Meio Bit » Miscelâneas » Cenoura, espinafre e outras mentiras de guerra

Cenoura, espinafre e outras mentiras de guerra

Mentiras e guerra sempre estiveram juntas, mas algumas perduram até hoje, por mais que sejam desmascaradas, as pessoas se apegam e as perpetuam

3 anos e meio atrás

Um velho ditado diz que na guerra a primeira vítima é a Verdade, mas que diabos isso tem a ver com cenouras e panelas? Quais mentiras são aceitáveis, e quais perduram até hoje?

What's Up, Doc?(Créditos: Claudette Colbert e Clark Gable em It Happened One Night - 1934 - Domínio Público)

Primeiro de tudo não estamos falando de mentiras como dizer que está tudo bem no front, enquanto as cartas dos soldados param de chegar às suas famílias, ou o pacto de silêncio da Operação Tiger, mas de mentiras específicas e criativas.

A primeira de todas envolve...

Cenouras

Cenouras são ricas em Vitamina A, uma das características de carência de vitamina A é cegueira noturna. Todo mundo sabe que cenoura faz bem pra vista, mas o que pouca gente sabe é que se você comer muita cenoura ganha superpoderes, como John Cunningham, um piloto de caça noturno que conquistou pelo menos 20 vitórias em combates sobre Londres.

Quando perguntado sobre o sucesso de Cunningham, a resposta do Ministério da Guerra foi que ele comia muita cenoura e por isso tinha uma excelente visão noturna, tudo dito com a cara de pau de quem está acostumado a contar mentiras.

A história das cenouras serem boas pra vista atravessou o Atlântico, mesmo nos EUA cartazes promoviam os legumes. (Crédito: U.S. National Archives and Records Administration - Domínio Público)

Quando mais pilotos começaram a derrubar com precisão aviões nazistas e bombas voadoras V1, uma campanha explicativa atribuiu as vitórias às cenouras, que também eram promovidas para civis, dizendo que ajudariam na visão noturna durante os blecautes.

Não tem sorvete? Chupa cenoura. (Créditos: British Pathé - screenshot - Domínio Público)

Cenouras também eram vendidas como substitutos de açúcar, e na falta de leite para sorvetes, as pobres crianças inglesas tinham que chupar cenouras geladas. War is Hell.

O que ninguém sabia é que a história das cenouras era pura cortina de fumaça. Não estou dizendo que Cunningham e seus amigos eram trapaceiros, mas eles dizimavam os nazistas com ajuda disto:

Radar de Interceptação Aérea SCR-720 (Créditos: Wikimedia /Daderot - Domínio Público)

É um Radar de Interceptação Aérea, desenvolvido secretamente e instalado mais secretamente em aviões para tentar deter os bombardeiros noturnos.

O radar em si não era segredo, alemães tinham seus próprios equipamentos e os usavam muito bem, a vantagem estratégica era colocar um radar em um avião e usar para encontrar outros aviões na região, sem depender do alcance de unidades em terra e tendo por causa da altitude um alcance bem maior.

Não há registros se os nazistas engoliram as mentiras, mas a lorota foi mantida durante toda a guerra e a população essa sim fez muito uso da cenoura (no bom sentido) e até hoje o mito de que comer cenoura torna a visão do sujeito mais eficiente é repetido por mães bem-intencionadas.

Na prática você consegue beta-caroteno de mangas, abóbora, melão, couve, espinafre e várias outras fontes, e a menos que esteja sofrendo de alguma deficiência grave, não precisa se entupir de cenoura, e se você mesmo assim insistir, o máximo que vai conseguir é ficar laranja. E ninguém merece isso.

Orange Man Bad. (Créditos: Casa Branca - Domínio Público)

Espinafre

Popeye se garantia mesmo sem espinafre. (Créditos: I'm in the Army Now - 1936 - Max Fleisher - Domínio Público)

Popeye foi criado em 1929 por Elzie Crisler Segar, mas todo mundo conhece mesmo o personagem por causa dos desenhos da década de 1930, do gênio Max Fleisher.

Durante a Segunda Guerra Popeye protagonizou vários desenhos em prol do esforço de guerra, que hoje são considerados politicamente incorretos, como o ótimo “You’re a sap mr Jap”

Popeye influenciava crianças a comer espinafre, um negócio que é basicamente uma erva daninha sem-graça mas a promessa de ficarem fortes como o Popeye alavancou as vendas do produto, a ponto dos agricultores erguerem estátuas em honra ao Marinheiro.

