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Joan Curran - Sem ela Maverick não teria a menor chance. Nem os aliados

Joan Curran foi uma física, engenheira e cientista que não só salvou milhares de vidas na Segunda Guerra, como salva até hoje

4 anos atrás

Joan Curran, então Joan  Strothers nasceu em 1916, tarde demais para se lembrar da Grande Guerra, mas infelizmente resolveram fazer uma revanche. Para nossa sorte a guerra pegou Joan no auge de sua juventude, seu gênio e sua capacidade de pensar fora da caixa. Suas contribuições foram fundamentais para o Esforço de Guerra, e parte de suas invenções ainda não foram superadas.

Numa época em que mulheres na Inglaterra eram tão marginalizadas que nem podiam votar pra Presidente, Joan deu sorte de ser filha de um oculista que apoiava e incentivava seu interesse em ciência, e ela conseguiu uma bolsa para estudar Física em Cambridge, mas a instituição não era tão progressista assim. Mulheres podiam estudar física mas não se graduar, então Joan ficou na curiosa posição de uma física formada qualificada não-diplomada.

Claro, isso não impede quem realmente quer correr atrás, e com muito papo ela convenceu quem tinha que ser convencido e conseguiu outra bolsa, para cursar um Doutorado no Laboratório Cavendish, um dos mais importantes de Cambridge. Lá Joan Strothers conheceu Sam Curran, e se você está prestando atenção nos sobrenomes, nem preciso dar o spoiler.

Joan ficou famosa no laboratório por ter "dedo verde" para ciência, ela era excelente instrumentalista, fazia mágica em física aplicada, para desespero do departamento de física teórica, que achava que tudo que um cientista precisa é um quadro-negro e um cesto de papel, e do departamento de filosofia, que só precisa do quadro-negro.

Phillip Dee, chefe do laboratório sugeriu que o grupo fizesse um estágio no Royal Aircraft Establishment, um laboratório de pesquisas da Força Aérea Real. Eles foram e dois dias depois que chegaram, em 1939, estourou uma tal de Segunda Guerra Mundial.

Eles foram ficando e começaram a ajudar no esforço de guerra, criando soluções científicas para os novos problemas, e poucos problemas eram mais novos e imediatos do que as bombas V1.

A Vergeltungswaffe 1 foi o primeiro míssil de cruzeiro. Com alcance de 250Km, era capaz de decolar da Bélgica e levar uma ogiva de 850Kg de alto-explosivo até Londres. ela voava a 650Km por hora, 900 metros de altitude. O sistema de guiagem terminal era simples: Quando o combustível acabava ela embicava pro solo. O combustível era calculado para chegar até Londres. Quando seu alvo é uma cidade inteira, fica difícil errar.

A V1 era uma arma de terror, de vingança, e no auge da guerra os nazistas lançaram mais de 100 por dia contra a Inglaterra. Mais de 9500 foram lançadas no total.

Combater a V1 dependia de coragem e sorte. Você podia usar caças, se conseguisse identificar o míssil vindo. Atirar não era uma boa, por causa da explosão. Uma técnica era voar lado a lado, dar um toquinho com a asa do Spitfire na ponta da asa da bomba voadora, ela perderia o controle e acertaria o chão de alguma fazenda, longe de Londres.

A segunda técnica era usar baterias antiaéreas, mas havia um problema: Ou você atinge a bomba diretamente ou usa um temporizador, que nada mais é que um timer de cozinha no projétil. Você calcula a altitude do alvo, a distância, o tempo de voo do projétil, ajusta a cabeça do projétil e dispara.

Como você deve ter deduzido isso não era muito preciso. a média de acertos, com 784394237498 canhões disparando desesperadamente pra evitar que um quarteirão inteiro de Londres virasse poeira era de 24%.

O grupo de cientistas lá no laboratório da Força Aérea começou a pensar: E se a gente fizesse o projétil explodir não por tempo, mas quando estivesse próximo da bomba voadora?

A ideia era ótima mas eles não tinham estagiários em número suficiente nem em tamanho pequeno para caber nos projéteis. Sam e Joan tiveram uma ideia: Que tal construir um RADAR na ogiva do projétil?

Lembre-se, era 1939, 1940. Não existiam computadores (ou melhor existiam mas só meia-duzia sabia disso) e a eletrônica eram baseada em barro fofo e pedra lascada. Embutir um radar inteiro em um projétil, no tempo das válvulas, e ele ainda ter que aguentar a aceleração de milhares de gravidades do disparo de um canhão?

Eles conseguiram, e como era de se esperar, Sam se tornou o criador do detonador de proximidade, Joan não foi listada entre os co-criadores, mas ao menos ganhou um marido, yay!

Sem ter como produzir o equipamento avançadíssimo em grandes quantidades, os ingleses entregaram os planos para os americanos, que produziram toneladas dos detonadores, venderam de volta pros ingleses (Regra de Aquisição 34: Guerra é bom para os negócios) e magicamente (mágica nada, ciência bagarai) aqueles 24% de bombas V1 derrubadas subiram pra 79%.

Joan Curran e o marido mostraram que eram tão bons com radar que foram transferidos para o Telecommunications Research Establishment, para trabalhar com -isso mesmo- radar.

