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Como World of Warcraft pode ajudar no combate ao coronavírus

Pesquisadores que estudaram "epidemia" de World of Warcraft usam experiência para analisar o comportamento humano frente ao coronavírus

4 anos atrás

A princípio World of Warcraft e coronavírus não parecem ter nada um com o outro, mas quem joga o MMORPG desde os primórdios deve se lembrar do "Incidente do Sangue Corrompido", um bug que sob todos os aspectos, foi o primeiro patógeno disseminado em um meio digital.

O caso rendeu vários estudos e análises da comunidade médica, e hoje dois desses pesquisadores usam o que aprenderam com o jogo para melhor se preparar para os impactos do coronavírus na sociedade.

Blizzard / World of Warcraft

Em 13 de setembro de 2005, World of Warcraft introduziu uma nova raid e seu chefe, chamado Hakkar, o Esfola-Almas. Entre suas habilidades, havia uma magia de debuff chamada "Sangue Corrompido", que causava uma grande quantidade de dano e (atenção nesta parte) era transmissível entre os participantes da raid, podendo infectar jogadores, suas montarias e mascotes.

Originalmente, o debuff causado pelo Sangue Corrompido foi planejado para circular somente dentro da região de Zul’Gurub, ou que tivesse um alcance limitado já que possuía um limite de tempo para sumir, além do que podia ser curada por curandeiros e sumia se o jogador morresse e revivesse. A intenção era que a magia fosse um limitador para jogadores de níveis baixos, enquanto não passasse de um incômodo para os veteranos, que resistiriam ao debuff durante a batalha.

No entanto, entrou o comportamento humano na equação: as montarias e os mascotes de bruxos e caçadores agiam como vetores da doença, já que por causa de uma programação porca (se acidental ou intencional, nunca saberemos), eles contraíam o "vírus", não ficavam doentes e podiam passa-los para a frente. Jogadores podiam também sair de Zul'Gurub ainda infectados, e mesmo NPCs podiam agir como vetores.

A partir daí é fácil imaginar o que aconteceu: assim como no mundo real, jogadores e pets portadores do debuff chegavam nas cidades e infectavam todos ao redor, com a doença do Sangue Corrompido se espalhando de forma similar a uma epidemia do mundo real. Diversas ações foram tomadas por parte tanto dos jogadores quanto da Blizzard, que replicavam comportamentos-padrão em ações de contenção de uma doença infecciosa, tais como:

  • Criação de zonas de quarentena;
  • Campanhas de atendimento à população (curandeiros de nível alto curavam jogadores infectados gratuitamente);
  • Campanhas de prevenção (jogadores orientavam outros a evitarem zonas de quarentena);
  • Criação de postos de controle (jogadores faziam guarda de cidades livres da doença, impedindo outros de entrarem), e etc.

Ainda assim, o estrago foi grande. Embora World of Warcraft ainda estivesse na versão "vanilla" (a primeira expansão The Burning Crusade só chegaria em janeiro de 2007), o título já contava com mais de 2 milhões de jogadores na época em que a praga do Sangue Corrompido estourou.

Muitos jogadores espalhavam a doença pelas cidades de propósito (sempre haverá os que só querem ver o mundo queimar), enquanto uma boa parcela abandonou o game até que uma correção fosse implementada. A Blizzard foi obrigada a fazer hard resets nos servidores infectados, praticamente os reprogramando desde a raiz.

No dia 8 de outubro de 2005 a doença foi finalmente contida. Hoje o Sangue Corrompido não mais infecta animais e está restrito apenas à região original, como inicialmente planejado.

O incidente acabou atraindo a atenção da comunidade médica, por conta da similaridade entre a pandemia digital e as do mundo real. Pesquisadores estudaram o ocorrido como uma maneira de prever como pessoas no mundo real reagiriam a situações similares, e um destes foi o artigo publicado em 2007 pela Tufts University, de autoria de Eric Lofgren e Nina Fefferman.

O estudo publicado pelos epidemiologistas avalia como o incidente em WoW poderia ser usado para melhor prever o comportamento humano frente a uma pandemia generalizada, especialmente seu impacto na saúde pública, considerando que diferente de modelos matemáticos, humanos são bem mais imprevisíveis e tais previsões quase nunca levam o hospedeiro em conta.

Drs. Eric Lofgren e Nina Fefferman / world of warcraft

Drs. Eric Lofgren e Nina Fefferman

Hoje, o dr. Loefgren trabalha na Universidade do Estado de Washington, um dos mais afetados pelo coronavírus nos Estados Unidos, e sua pesquisa é focada exatamente no impacto que epidemias podem causar no sistema público de saúde do país: necessidade de equipamentos e remédios, disseminação e contenção da doença entre a equipe médica e etc.

Segundo ele, o que aconteceu em World of Warcraft é um caso que ilustra bem o comportamento humano, tanto na transmissão não-intencional quanto na deliberada (vide quem diz que o coronavírus é "fantasia"):

"Há um vírus se espalhando entre as pessoas, e como elas interagem, se comportam e se submetem a figuras de autoridade, ou não, são todos fatores muito importantes. E há também os elementos caóticos. Você não pode realmente fazer uma previsão, dizendo 'OK, todo mundo vai ficar de quarentena. Vai ficar tudo bem'. Não, elas não vão ficar."

De acordo com Lofgren, há inclusive jogadores de WoW Classic tentando reiniciar o incidente, amas mesmo sendo o jogo "clássico", ele possui uma correção implementada que impede a propagação do bug.

Por e-mail, a dra. Nina Fefferman (que hoje trabalha na Universidade do Tennessee) disse que o incidente de World of Warcraft foi fundamental para entender como as pessoas se comportam, algo que pode ajudar no combate ao coronavírus:

"O caso me fez entender como as pessoas percebem ameaças, e como diferenças nessa percepção mudam o comportamento (...). Desde então, muito do meu trabalho tem sido tentar criar modelos sociais para percepção de risco, e acho que eu não teria chegado a esse ponto se não tivesse passado um tempo pensando nas discussões dos jogadores de WoW na época, sobre o Sangue Corrompido e como agir no jogo, baseados no entendimento que eles criaram com base nessas discussões."

Apesar disso, o dr. Lofgren acredita que mesmo com as medidas de contenção implementadas agora (cancelar aulas, fechar fronteiras, implementar restrições de deslocamento, desestimular aglomerações) são medidas importantes, mas que foram implementadas tarde demais.

Sob seu ponto de vista, os Estados Unidos (e outros países) deveriam estar melhor preparados para incidentes do tipo, e não apenas ter uma resposta reativa. De certa forma, o incidente do Sangue Corrompido é um reflexo didático do mundo real, com seus prós e contras.

Com informações: PC Gamer.

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