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Exército dos EUA quer um novo fuzil projetado por Steve Jobs

5 anos atrás

As condições de campo de batalha sempre em mutação tornam as ótimas armas de ontem, ineficientes hoje e, por causa disso, os Estados Unidos estão mudando de novo a arma padrão de seu exército, mas dessa vez querem algo futurista e disruptor como...um iPhone.

Essas mudanças não estão relacionadas com a idade das armas. A Colt 1911, por exemplo, é uma pistola que entrou em serviço em -adivinhou- 1911 e permaneceu como arma padrão do Exército dos Estados Unidos até 1986. É um design simples, dispara um projétil de calibre respeitável, requer pouca manutenção. Ela apenas funciona.

Hoje é usada por forças armadas em mais de 30 países, inclusive em forças especiais nos Estados Unidos e no Exército Brasileiro, que usa a M973, uma versão produzida no Brasil e licenciada pela Imbel. Nada mau pra um design de 108 anos de idade.

Outras armas são mais difíceis ainda de substituir, como a Browning M2 e que é conhecida pelos soldados como Ma Deuce, uma metralhadora calibre .50 projetada em 1918 por John Browning, que não por acaso também projetou a Colt 1911.

A M2 participou de todos os conflitos em que os Estados Unidos se meteram desde a Segunda Guerra Mundial. Recrutas aprendem a mexer nela em poucas horas. Refrigerada a ar, não tem tanques nem mangueiras pra vazar. Quando o cano esquenta demais em poucos segundos, um operador o troca e ela continua a disparar 1.300 tiros por minuto, com um alcance de 2.500 metros.

Ela foi montada em tudo. Navios, aviões, caminhões, jipes, robôs, helicópteros. Foi usada como arma antiaérea, antipessoal e anti-veículos. Todas as tentativas de aposentá-la deram errado, ninguém conseguiu projetar nada tão barato, simples e confiável como a Ma Deuce.

Já no caso dos fuzis, os Estados Unidos não deram tanta sorte. No período colonial e na Guerra Civil eles se viravam com o que conseguiam. O primeiro fuzil razoavelmente decente foi o Springfield M1903, que se tornou a arma padrão do Exército até 1936, mas na prática muitas unidades serviram na Segunda Guerra, pois o M1 Garand não estava sendo produzido em quantidade suficiente.

O M1903 representava o máximo de tecnologia de sua época, ao contrário dos fuzis carregados pela boca ou que a cada disparo precisavam ser remuniciados, ele comportava cinco cartuchos e usava sistema de ferrolho: você fazia click-clact, ele carregava um cartucho novo na câmara, aí era só puxar o gatilho, disparar, puxar o ferrolho de novo para remover o cartucho disparado da câmara e colocar outro no lugar. Ele conseguia 20 disparos por minuto dessa forma.

Só que na Segunda Guerra Mundial isso não era o bastante e os Estados Unidos trocaram, bem tarde, o M1903 pelo M1 Garand com seu icônico clipe que era ejetado quando vazio, fazendo *PING*.

O Garand era semi-automático, operado com gás, então tudo que o soldado precisava fazer era puxar o gatilho.

Dá pra ver em detalhes o Garand e o M1903 neste vídeo com o saudoso R. Lee Ermey:

https://youtu.be/w16pXWL2B2k

Ainda na Segunda Guerra Mundial começou a ser projetado o sucessor do M1 Garand: o M14. Ele deveria ser mais que um fuzil, uma arma capaz de disparo automático e semi-automático para substituir fuzis, submetralhadoras e metralhadoras.

Óbvio que esse tipo de arma mágica não funciona. O M14 era incontrolável em modo automático, seu calibre era grande demais pra uma submetralhadora, pequeno para uma metralhadora, seu cano era grande demais para uma carabina, mas ele funcionava muito bem como fuzil semi-automático e foi adotado em 1959.

