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Casa Branca divulga vídeo manipulado e decreta fim da verdade (que nunca existiu) na Internet

Um jornalista da CNN se meteu em um bate-boca com Donald Trump e teve sua credencial de imprensa revogada. O problema é que a suposta agressão que motivou a decisão só aparece em um vídeo adulterado divulgado pela... Casa Branca.

5 anos atrás

Essa semana o jornalista Jim Acosta se envolveu em um bate-boca com Donald Trump, uma estagiária tentou tirar o microfone dele, foi empurrada e isso motivou o cancelamento de sua credencial na Casa Branca, ao menos foi o argumento que a Porta-Voz do Presidente, Sarah Sanders usou, mas o vídeo que apoiava o argumento foi adulterado. Será que é algo inédito e pérfido? Não podemos confiar mais em imagens? Lamento informar mas nunca pudemos.

Historicamente toda tecnologia de transmissão de informação é inicialmente tida como segura, para em seguida ser usada e abusada, perdendo a credibilidade natural e necessitar de complementos para se tornar confiável de novo.

Isso aconteceu com coisas simples como a escrita, que quando passou a ser falsificada provocou o surgimento de sinetes com carimbos de assinatura. Os primeiros foram criados uns 4000 anos antes de Cristo, no Egito:

Esses sinetes eram usados para assinar e autenticar documentos. Os romanos usavam selos de cera, e até hoje em cartórios documentos são autenticados com carimbos ou adesivos. No Japão a tradição é tão forte que você não é ninguém se não tiver um hanko, um carimbinho com seu nome e às vezes uma decoração exclusiva, usado no lugar da assinatura, que mesmo depois de décadas de globalização muito lugar não aceita:

E sim, claro que tem máquina automática pra vender hankos feitos na hora.

A autenticidade de documentos é algo de importância estratégica, e isso se tornou evidente em Janeiro de 1917, com o Telegrama Zimmermann, este papel aqui:

Ele foi enviado para a embaixada Alemã em Washington por um oficial diplomático chamado Arthur Zimmermann, ele deveria ser retransmitido para o embaixador alemão no México, já que não havia ligação direta entre Europa e aquele país.

O telegrama continha instruções alertando que em breve a Alemanha começaria guerra irrestrita de submarinos no Atlântico, e que o Presidente do México deveria ser informado disso e que se o país se unisse à Alemanha, receberia em troca apoio financeiro e militar; quando os EUA inevitavelmente entrassem na guerra, Berlim ficaria do lado do México e ajudaria a retomarem o Texas, Arizona e Novo México.

O telegrama foi interceptado e decodificado pelos britânicos, que imediatamente o mostraram para Edward Bell, Secretário da Embaixada dos Estados Unidos no Reino Unido. Bell não se convenceu, era suculento demais, óbvio demais, algo que faria os EUA entrarem na guerra, exatamente o que os ingleses queriam. Ele teve certeza que o telegrama era uma fraude.

Aqui a versão decodificada e traduzida:

Os ingleses estavam diante de um impasse: Precisavam convencer os americanos da autenticidade do mas para isso teriam que abrir mão de uma vantagem estratégica. OK, não foi exatamente um impasse dos mais complicados. Era imperativo que os EUA saíssem da neutralidade, então para desgosto dos criptoanalistas da Sala 40 do Almirantado, os ingleses entregaram aos americanos o telegrama original e a documentação de como decodificar a cifra diplomática alemã 13040.

Confirmado o telegrama, os EUA ficaram furiosos, e Zimmermann admitir publicamente que o telegrama era real, em 3 de Março, não ajudou. Washington jogou a história no ventilador da opinião pública:

Em 6 de Abril os Estados Unidos entravam na Primeira Guerra Mundial contra a Alemanha e seus aliados. O México, que estava em Guerra Civil teve a presidência de Venustiano Carranza reconhecida oficialmente pelos EUA, declarou-se neutro e acabou com os planos da Alemanha de criar uma nova frente de batalha para dividir os recursos dos EUA.

Tudo por causa de um telegrama.

Fotografias não mentem

Em verdade, House está certo -todo mundo mente, inclusive fotografias, e não é de hoje. Costumamos achar que a culpa é do Photoshop, que antes não existiam coelhinhas da Playboy sem umbigo e outros orifícios variados, e que as modelos nos anúncios exibiam a beleza verdadeira sem retoques dos comerciais do Dove. Nada mais errado. Mal a fotografia foi criada, inventaram jeitos de fazer montagens e retoques.

Em 1860 um dos retratos mais conhecidos de Abraham Lincoln foi feito, usando a cabeça (ainda intacta) do Presidente e uma foto anterior de John C. Calhoun, um ex-Vice-Presidente.

Manipulação de imagens fotográficas era algo bem popular entre líderes totalitários, o Camarada Mao adorava remover das fotos ex-camaradas que haviam caído em desgraça e já tinham sido "removidos" em outro sentido, se é que você me entende...

Em outros casos a manipulação era mais benigna. Nesta foto da Família Goebbels o filho mais velho, Harald foi inserido via montagem, pois estava servindo e longe de casa.

