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Promessas, promessas — as bobagens futuristas que a mídia adora reciclar

Toda semana surge alguma notícia prometendo um futuro lindo e maravilhoso que nunca chega. Pra piorar depois de alguns meses surgem as mesmas notícias futuristas. Carros voadores, videofones, robôs… clique e leia sobre o futuro incrível que teríamos no passado.

5 anos e meio atrás

“O Brasil é o país do futuro”, ao menos dizia o slogan cunhado (e cunhado nunca é coisa boa) nos anos 70/80. Na época o Delfim Neto dizia que deveríamos esperar o bolo crescer para então dividi-lo. Tem gente esperando até hoje, mas essa noção de um futuro melhor iminente que nunca chega não é exclusiva de economistas gravitacionalmente diferenciados. Acontece com religiosos e jornalistas de tecnologia.

Por isso vamos ver hoje algumas das tecnologias revolucionárias previstas prometidas iminentes e que nunca chegam. Ou chegarão:

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Na maioria das vezes não há nada de errado com as tecnologias em si, apenas não há incentivos ou sentido em implementá-las. Em outros casos, tipo grafeno, só funcionam em laboratório: como Ruby, não escalam. Em comum, a sede de jornaleiros sem pauta correndo atrás de matérias frias para requentar, e como o afegão médio só consegue se lembrar de “p. sherman 42 wallaby way sydney australia”, ele lerá sem problemas a mesma matéria duas vezes por ano, que dirá a cada 2 ou 3 anos.

Então vamos a alguns exemplos de matérias requentadas que você já viu e verá por muitos anos ainda:

1 — Carros Voadores

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Desde os anos 1930, quando algum desocupado amarrou um Buick embaixo de um Cessna, um jornalista desocupado viu e escreveu 3.500 palavras sobre como aquilo seria o futuro, não temos mais sossego. Nem com a invenção dos helicópteros a idéia do carro voador saiu de moda, mas nunca se concretizou. Nem irá acontecer.

Como Elon Musk disse, você gostaria que seu vizinho tivesse um carro voador? Olhe o estado dos carros e motoristas, acha mesmo que esse monte de gente que mal consegue andar em duas dimensões teria condição de acrescentar mais uma no processo?

A indústria aeronáutica sempre tentou vender o conceito de aeronaves pessoais, mas o custo de um avião vai muito além do preço de loja. É preciso manter o bicho certificado, você não pode mandar no mecânico da esquina, peças têm vida útil limitada e o mecanismo de inspeções é rigoroso. Não é muito errado chutar que se fossem tratados com o mesmo rigor que aviação privada, 90% da frota de automóveis seria proibida de rodar.

De tempos em tempos surge a notícia de que uma empresa quebrou o paradigma, projetou um carro voador e revolucionará o transporte, mas nunca saem do protótipo. Em alguns casos falem, em outros sofrem acidentes fatais, sequer chegam na fase em que seriam inviabilizados pelo mundo real.

A moda agora são dronões disfarçados de carros voadores, como aquela bobagem que o Larry Page está bancando.

Este brinquedo aqui é um Robinson R22, talvez o helicóptero mais barato e com melhor custo operacional do mundo. O preço de um novo começa em US$ 250 mil.

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Um Corolla 2018 custa US$ 18.500. Você acha que um carro voador estaria mais próximo do preço de um carro comum? Se com décadas de amortização as exigências tecnológicas e burocráticas fazem um helicóptero barato custar US$ 50 mil mais caro que uma Lamborghini Huracán, quanto sairá o carro voador?

A idéia de milhares de carros decolando e pousando nas ruas, desviando de postes, prédios, cabos de energia, drones e pipas é… apavorante. Não vai acontecer, exceto nos sonhos dos jornaleiros que publicarão daqui a seis meses notícias do novo carro voador prestes a chegar no mercado.

2 — Cidades Submarinas

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Essa com certeza você já viu: empresa XXX anuncia projeto de cidade submarina, que irá resolver o problema da falta de espaço nas grandes metrópoles, será ecológica, em harmonia com os oceanos e auto-suficiente.