M14

Depois disso ele foi usado por muitos anos e -nah, mentira. As notícias dos problemas com o M14 chegaram até o Secretário de Defesa, que viu uma oportunidade de agradar ao Complexo Industrial Militar e encomendou o desenvolvimento do sucessor do M14, o M16, um fuzil que literalmente ninguém queria.

Só que como generais perdem pro SecDef, e as reclamações sobre o M14 na Guerra da Coreia foram tiradas de proporção pra justificar o M16, que foi feito nas coxas, especificado por comitê e empurrado para as tropas ao ponto de ser adotado pelo Exército em 1964, enquanto os fuzileiros em 1965 adotavam...o M14.

Desenvolvido como ArmaLite AR-15 e rebatizado como M16 pelo Exército, o fuzil foi um desastre. No papel parecia plano de governo de candidato salvador da pátria, até autolimpante diziam que a arma era. Na prática...

O M16 usa um sistema revolucionário de aproveitamento dos gases da detonação do cartucho. Essa energia é usada para acionar a mola de recuo e "ciclar" a arma. É muito bonito e inteligente, mas como recebe diretamente os gases, eles chegam cheios de detritos da detonação. Muito rapidamente o sistema fica sujo e começa a engasgar. A solução pra isso é manutenção constante e muita lubrificação.

Os soldados não recebiam kits de manutenção, lubrificante e a maioria não havia sido instruída a como limpar essa parte da arma. O fuzil também não tinha um botão de forward assist, que é um mecanismo para forçar o ferrolho todo pra frente, encaixando o projétil na câmara. Isso é essencial para resolver travamentos. Sem isso o sujeito tinha que puxar o ferrolho manualmente e remover o cartucho defeituoso com uma faca ou algo assim.

Ele também não se dava muito bem com chuva, terra e lama, coisas muito comuns no Vietnã nessa época do ano, seja qual for a época em que você estiver lendo este texto. Ah, a munição que havia sido designada para o M16 não era a munição para a qual ele havia sido projetado. O Exército escolheu cartuchos com uma pólvora bem mais suja, que zoneava todas as tabelas de manutenção periódica.

Em média o M16 apresentava uma falha a cada 500 tiros e isso ficou tão preocupante que rolou até uma CPI que investigou a fundo (mas não tão a fundo a ponto de achar culpados) a situação, e com o tempo os problemas foram todos resolvidos, tornando o M16 uma arma bem mais confiável, aprovada por 85% dos soldados, enquanto menos de 1% diziam preferir a AK-47, a arma preferida do inimigo. 

Depois de aperfeiçoado, o M16 atingiu uma taxa de falhas de 61 a cada 69 mil disparos, então era hora de fazerem caquinha de novo, criando a... M4. 

Em essência são a mesma arma, carabina é um nome bonito pra fuzil de cano curto. A M4 tem um cano de 370 milímetros de comprimento, o M16 tem 508 milímetros e esses 13,8 centímetros fazem diferença sim! (por que eu falei isso de forma tão determinada?)

A diferença é que a o espaço menor torna a pressão dos gases dentro da M4 muito maior, estressando o metal e gerando falhas numa taxa três vezes maior que a do M16. E eu só digo uma coisa: quando uma M4 trava no meio do tiroteio, é tenso.

De novo, a história se repete e você já deve ter imaginado que a M4 aprimorada apresenta taxa de falha de 1 a cada 5 mil disparos. É uma excelente arma, vendida no mercado civil como o AR-15 e provavelmente é hora de estragar tudo de novo com mais um upgrade, certo? Certo, mas dessa vez o Pentágono resolveu arriscar um potencial desastre caprichado.

Sem aprender nada com o passado, as especificações oficiais querem uma arma que una isto:

eu sei.

Com isto:

Se fosse só a ideia de uma arma com a leveza, agilidade e eficiência de uma carabina junto com o poder de fogo e cadência de tiro de uma metralhadora, tudo bem, mas eles querem mais.