Curiosamente o próprio Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista foi vítima de uma manipulação fotográfica. Ninguém sabe o motivo, mas Hitler mandou que ele fosse removido de uma foto totalmente inocente:

A moda não se restringiu ao pessoal do outro lado do Atlântico. William Lyon Mackenzie King, que foi Primeiro-Ministro do Canadá 3 vezes entre 1921 e 1948 usou uma foto ao lado da Rainha Elizabeth (então princesa) e do Rei George VI em seu material de campanha, mas por motivos estratégicos (ela era muito mais popular), o Rei foi removido da propaganda de King.

Mussolini também brincou com retoques de fotos, removendo o adestrador do cavalo para parecer bem mais épico do que era:

E os filmes?

Embora Hollywood tenha sempre tentado criar realismo, só recentemente a tecnologia chegou ao ponto de uma produção cara, com tempo e expertise técnica conseguir enganar a maioria das pessoas. Até então filmes e vídeos eram relativamente à prova de fraudes, ficava tudo muito falso e óbvio, somente tias do zapzap acreditavam nas montagens.

Todo mundo fazia filmes de propaganda, mais ou menos sutis. Os alemães tinham Leni Riefenstahl, os russos tinham Eisenstein e os americanos tinham Walt Disney. Quando era necessário apenas mentir, apelava-se pra cortes estratégicos, edição descaradamente tendenciosa, essas coisas mas a imagem em si não podia ser alterada.

Hoje qualquer moleque com um After Effects consegue mudar tudo em um vídeo, e a tecnologia dos Deep Fakes só piorou isso. Vemos trechos editados e tirados de contexto o tempo todo, um vídeo ostensivamente falso provoca reações viscerais e é replicado por milhões de pessoas, quando deveríamos ter o mesmo critério do Telegrama Zimmermann, duvidando e questionando até obter provas satisfatórias.

Para o dia-a-dia o modus operandi da turma da desinformação é postar vídeos não-relacionados, no Reddit metade dos vídeos que acabaram de ser enviados mostrando a guerra na Síria são vídeos reciclados do Afeganistão de 4 anos atrás.

E agora, o quê mudou?

Tudo começou com este barraco aqui entre Donald Trump e Jim Acosta, da CNN. Avance para omin:55s  e repare como a estagiária segura o microfone, tenta puxar e Acosta mantém a mão no caminho:

Algumas horas depois veio a notícia: A credencial de acesso à Casa Branca de Jim Acosta havia sido revogada. A justificativa foi dada por Sarah Sanders, Secretária de Imprensa, que compartilhou um vídeo com um zoom da cena, mostrando que o jornalista havia golpeado, agredido a estagiária:

 

O problema é que todo mundo cobrindo política nesse nível é, para usarmos o termo técnico correto, puta velha. Na hora perceberam que havia algo errado, mesmo que os 101 mil usuários que deram like não tenham percebido.

Imediatamente o CSI-Internet começou a trabalhar, e vários grupos independentes, alguns contratados por agências de notícias como a Associated Press chegaram à mesma conclusão: O vídeo foi sutilmente alterado. Compare aqui:

Pelo menos 3 frames foram duplicados, para dar a impressão que o movimento vertical da mão de Acosta foi muito mais intenso do que na realidade.

Pior: Uma pesquisa achou a origem do vídeo usado por Sarah Sanders: Um twit de  Paul Joseph Watson, editor do famigerado Infowars, de Alex Jones. Ignorando a fonte oficial do vídeo, o canal C-SPAN (Cable-Satellite Public Affairs Network) que curiosamente não é uma estatal, mas um canal privado bancado pela indústria de TVs por assinatura e que cobre as atividades do Governo Federal, Congresso, Judiciário, etc. É tipo uma TV Senado, Voz do Brasil, TV Justiça mas que não é o povo que banca.

Ao invés disso ela confiou em um vídeo de um sujeito preocupado com sapos gays, e estou sendo otimista, partindo do princípio que ela não sabia da adulteração, coisa que aliás nega veementemente, apesar das provas evidentes.

A Associação dos Fotógrafos da Casa Branca postou uma nota de repúdio, Watson por sua vez diz que é inocente, que converteu um gif que achou online e no processo algo pode ter se perdido. Críticos dizem que é conveniente demais, e Sanders não voltar arás também não ajuda.

O perigo disso tudo

É assustador todo  mundo tenha descoberto que é possível gerar reações e conduzir a Narrativa com alterações mínimas; não é razoável que pessoas comuns percebam mudanças sutis como a do vídeo de Acosta, logo teremos vídeos com expressões e olhares alterados, ferramentas de precisão de difícil detecção, ao contrário dos óbvios vídeos mal-editados de antigamente.

O jogo subiu de nível, mesmo vídeos limpos e claros e em HD não são mais imediatamente confiáveis. Na Bíblia Tomé é criticado por exigir provas para acreditar na Ressurreição, Jesus diz "Bem-aventurados os que não viram e creram". Bem, lamento informar mas Jesus estava errado. Não só é preciso ver antes de acreditar, como é preciso um senso crítico redobrado para, mesmo vendo, perceber as tentativas de manipulação. Conseguiremos fazer isso? Só Deus sabe.

PS: A Zoeira

Claro que os programas de TV não iriam deixar passar... o Colbert por exemplo...

 

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