip de 64 bits (Foto: TechCrunch)

O tamanho do registrador é uma característica muito importante do processador, mas não justifica o rebuliço e o destaque que a Apple deu a isso na apresentação do seu novo processador A7. Havia várias informações naquele slides que são impactantes, mas ninguém deu a mínima bola. Acredito que há alguns motivos para essa atenção exagerada aos registradores: servidores, Athlon 64 e o limite de endereçamento do Windows.

Antes de chegar aos desktops, arquiteturas com registradores de 64 bits tinham o status de “coisa para servidores”. O Intel Itanium de arquitetura IA-64 (que a Intel queria utilizar para substituir o x86), processadores SPARC da Sun e os Opteron da AMD trabalhavam com 64 bits. As vantagens dos maiores registradores, inclusive o limite de 4 GB para alguns tipos de endereçamento de memória, são importantes para servidores.

A AMD adaptou a arquitetura x86 para 64 bits em seus processadores Opteron, por isso conseguiu sair na frente e lançar o primeiro processador com arquitetura de 64 bits para desktops: o Athlon 64. Sendo um bom processador, corroborou com o status das arquiteturas de 64 bits. Além disso, se eles eram bons no Windows de 32 bits, imagine quando chegasse o Windows de 64 bits!

No final, não se observou uma grande diferença no desempenho no dia a dia com os sistemas operacionais compatíveis com a nova arquitetura da AMD. Nessa mesma época, os computadores comuns começaram a ultrapassar a barreira dos 4 GB, fazendo com que alguns achassem que a utilidade de uma arquitetura de 64 bits fosse apenas endereçar mais memória.

Na realidade, soa bem complicado afirmar qualquer coisa sobre as vantagens disso para o novo iPhone, apesar de abrir espaço para muitas suposições. Minha opinião é que isso veio naturalmente com a ARMv8 (versão da arquitetura ARM utlizada pelo A7) para que os processadores ARM ampliem suas possibilidades: a AMD já está desenvolvendo processadores Opteron com arquiteura ARM de 64 bits para servidores. O ciclo se fecha: arquiteturas 64 bits se tornaram famosas por serem utilizadas em servidores, a ARM adaptou sua arquitetura pensando nesse mercado e a Apple aproveitou a fama dessa especificação técnica para promover seu aparelho.

O A7 realmente parece ser um senhor processador, como a Apple prometeu. Esse review do iPhone 5s explica com bom grau de detalhes as vantagens do novo chip. O review mostra que 64 bits é muito mais que uma questão de memória e que um bom processador é mais do que números grandes.

Esqueceram da GPU

Se estamos analisando especificações, por que a GPU raramente é destaque nas tabelas de especificações técnicas de smartphones e tablets? A placa de vídeo sempre foi um componente essencial para o desktop gamer, mas a parte gráfica parece ter sido deixada de lado no mercado de smartphones e tablets. A Apple sempre dedica algum tempo de suas apresentações às GPUs, mas eu acho estranho a apatia do marketing e dos consumidores ao lidar com um componente tão importante, ao mesmo tempo que fico aliviado.

A placa de vídeo é um dos componentes mais complexos, é um computador completo especializado em processamento gráfico. Por isso, comparar suas especificações é bastante falho e elas são o exemplo mais simbólico do mau uso das especificações. Os jogos sempre destacaram a memória necessária nos requisitos mínimos da placa de vídeo, meu palpite para isso é que placas de vídeos não podem utilizar memória virtual: se não tiver o mínimo de memória, o jogo simplesmente não funciona.

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Por isso, as pessoas assumiram que a memória é a característica mais importante de uma placa de vídeo e os fabricantes se aproveitaram disso. Placas de vídeo de baixo custo com absurdos 2 GB de memória DDR2 passaram a ser comercializadas, memória essa que provavelmente nunca será utilizada em sua totalidade.

Nos smartphones, a GPU possui um papel importantíssimo: o sistema operacional pode utilizá-la para renderizar a interface e os navegadores as páginas web, além do óbvio: os jogos. A relativamente fraca GPU que equipava o Galaxy Nexus só entrou em destaque depois de algumas reclamações, mas se soubéssemos olhar as especificações importantes corretamente, esse ponto teria sido levantado desde o início da comercialização do aparelho. Além de nos importamos com coisas pouco importantes, deixamos de lado algumas outras mais importantes.