Radar e Joan Curran

Existe uma lenda de que o radar foi uma invenção revolucionária inglesa, mantida em segredo a todo custo dos alemães, mas como sempre acontece em histórias de guerra, a verdade é bem mais complicada. Em 1935 os alemães tinham radares (ou como eles chamavam Funkmessgeräts) mais eficientes que os aliados, mas o desenvolvimento não foi priorizado. Meu pintor austríaco favorito (não me julgue só conheço um) achava radar uma arma defensiva, e por isso não deveria ser priorizada.

As forças armadas discordaram, e discretamente começaram a investir em sistemas mais e mais complexos. Foram dezenas de milhares de unidades espalhadas pela marinha, em aviões e pela Wehrmacht, inclusive o FuMG 41/42 Mammut, capaz de identificar alvos a mais de 300Km de distância e 8 mil metros de altitude.

Na Inglaterra, Sam Curran trabalhava criando radares melhores, Joan por sua vez foi alocada em uma unidade aonde pesquisava como derrotar e inutilizar radares. As conversas de travesseiro dos dois deviam ser divertidas.

Como ainda não existiam mísseis terra-ar (não, o Fliegerfaust só funciona no Battlefield V, nunca deu certo na vida real) inutilizar o radar inimigo tinha dois motivos principais: Primeiro, afetar a precisão dos canhões guiados por radar, que começavam a aparecer e eram devastadores e segundo, ocultar do inimigo a informação que 1500 bombardeiros carregados de pura morte estavam chegando pra estragar seu dia.

Alguns grupos trabalhavam com interferência eletrônica, já Joan Curran tinha outro foco: Interferência passiva (ui!).

O conceito é simples: Algumas coisas refletem sinais de radar muito bem, e se você cortar o material em um comprimento proporcional ao comprimento de onda do sinal, o reflexo fica maior ainda. Joan Curran, a experimentalista que era, se trancou no laboratório e começou a experimentar. Fios, folhas de papel aluminizado, no final depois de milhares de testes ela concluiu que o mais eficiente eram tiras de papel-alumínio:

Ela batizou o negócio de chaff (palha) e a tecnologia ganhou o codinome "window". Ela foi usada a sério pela primeira vez em 24 de Julho de 1943, no bombardeio de Hamburgo, que durou 8 dias e 7 noites. A missão foi chamada de Operação Gomorra, em referência à história bíblica de Sodoma e Gomorra. Escolheram a segunda porque dizer que a cidade foi sodomizada não era o bastante. Hamburgo foi Gomorrizada, um ato que sequer pode ser descrito. 42 mil civis mortos.

Do lado bom, uma quantidade excepcional de bombardeiros voltaram inteiros, o fogo antiaéreo alemão (ou nazista, é, chamemos de nazista, alivia um pouco) foi extremamente afetado pelas nuvens de chaff lançadas nas nuvens. Sem nenhum Mestre Sith pra ensinar os truques, os artilheiros não sabiam aonde mirar.

Nuvens aliás são importantes. Meteorologistas ficam sempre de olho nelas, e percebem quando elas estão se comportando mal. Acontece o tempo todo, como neste caso em 2018.

Na área entre Nova York, Nova Jersey e Connecticut surgiram nuvens que não estavam lá, uma rápida pesquisa mostrou aeronaves militares em treinamento. As nuvens de chaff aparecem nos radares meteorológicos.

Isso mesmo, 80 anos depois a invenção de Joan Curran ainda é usada. Todo avião militar e alguns civis (Cof cof Israel cof cof Força Aérea 1) possuem dispensers de chaff e flares, para confundir mísseis guiados por radar ou calor. Em geral são lançados juntos, não há muito tempo pra decidir qual míssil está atrás de você, ou se o míssil tem um rastreador de backup.

Ainda não existe tecnologia capaz de responder a uma tela cheia de sinais espúrios e interferência, e a criação de Joan Curran continuará sendo usada por um bom tempo.

Criação essa inclusive durante o Dia D, confundindo o radar alemão para que não identificassem os aviões com os paraquedistas aliados (isso Band of Brothers não mostra!) e criando uma frota de invasão falsa em Pas de Calais. Chaff também foi usado na Operação Titanic, confundindo o radar alemão ao mesmo tempo em que lançavam milhares de bonecos simulando paraquedistas e fazendo com que os alemães achassem que a invasão era em outro canto. Essa, admito, não funcionou.

Joan Curran deixou a Inglaterra em 1944 para trabalhar em algo bem importante: O Projeto Manhattan. Ela e o marido otimizaram as tecnologias de separação de isótopos de Urânio, sem o qual as bombas atômicas que encerraram a guerra seriam meros pesos de papel. Bem grandes, mas pesos de papel.

A contribuição de Joan Curran é inestimável, vários autores atestaram que ela foi mais importante para o esforço de guerra do que o marido, e Sam nunca discordou.

Ele morreu em 25 de Fevereiro de 1998. Com sensação de dever cumprido, sabendo que sua invenção ainda era usada e protegia a vida de milhares de pilotos e passageiros, de todas as raças e nacionalidades. Joan Curran logo o seguiu, falecendo em 10 de Ferereiro de 1999, e se há uma injustiça nessa história, é só termos uma foto minúscula dessa mulher que merecia pelo menos uma estátua.

Este artigo é parte de uma série sobre grandes mulheres na ciência, em honra ao Mês da Mulher, ou algo assim.

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