Essa idéia tem mais de 100 anos, e de tempos em tempos é reinventada. Essa aqui é de janeiro de 2018. Pessoas pagariam fortunas para morar em comunidades exclusivas e futuristas, mas na prática é quase tão improvável quando montar moradias na Lua. Aliás, não, na Lua é mais fácil justificar o alto custo.

O oceano é um ambiente implacável com as obras do Homem. Navios, tanques, construções, tudo é incessantemente atacado por coisas vivas e mortas. Criar um habitat submarino tem os mesmos desafios de criar um no espaço. Você precisa de energia, suporte de vida. É tão complicado que no momento nós temos mais capacidade de manter humanos no espaço do que debaixo d'água.

É verdade. A ISS de vez em quando funciona com tripulação de seis pessoas, normalmente com três. Já no mar, nós temos UM laboratório submarino em atividade, o Aquarius, lançado em 1986 e hoje na costa da Flórida a 20 m de profundidade. Ele comporta dois mergulhadores.

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O troço é pressurizado a 2,6 atmosferas, e tem 37 metros quadrados de área útil. Basicamente uma quitinete. E tem outro pequeno problema: as coisas crescem no mar. Está vendo a estrutura limpa bonitinha acima? Olha como o Aquarius fica após algum tempo debaixo d'água:

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O vidro não é magicamente à prova de bichos, toda hora um corno tem que sair pra raspar as cracas, eles apenas desistiram de limpar o que não fosse essencial, como portas, lacres e válvulas. Agora imagine isso na escala de uma cidade, ou um grande prédio.

Imagine que se você tiver um prédio de dez andares debaixo d'água terá que construir uma estrutura que resista a uma pressão de 10 atmosferas, e manter equipes de robôs e mergulhadores para trabalhar nessas profundidades na manutenção diária da estrutura. Está ouvindo o assovio de alta pressão? Não é falha estrutural, é o dinheiro sendo sugado pra longe do projeto.

3 — Mega-Torres

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É uma tendência compartilhada por arquitetos desocupados e diretores de arte de filmes de ficção científica: todos adoram um prédio gigantesco. A idéia se encaixa tanto em utopias quanto em distopias, um milhão de pessoas morando em um único prédio, uma comunidade auto-suficiente de onde ninguém precisaria sair para comprar coisas, se divertir, encontrar amigos.

A imagem acima é um desses projetos, uma abominação japonesa chamada X-Seed 4000. Foi projetado pela Taisei Corporation do Japão em 1995, teria um milhão de moradores, 800 andares e 4 km de altura. Outros projetos são bem mais antigos, e são uma resposta desesperada ao pesadelo malthusiano de uma população crescendo sem controle e sem espaço para onde se expandir. Na prática, não aconteceu isso, as cidades se equilibraram e com a atual taxa de crescimento negativa do Japão, espaço não será problema.

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Fora não haver real necessidade, há outro problema na construção de mega-torres: o custo. Não é linear, construir um prédio de 20 andares custa mais caro do que dois de 10 andares. Construir um de 800 andares então… você está falando de uma cidade, e das grandes. Só existem 559 cidades no mundo com população entre 1 milhão e 5 milhões de habitantes. O Brasil só tem 17.

Imagine um único prédio com a mesma população de Maceió. Pense no pesadelo logístico. Imagine um entregador de fora do prédio. No final você acabaria com um bairro vertical que transferiria para a iniciativa privada toneladas de custos e responsabilidades que são do Estado. Um milhão de habitantes é gente demais pro porteiro, mesmo que seja excepcional como o Severino da Pietra Príncipe, resolver todos os problemas.

4 — Videofones

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A última tentativa foi feita pelos fabricantes de TVs, mas a idéia de telefonia com imagens não é muito posterior à invenção do próprio telefone. No final do século XIX já havia gente pensando nesse tipo de tecnologia, em em 1930 a AT&T já tinha unidades de demonstração. Na Europa havia “cabines de videofone” na mesma época.