PCs eram apenas hardware

Provavelmente, esse é o ponto mais importante para ignorar as especificações técnicas. Na época em que eu montava meus PCs, a questão era fazer o computador mais rápido pelo menor preço e ponto final. O design era considerado apenas no gabinete, a energia era mais uma questão de ventoinhas barulhentas do que o próprio consumo e a maioria rodava exatamente o mesmo sistema operacional: Windows. Hoje em dia, os gadgets mais populares consideram esses fatores antes ignorados.

Atualmente, tenho um MacBook de 2010 e não troco por um notebook qualquer com melhores especificações. Eu gosto do OS X, gosto do design do aparelho e o trackpad continua sendo o mais legal que já usei. Ele foi caro pelos componentes que tem, mas se eu prefiro os softwares da plataforma OS X, não faz muito sentido balizar a compra só pelos componentes.

Além da questão funcional do sistema operacional, o Android, por exemplo, sofre adaptações na camada de comunicação com o hardware (Android Kernel) pois os aparelhos não seguem um padrão. Nesse caso, o desempenho pode ser impactado por dois pontos: as funcionalidades extras que uma interface personalizada traz e diferentes implementações das camadas inferiores. Sistemas operacionais diferentes utilizam o mesmo hardware de forma diferente.

Não importa quantos bits têm no processador A7 do iPhone, importa se o sistema operacional e aplicativos da plataforma te atendem bem. Hardware só existe para rodar um software, o hardware se tornou apenas critério de desempate na minha escolha.

Solução: benchmarks e reviews

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Os benchmarks são uma solução intermediária entre as especificações técnicas e o review focado em usuários. Continua sendo uma análise quantitativa e objetiva, mas abstrai toda a complexidade do processador para um ponto: o quão rápido ele processa. Os benchmarks não são perfeitos, eles não representam as condições de uso perfeitamente e as empresas podem otimizar seus produtos especificamente para esses testes, mas ainda assim é bastante objetivo e útil.

Os benchmarks mostram cenários interessantes. Por exemplo, o modesto Motorola RAZR M bate o famoso Galaxy S III devido a um processador dual-core poderoso combinado com uma menor resolução. O processador do RAZR M era o Qualcomm Snapdragon S4 que equipava outros aparelhos “não-flagships” como o HTC One S, mas que batia de frente com os badalados quad-core da época, como Samsung Exynos e Nvidia Tegra 3.

Apesar de benchmarks serem legais, não estamos comprando processadores e sim produtos completos. Para isso, há reviews em todos os cantos da internet. Naturalmente, são menos objetivos que as especificações e benchmarks, mas no cenário atual da tecnologia não há muita escapatória. Uma boa experiência com um gadget acaba sendo composta de vários critérios subjetivos.

Conclusão

Não é simples analisar especificações técnicas e temos opções bem melhores para analisar um gadget, mas as empresas continuam batendo nessa mesma tecla. Ligar para especificações técnicas só fomenta esse marketing vazio das fabricantes, mas meu maior medo é que os produtos passem a ser norteados por isso. Afinal, se o que vende é especificação, vamos entregar isso para os consumidores, certo?

A movimentação quase instantânea da Samsung em responder aos 64 bits da Apple é um exemplo. É natural que eles colocassem uma arquitetura de 64 bits em seus novos smartphones, mas não duvido que tenha se tornado uma prioridade mesmo que seja irrelevante por ora.

Não quero acabar com a curiosidade em compreender melhor seus aparelhos, mas as especificações são números complexos e desnecessários para o consumidor. Entender bem de arquitetura e organização de computadores é muito complicado e admiro quem realmente manja do assunto, mas aprendi o suficiente para saber que nada é simples como parece. Eu vejo as especificações da mesma forma que o uso indiscriminado da física quântica: não é a física que está errada, e sim o mau uso por parte nossa.

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Gabriel Arruda

Programador, graduado em Sistemas de Informação e mestrando em Inteligência Computacional. Escrevo raramente em meu blog com um vergonhoso domínio blogspot.

Atualizado às 19h14. O artigo dizia que o Intel Atom Z2480, processador do Motorola RAZR i, suportava instruções de 64 bits, uma característica que a Intel não anunciou oficialmente. O texto foi modificado para remover essa informação.

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