Ronaldo Gogoni 3 anos e meio atrás
Spiritfarer é um caso clássico de "a terceira vez é que conta": depois dos excelentes Jotun e Sundered, a desenvolvedora indie Thunder Lotus Games entrega um jogo com mecânica completamente diferente, indo da ação ao gerenciamento de recursos, com uma singela narrativa sobre a vida, a morte e o pós-vida.
O resultado é uma obra-prima, um dos mais sensíveis e belos jogos dos últimos anos.
A história de Spiritfarer se passa no pós-vida, em que a protagonista Stella desperta na presença de Caronte, o barqueiro do submundo. Ele incumbe a jovem (e seu gato Daffodil) da tarefa mais árdua e honrada que existe, a de sucedê-lo como a nova condutora dos espíritos.
Ela recebe uma ferramenta mágica, a Luz Eterna, um globo capaz de assumir qualquer forma e que age como o símbolo de seu status como barqueira dos mortos, e lhe permite cumprir o trabalho como a "segunda Caronte": levar os mortos através do rio Estige, na mitologia grega a fronteira entre o submundo e o mundo dos vivos.
A partir daqui, Stella e Daffodil têm um vasto mundo para explorar com seu barco, onde sua missão é encontrar almas errantes e ajudá-las a resolver as pendências que deixaram quando morreram, para só então serem capazes de seguir em frente, rumo ao descanso dos justos.
Dizendo dessa forma, a impressão que Spiritfarer passa é a de ser um jogo triste, já que todos os personagens, incluindo Stella, estão mortos (é o pós-vida, afinal); no entanto, a narrativa se concentra não em reconhecer que os passageiros deixaram o mundo dos vivos, e sim em conciliar suas narrativas e resolver seus problemas.
E por incrível que pareça, você nunca viu um grupo com espíritos tão... vivos.
Spiritfarer é um jogo de gerenciamento de recursos e pessoas. No papel de Stella, você terá que administrar seu barco e cuidar do bem-estar de seus passageiros, já que a embarcação será a casa temporária deles.
Você tem a opção de construir diversas estruturas no deque, desde uma casa de hóspedes a uma cozinha (para fazer as refeições favoritas de cada espírito), uma marcenaria (para trabalhar com madeira e outros recursos), um arado e um jardim (para plantar ingredientes), um tear (para trançar tecidos) e por aí vai.
O barco em si não precisa ser conduzido: ele se move graças à Luz Eterna de Stella e você só precisa marcar um ponto no mapa, que ele se dirigirá até lá enquanto for dia. À noite ele para, até para permitir que os espíritos durmam sem o barulho do motor.
Você pode conseguir recursos de diversas maneiras: pescando, coletando madeira em ilhas, comprando no mercado e etc. Alguns itens e materiais podem ser coletados em pontos específicos, como centelhas (a moeda corrente do pós-vida), sementes e raios, que você guarda em garrafas.
Exatamente por isso, é preciso pensar bem onde colocar cada nova estrutura, pois a coleta de glims e raios é feia não apenas se movendo horizontalmente, mas também verticalmente. Assim, cômodos bem posicionados permitem que você se mova melhor.
Conforme você faz upgrades no navio, o deque ficará maior e permitirá que você crie mais construções, algumas pedidas pelos passageiros, que gostam de ter seu cantinho particular; outras permitirão que eles usem suas habilidades particulares, como Atul, um marceneiro, e Gwen, uma tecelã.
Cada passageiro que Stella acolhe em seu barco é único: a Thunder Lotus Games decidiu caracteriza-los como animais antropomórficos e cada um possui uma personalidade única, com desejos, necessidades e humores distintos.
A alce Gwen, por exemplo é uma mulher esnobe, pedante e possui uma língua bem afiada, traço este que vem a calhar em uma parte específica; o sapo Atul é extrovertido e comilão; a cobra Summer é espiritualizada e ensina Stella a tocar música para as plantas (o que é bem útil), e assim vai.
Cada espírito possui uma comida favorita, aquelas que gosta e que não gosta, hobbies e etc., e Stella deve deixar seu nível de satisfação no máximo, seja com as refeições, com construções personalizadas ou com abraços.
