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O garoto que foi salvo por um cardume de paulistinhas (e um cadim de ciência)

5 anos atrás

Daniel é um Mutante, um Filho do Átomo. Seus pais são humanos normais, mas durante os primeiros dias de sua gestação, quando Daniel era pouco mais que um aglomerado de algumas células, uma partícula subatômica errante vinda dos confins do espaço atingiu um átomo em uma das inúmeras sequências de nucleotídeos em seu DNA. Incapaz de corrigir o erro, uma proteína passou a ser codificada de forma incorreta em todas as células descendentes daquela.

Infelizmente aqui é o mundo real, e Daniel não ganhou superpoderes, mas sim uma alteração em um gene chamado ARAF, que regula um monte de coisas inclusive a produção de quinases, que segundo a Wikipédia "é uma enzima quinase que modifica outras proteínas adicionando quimicamente grupos fosfato (fosforilação). A fosforilação normalmente resulta numa alteração funcional da proteína alvo (substrato) por alteração da atividade enzimática, localização celular ou associação com outras proteínas." entendeu? Ótimo, depois me explique nos comentários.

Que diabos é o sistema linfático?

Eu explico: Além de veias e artérias você tem (eu espero) um terceiro sistema circulatório, o linfático. São uma série de vasos percorrendo todo o corpo, eles absorvem o plasma que se acumula entre os tecidos, evitando que você fique inchado. Esse plasma é retornado ao sangue nos nódulos linfáticos.

Fora isso o sistema linfático também é importantíssimo para seu sistema imunológico, levando leucócitos para onde são mais necessários.

No caso de Daniel os problemas começaram aparecer na adolescência, que conforme a literatura técnica especializada (X-Men #1) é quando as mutações são ativadas. De um adolescente normal, ativo, esportista ele começou a demonstrar sintomas esquisitos, perda de mobilidade, suas pernas ficaram inchadas e ele mal conseguia andar.

Daniel estava a caminho de uma cadeira de rodas quando seus pulmões começaram a ser invadidos por vasos linfáticos, o crescimento descontrolado era como um câncer, mas pior. Felizmente , seus pais o levaram a um dos poucos lugares onde um jovem especial como Daniel seria atendido por gente especializada em sua condição:

Não esse, pô, não se manda criança doente pra escola, você é antivaxxer por acaso?

O lugar foi o Hospital Infantil da Filadélfia, mais precisamente no Centro de Genômica Aplicada. Lá ele foi examinado pelo Dr. Hakon Hakonarson, especialista em genética e pneumologia pediátrica.

Existem dezenas de doenças capazes de gerar os mesmos sintomas de Daniel, e ele foi tratado com cirurgias e drogas, mas nada funcionou por muito tempo. O acúmulo de líquido nos pulmões o forçou a usar tanques de Oxigênio para respirar. Nessa hora o Dr Hakornarson resolveu procurar causas genéticas, sequenciando o DNA de Daniel e dos pais.

Ele achou uma falha no gene ARAF, mas historicamente ele não está ligado especificamente a problemas linfáticos, mas era responsável por crescimentos anômalos. Será que aquela mutação específica desencadearia o crescimento dos vasos que estava matando Daniel?

Entra na história nosso outro herói:

Com nome científico de Danio rerio, o Paulistinha é um peixe de origem asiática popular em todo aquário de iniciante. Em inglês é chamado de Peixe Zebra, batizado por algum sujeito sem muita familiaridade com o supracitado quadrúpede, visto que as listras das zebras são verticais, não horizontais. Ou talvez ele estivesse segurando um Paulistinha pela cauda, mas estou divagando.

O Paulistinha é muito usado em pesquisas genéticas por ter um genoma bem conhecido, ser resistente a variações ambientais e ter um ciclo de maturação curto, em 72 horas após a fecundação, se não tiver virado comida de alguém o embrião já virou uma larva, pupa ou seja lá qual é o nome pra peixe-bebê? Girino, pronto, agora é girino.

Os cientistas alteraram geneticamente o gene ARAF dos embriões dos Paulistinhas, introduzindo a exata mesma mutação de Daniel, e então observaram o crescimento dos peixes, confirmando por exames genéticos que a mutação estava presente.

Não deu outra, os peixes começaram a apresentar sintomas, com crescimento anormal no sistema linfático:

Nesse ponto é bom ressaltar que nenhum peixe apresentou crescimento do sistema linfático nos pulmões, principalmente pelo fato de peixes não terem pulmões, mas a comprovação da associação entre a mutação e a doença de Daniel abriu caminho para o tratamento, pois sabiam agora que era um problema envolvendo as tais quinases, mas qual tratamento seria o mais indicado?

Esse tipo de tratamento envolve inibidores de quinase, existem vários tipos, cada um atua em uma parte diferente do processo metabólico, mas era inviável dar ao pobre Daniel dez drogas diferentes e ver qual funciona. O tratamento é longo e é literalmente quimioterapia, inibidores de quinase são medicamentos muito fortes, com efeitos colaterais e usados para casos como melanoma.

A solução? De novo os peixes. Os cientistas isolaram 10 colônias de peixes com a doença, e deram a eles 10 drogas diferentes. Não, eles não dão comprimidos pra peixes, é bem mais simples, basta dissolver na água.

Acompanhando cada um dos grupos, eles determinaram qual era mais eficiente, até chegarem a este remedinho aqui:

O remédio, apesar do nome de super-herói da Rússia comunista, fez efeito. Em dois meses a respiração de Daniel melhorou, em três meses ele parou de usar o tanque de Oxigênio. O inchaço das pernas desapareceu, exames comprovaram que os vasos linfáticos retrocederam até a condição de um humano normal.

Aqui Daniel antes e um ano após iniciar o tratamento:

Embora o tratamento usasse remédios "comuns" os riscos eram tantos que os cientistas tiveram que pedir permissão ao FDA para tentar, mas a base científica era sólida o suficiente para a permissão sair, para sorte de Daniel e 1/10 dos Paulistinhas.

Esse tipo de tratamento está se tornando cada vez mais comum, principalmente pela queda do custo de sequenciar um genoma. Por volta do Ano 2000 o Projeto Genoma foi um esforço mundial que custou bilhões e anos de pesquisas, no final conseguiram sequenciar um genoma humano a um custo de US$300 milhões.

Hoje o mesmo trabalho consegue ser feito por menos de US$1000,00.

Nada mau, nada mau mesmo. Que isso sirva de exemplo e tenhamos mais e mais casos de vidas salvas por tecnologias pervasivas, cientistas determinados e anchovas de pijama.

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