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Novo porta-aviões dos EUA será batizado em honra a Doris Miller

Doris Miller foi um simples marinheiro que será homenageado com um porta-aviões, uma honra reservada a Presidentes. Leia e descubra como ele mereceu isso.

4 anos atrás

A geografia obrigou e permitiu aos Estados Unidos que sua principal arma de projeção de força fosse o porta-aviões, formidáveis máquinas de mais de 100 mil toneladas, movidas pela força do átomo, levando milhares de homens e mulheres aonde for necessário. Hoje os EUA possuem 11 super porta-aviões, com mais três em construção.

Todos eles são batizados em homenagem a grandes batalhas, ex-presidentes, almirantes, mas o mais moderno e recente, o CVN-81, levará o nome de Doris Miller, um jovem negro de 24 anos, cozinheiro de terceira classe.

A Segunda Guerra Mundial foi a pior época para um soldado negro servir, visto que era consenso entre os militares que eles não serviam para nada. Nos Estados Unidos a segregação era uma realidade, com as chamadas Leis Jim Crow, que estabeleciam segregação racial a todo vapor.

Com a sociedade toda dividida, de cinemas e consultórios médicos até lanchonetes e assentos nos ônibus, era natural que os militares seguissem o mesmo pensamento, mas com o acirramento das tensões na Europa, ficou evidente que somente os americanos brancos não seriam suficientes para combater a Raça Superior, então muito a contragosto começaram a experimentar alistar negros, pois a única alternativa seria abrir vagas pra a criatura mais inferior na escala hierárquica da época, mulheres, e tudo tem limite!

Obviamente o alto-comando não botava fé na ideia, eles tinham certeza "científica" de que negros eram inferiores, incapazes de obedecer ordens, e ironicamente por causa disso eram relegados a trabalhos subalternos, burocráticos, longe da linha de frente. O racismo reinante basicamente dizia que negros não eram bons o bastante para morrer levando tiro do inimigo. Eu não reclamaria.

Uma única unidade do exército enfrentou combate aberto, a 92ª Divisão de Infantaria, uma unidade segregada composta quase totalmente por negros, mas com oficiais superiores brancos.

A 92ª se comportou heroicamente, mas a maioria dos relatórios da época falava o contrário, por décadas historiadores escavaram comunicações de batalha, cartas e documentos, descobrindo que a Divisão cumpriu seu dever, inclusive com dois membros recebendo a Medalha de Honra do Congresso, um deles o 1º Tenente John R. Fox, que cercado e sem chance de fuga, comandou um ataque de artilharia na sua própria posição, morrendo e levando junto uma penca de chucrutes.

Na Força Aérea, depois que o Presidente Roosevelt promulgou leis anti segregação, foram criados programas para incluir pilotos negros. Os espertos racistas decidiram dificultar a vida dos candidatos, colocando exigências tão grandes que ninguém conseguiria atendê-las. Resultado: ao invés de um bando de jovens entusiasmados e crus, eles acabaram com um monte de homens adultos, a grande maioria com experiência de voo e diplomas universitários.

Os chamados Aviadores de Tuskegee, criados para serem um mero cala boca, se tornaram uma força de elite e depois que a Primeira Dama Eleanor Roosevelt voou com um dos pilotos do grupo, foi só elogios. O jeito era mandar os caras pra guerra.

Eles voaram 1.578 missões de combate, destruíram 112 caças inimigos, incluindo dos jatos alemães ME-262. Foram 179 missões de escolta, no total eles perderam 27 bombardeiros sob sua proteção. Na média os esquadrões de caças com pilotos brancos perderam 46 bombardeiros sob sua escolta. Os pilotos dos bombardeiros respiravam aliviados quando viam as caudas vermelhas dos aviadores de Tuskegee e muitas vezes pediam especialmente por eles como escolta.

Na Marinha a situação era pior ainda; para cumprir as cotas de Roosevelt dois navios tinham tripulação negra, mas no resto, havia somente marinheiros alistados, cumprindo papel de copeiros, ordenanças, estivadores e faxineiros. Eles não recebiam treinamento de combate e eram proibidos de pegar em armas.

Um desses jovens era o Cozinheiro de Terceira Classe Doris Miller:

Miller estava no lugar errado na hora errada. Mais precisamente Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941.

Ele tinha acabado de servir o café da manhã, e estava recolhendo roupa suja, quando um torpedo japonês atingiu seu navio, o encouraçado USS West Virginia.  Miller correu para seu posto de combate, carregando munição para uma bateria antiaérea, mas a unidade havia sido destruída pelas bombas inimigas.