Embora essencialmente um jogo de gerenciamento, Spiritfarer também possui elementos de plataforma, que você fará uso para coletar recursos pelo mapa e pelo barco, ou resolver quebra-cabeças. Com o tempo, a personagem ganhará novas habilidades ao compra-las com óbolos.
Na mitologia grega, o morto devia pagar um óbolo, uma moeda mortuária a Caronte, para que este pudesse levá-lo para o reino dos mortos; assim, era costume na Grécia e Roma antigas os falecidos serem enterrados com um óbolo, para custear a travessia. Quem não tivesse a moeda (morreu sem ser sepultado, ou sem o óbolo) era condenado a vagar pelas margens do rio Aqueronte, um dos afluentes do Estige por 100 anos, até que lhe fosse permitido seguir viagem.
A mecânica pode parecer cansativa e repetitiva, mas Spiritfarer faz um bom trabalho ao dar significado à jogabilidade, amarrando-a de forma intrínseca à narrativa. No fim, a experiência é divertida e o leque de customizações permite extensa experimentação, sem nenhum tipo de punição.
Um fato interessante é Stella ser o clássico protagonista mudo; na verdade ela mal possui uma personalidade, o pouco que sabemos de seu background vem dos espíritos que a conheceram em vida.
Os verdadeiros protagonistas do jogo são os passageiros, com sua bagagem de histórias, conflitos pessoais e assuntos a resolver, onde Stella deve fazer o possível para que sejam concluídos. A localização fez um excelente trabalho de tradução e adaptação do texto para o português brasileiro, mantendo o sentido e peso emocional de cada momento.
Os gráficos são lindos, uma excelente arte desenhada à mão similar a de Sundered, mas mais limpa, dada a temática do jogo. As músicas, por sua vez dão o tom em momentos divertidos, tristes e de suspense.
Porém, a força de Spiritfarer está não em agir, mas em ouvir. Por não falar, Stella é a espectadora da trajetória de seus passageiros, que deverão encerrar seus problemas pendentes para só então serem capazes de ir para outro lado, o descanso eterno.
É aqui que o jogo ensina o desapego, pois cada um daqueles únicos personagens dirá adeus a Stella em algum momento.
Muitas vezes a hora chega sem aviso nenhum, uma lembrança de que a morte não marca hora na vida real; resta ao jogador respeitar o momento de cada espírito e permitir que eles sigam em frente.
Normalmente tratada como um momento triste da vida, ou alegre em algumas culturas, a Thunder Lotus Games escolheu abordar a morte em Spiritfarer de modo equilibrado, onde ela não deve ser temida ou celebrada, mas respeitada como parte natural da vida e da jornada individual de cada um de nós, a aventura final que todos teremos que encarar, sozinhos, no fim de nossos dias.
A importância dos que se foram em Spiritfarer repousa nos ensinamentos que cada espírito passará adiante, que Stella usará em sua missão como barqueira e guia de seus próximos passageiros.
Assim como na vida real, é isto que permite às pessoas continuarem vivas para aqueles que ficam: o que elas deixam para trás.
Poucos foram os jogos que conseguiram atingir o estado de arte completa, equilibrando história, apresentação e jogabilidade. Da última década podemos citar dois casos, Journey e GRIS (curiosamente, ambos também de estúdios independentes), que são bem similares entre si, embora suas narrativas sejam completamente diferentes.
Spiritfarer entra para esse seleto grupo como um game completamente ímpar: mesmo sendo de um gênero que muitos não curtem, a criação da Thunder Lotus Games consegue amarrar suas mecânicas à história organicamente, de modo a não se tornar maçante ou repetitivo.
No fim, Spiritfarer é uma experiência sobre ouvir. Stella atua como o fio condutor da história de seus passageiros, os verdadeiros protagonistas do jogo, e oferece os meios para que eles resolvam suas pendências e possam seguir em frente, rumo ao descanso eterno.
Mais do que um jogo sobre a importância da vida e aprender a lidar com a partida daqueles que amamos, Spiritfarer é um game sobre se doar, ajudar, apoiar, confortar e reconhecer o valor daqueles que nos cercam.
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