Eles querem um "iPhone da Letalidade", uma plataforma que seja compatível com acessórios antigos, mas que possa ser aprimorada de forma modular. E sim, repleta de eletrônica. 

Na proposta eventualmente a tal arma terá sensores ambientais como velocidade e direção do vento, temperatura, pressão e umidade relativa do ar, lasers para medir distância até o alvo, GPS e mira assistida, usando esses dados para calcular a trajetória do projétil e ajustar a mira. Ah sim, esses dados também serão repassados via link sem fio para uso por artilharia, assim se o soldado precisar que uma casamata inimiga seja demolida, do próprio fuzil ele seleciona o alvo e solicita a bomba ou míssil.

Está parecendo complicado o suficiente? O processador da arma deverá ser protegido contra cyberataques. Isso mesmo, o sujeito miserável afundado na lama em algum shithole, munição acabando, 1.784 inimigos atirando nele com suas AK-47 e ele ainda tem que se preocupar com a possibilidade de algum hacker inimigo escrever uma GUI em Visual Basic, rastrear o IP da arma e lançar um ataque DDOS.

Proposta conceitual da nova arma.

O gerente do projeto, Coronel Elliott Caggins, explica o conceito:

"Imagine que Steve Jobs e seus engenheiros estivessem tentando converter o iPod Touch no primeiro iPhone 3G. Havia milhares de tecnologias que eles poderiam incorporar no primeiro iPhone, mas eles primeiro queriam que a plataforma estivesse madura antes de mergulhar no sistema"

Excelente analogia, Coronel, só que o primeiro iPod Touch foi lançado dia 5 de setembro de 2007 e o primeiro iPhone apareceu em 29 de junho de 2007. A migração foi ao contrário, retiraram recursos do iPhone e transformaram no iPod Touch.

Uma M4 funciona de dia e de noite, no frio ou no calor. Não precisa de eletricidade. Não é afetada por radiação eletromagnética, nem lasers. Seus cartuchos usam uma espoleta simples, que desencadeia uma reação química e disparam com confiança quase absoluta. 

Agora querem transformar uma arma que é jogada para todos os lados, carregada sob sol, chuva e tempestades de areia em um sistema tecnológico, um hub de informação, sensores e cálculos complexos. O quê acontecerá quando a bateria acabar no meio de um combate? E quando os bugs inevitavelmente aparecerem?

Não é de hoje que isso acontece, vide o caso do XM-25, um lançador de granadas inteligente que acabou sendo cancelado depois de um monte de contratempos, inclusive um fornecedor alemão se recusar a fornecer componentes pois descobriu que a arma seria "usada contra pessoas".

Depois de anos de desenvolvimento, dezenas de milhões de dólares gastos e vários testes em campo, o Pentágono desistiu da arma de US$ 35 mil, que cada granada de 25 milímetros custava US$ 1 mil (eram feitas à mão) e deixou pra lá, preferindo voltar ao velho M203, o lançador de granadas que custa US$ 1 mil, encaixa debaixo da M4 e não não nenhum componente eletrônico pra dar problema.

Agora o melhor de tudo: o Pentágono quer que essa maravilha tecnológica futurista seja apresentada como protótipo já em... 2022.

Não vai acontecer. Podem cobrar, será um fracasso caríssimo pro bolso dos contribuintes e pra segurança dos soldados. Espero que nem chegue na fase de teste de campo.

Algumas coisas simplesmente não podem e não devem ser "modernizadas", o risco é muito grande, o ganho é muito pequeno e a solução antiga ainda é a melhor. Sabe o poderoso fuzil M41A, usado pelos fuzileiros coloniais em Aliens?

Era só maquiagem. Por baixo de peças emprestadas de outras armas e painéis de alumínio decorativos, ela era uma boa e velha submetralhadora Thompson, inventada por  John T. Thompson em 1918.

Fonte: 9to5Mac.

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