Pegos inteiramente de surpresa, os navios americanos ancorados no porto eram presa fácil para os 350 aviões japoneses, cheios de sangue no olho e fartamente treinados para aquela missão.

No West Virginia, em meio a explosões e incêndios, Miller foi procurar um oficial para pedir instruções. Acabou na ponte, ajudando o Capitão, mortalmente ferido.

Depois de colocar o Comandante em um local mais seguro, Miller desceu para o convés, com os japas metralhando impiedosamente os marinheiros na água e nos navios.

Vendo o ar repleto de Mitsubishis A6M Zeros, Doris Miller pensou no que fazer, até que viu uma bateria antiaérea dupla, calibre .50.

Ele não tinha treinamento algum com aquela arma, nem era autorizado a mexer nela, mas como bom curioso, Doris acompanhava de perto seus colegas quando treinavam com a .50, e nas palavras dele, "não havia nenhum mistério, era apertar o gatilho e pronto".

Miller, ensandecido, metralhou todos os Zeros que passavam, firme em seu posto enquanto à sua volta era pura gritaria e desespero. Pelo menos um Zero foi derrubado por ele, comprovando o que todo fã do Steven Seagal já sabe, nunca mexa com um cozinheiro.

Um bom número de outros caças tiveram seus ataques interrompidos, difícil mirar quando alguém está atirando em você.

O feito de Miller foi recriado no cinema algumas vezes, a mais recente em Pearl Harbor, de 2001, e é uma das poucas coisas que prestam daquele filme:

O ato do jovem marinheiro negro não passou em branco; ele foi recomendado para uma condecoração, citado como "marinheiro negro desconhecido", mas uma investigação da Associated Press conseguiu identificá-lo.

O Secretário da Marinha escreveu uma carta de agradecimento a Miller, tratando-o como "um dos primeiros heróis americanos da Segunda Grande Guerra". Em maio de 1942 Miller recebeu a Cruz Naval, a mais importante condecoração da Marinha dos Estados Unidos e uma das maiores condecorações militares, só perdendo para a Medalha de Honra do Congresso.

A cerimônia aconteceu no convés do porta-aviões USS Enterprise, e Doris Miller recebeu a medalha de ninguém menos que do Almirante Chester Nimitz, Comandante-em-Chefe da Frota do Pacífico e coincidentemente também um futuro porta-aviões.

Promovido para Assistente de Cozinha Primeira Classe, ele foi transferido para o porta-aviões de escolta USS Liscome Bay, e aqui a vida real fala mais alto. Não há final feliz. Em 24 de novembro de 1943, o USS Liscome Bay foi torpedeado pelo submarino japonês I-175.

Em 23 minutos o navio afundou, levando para seu túmulo submerso 644 de seus 916 tripulantes, entre eles Doris Miller. Se serve de consolo, dois meses depois o Liscome Bay foi vingado, dois destróieres, o USS Charrette e o USS Fair, cercaram e atacaram o I-175, que afundou com todos os 70 tripulantes a bordo.

Miller foi homenageado em 1973, batizando o USS Miller (FF-1091), uma fragata que serviu até ser descomissionada em 1991, quando foi vendida para a Turquia para ser usada como alvo, um fim nada nobre pro pobre Doris, mas agora tudo mudou.

Em uma cerimônia em Pearl Harbour hoje (20), dia de Martin Luther King, Jr nos EUA, o Secretário da Marinha anunciou oficialmente que o próximo porta-aviões Classe Gerald Ford, CVN-81, será chamado Doris Miller.

É um senhor upgrade, a Classe Ford é o melhor que há, são 100 mil toneladas de pura diplomacia, 337 metros de comprimento, catapultas eletromagnéticas, dois reatores nucleares de 700 MW, quase 4.000 tripulantes e 75 aviões, podendo carregar até 90. E ainda é stealth a desgraça.

O USS Doris Miller começará a ser construído em 2023, se nenhuma guerra surgir e adiantarem os trabalhos. Deve ficar pronto em 2028 e ser incorporado à frota em 2030, para servir durante pelo menos 50 anos, levando para as novas gerações o nome, o legado e a lição de um humilde cozinheiro que diante de uma situação impossível, decidiu enfrentar o destino de pé, com uma arma na mão, defendendo um país que o tratava muito mal, mas cuja ideia, cujo sonho valia o sacrifício final.

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