Apesar de tecnicamente viável, o videofone sempre foi muito, muito caro. Consumia recursos equivalentes a dezenas de linhas e o custo dos terminais era proibitivo. A expectativa era com o tempo esse valor diminuir, em 2001 achava-se que em 2001 teríamos até orelhões onde a gente poderia ligar pra filha do Stanley Kubrick…

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Sentido fazia, afinal em 1968, mesmo ano que 2001 fazia suas previsões para 2001 a Western Electric anunciava seu próprio videofone:

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Só que não colou. Hoje temos sistemas de videoconferência sendo usados em empresas, embora na prática a maioria ainda prefira as conferences só de voz, evita situações como um ex-blogueiro ligado à Fórmula 1 que deve permanecer anônimo, que fez uma conference via Skype com clientes estrangeiros e só no final percebeu que estava de cueca.

As pessoas não gostam de falar com estranhos sem necessidade, muito menos em horários aleatórios, com remela no olho e cabelo desgrenhado. Isso era tão óbvio que em 1963 n'Os Jetsons a Jane já tinha uma máscara para usar no videofone durante a manhã, e não aparecer com cara de bunda.

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Hoje mesmo com os WhatsApps da vida o grosso das chamadas continua sendo de voz, o videofone é usado no Natal para mostrar os netos aos avós, mas toda hora surge um novo aparelho. Na busca do Google por “videophone” das 15 primeiras imagens somente uma pode ser considerada “vintage”.

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5 — Um robô em cada casa

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Na Feira Mundial de Nova York em 1939 a Westinghouse impressionou o mundo com o Elekro, um robô de 2 m de altura, capaz de andar, soprar balões, fumar, mexer os braços e as mãos, reconhecer cores, responder a comandos vocais e falar com um vocabulário de 700 palavras. Repetindo, 1939, quando nossa tecnologia era basicamente barro fofo e pedra lascada.

A certeza geral e a promessa era que em muito pouco tempo, alguns anos no máximo toda esposa teria um robô para ajudar nas tarefas domésticas. Em 1940 a GM apresentou um filme-conceito do Roll-Oh, um robô que cuidaria de todas as miudezas do dia a dia de uma esposa de classe média:


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Essa promessa vem sendo repetida pelas empresas e reverberada pela mídia desde então. Estamos à beira da revolução robótica em nossos lares, a qualquer momento teremos robôs para levar os bichos para passear, robôs para fazer jantar, robôs para tomar conta de crianças e idosos!

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ONTEM a CNet publicou esta matéria, parafraseando o título seria “Startup japonesa promete robôs para todos em 5 anos”.

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Uma rápida pesquisa mostra que todo ano a mesma matéria é publicada, mudando apenas alguns dados menores. Na realidade robôs continuam restritos a linhas de montagem. Todo o resto se divide entre carrinhos de controle remoto glorificados e equipamentos como os da Boston Dynamics, que são impressionantes mas extremamente especializados: mude aquelas caixas de lugar e o Atlas se estabaca.

Quando a usina nuclear em Fukushima precisou ser desligada, um grupo de heróis sacrificou suas vidas entrando no ambiente altamente contaminado. O país mais avançado e robotizado do mundo não tinha robôs versáteis o bastante para negociar seu caminho entre os destroços de uma usina danificada por terremotos e explosões. Em verdade mesmo hoje ninguém tem robôs assim.

Realisticamente falando, a única tecnologia de robôs domésticos que desenvolvemos de forma minimamente decente até hoje são os robôs-aspiradores, e mesmo assim

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A lista poderia ser expandida mais e mais, nem cheguei a tocar em fusão nuclear para fins pacíficos, algo que Edward Teller provavelmente já pensava, enquanto projetava a bomba de hidrogênio durante o Projeto Manhattan. Também temos os aviões comerciais supersônicos, mas aí seria deprimente demais voltar a algo que nós já tivemos, não temos mais e agora somos prometidos de tempos em tempos, e não vai acontecer.

Afinal, mais triste do que falar de um futuro que nunca chega, é falar de um futuro maravilhoso que hoje é passado.

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