O que ninguém fala é que a história que Espinafre contém muito ferro e por isso faz bem é uma mentira. Melhor ainda,  mentiras em cima de mentiras.

Tudo começou em 1870 quando uma pesquisa alemã mediu errado a quantidade de ferro no espinafre e a planta pegou fama de super-alimento. Popeye por sua vez ganhou seus poderes originalmente ao acariciar a Galinha Berenice, e nem superforça ele tinha, Popeye era apenas invulnerável. O Espinafre entrou mais tarde em um retcon.

Quando ele foi criado já havia sido desmentida a história do espinafre super-rico em Ferro, a explicação era que uma casa decimal foi pulada durante uma tabulação pelos alemães, mas isso era um erro também. Só nos Anos 80 foi descoberto que a abundância de ferro na planta era culpa de uma mensuração mal-feita.

Mesmo assim até hoje espinafre é vendido como um alimento maravilhoso para tratar anemia, mesmo tendo a mesma quantidade de ferro que alimentos como... melancia.

A falsidade do espinafre foi especialmente mantida durante a Guerra, afinal muito melhor que as crianças continuassem querendo comer uma planta que nasce em qualquer canto sem muitos cuidados, e que se não transformava ninguém no Capitão Guapo, ao menos mal não fazia. Exceto quando contaminado com salmonela.

Paneleiros e Paneleiras

Moças britânicas desmontando uma grade para o esforço de guerra. (Créditos: Leslie Jones Collection / Boston Public Library)

Um dos problemas da Inglaterra é ser uma ilha, e com as dificuldades causadas pela Batalha do Atlântico matérias-primas se tornaram necessidades estratégicas. Boa parte do ferro, cobre e outros materiais vinham de fontes estrangeiras, o que era extremamente perigoso, um sucesso a mais de Hitler em bloquear os comboios e os ingleses estariam ferrados.

Uma opção surgiu quando Winston Churchill nomeou o Lorde Beaverbrook como Ministro da Produção Aeronáutica. Ele imediatamente começou a procurar fontes alternativas, e abraçou a reciclagem, Beaverbrook era praticamente do Greenpeace, se o Greenpeace produzisse coisas que fazem cabum e ratatatá.

Sucateiro é a mãe! (Créditos: Leslie Jones Collection / Boston Public Library)

Uma das medidas foi a promulgação de uma Lei que requisitava todas as decorações, trilhos e grades, exceto em casos de extremo valor histórico. Por toda a Inglaterra as pessoas começaram a serrar seus portões e grades de parques e prédios públicos.

Junto com as grades, outra campanha foi criada, para “transformar panelas em Spitfires”. Alumínio de panelas seria usado para construir os aviões que defenderiam a Inglaterra.

Nos EUA também havia campanha para recolher sucata para a Guerra. (Crédito: Biblioteca do Congresso - Domínio Público)

Donas de casa escolhiam as panelas que gostavam menos e doavam para o esforço de guerra.

Lindo e significativo, mas havia um problema: Depois da guerra não se achou nenhum documento, nenhum relatório sobre a quantidade de ferro recolhido. Mesmo durante a Guerra surgiram boatos que o metal recolhido não era de qualidade, e costumava ser jogado no mar.

As fábricas de material bélico que foram designadas pra usar o metal reciclado nunca chegaram à produção máxima, o que significava que o metal vindo das fontes tradicionais era mais que suficiente.

A moça das panelas (Crédito: Daily Herald - Domínio Público)

Na parte das panelas, a situação era mais ou menos diferente. Alumínio era bem precioso, e panelas podiam ser derretidas e purificadas, ao menos para os padrões aceitáveis de pureza da época, mas os números não batiam.

Entre Junho e Outubro de 1940 as fábricas inglesas produziram 5185 aviões. Quanto isso dá em panelas? Bem, um único Spitfire consome o equivalente a 5000 panelas para ser produzido.

Cinco meses de produção, 25.9 milhões de panelas é panela bagarai.

Especialistas hoje concordam que a contribuição das panelas no esforço de guerra foi insignificante, e que toda a campanha foi acima de tudo um esforço psicológico para elevar a moral da população, dando às pessoas que ficaram de fora a sensação de que estavam ajudando, que também estavam “fazendo sua parte”.

É mentira? Sim, mas ninguém ganha guerra sendo brutalmente honesto. Churchill conquistou corações e mentes prometendo “sangue suor e lágrimas”, mas só uma vez, se toda vez que fizesse uma declaração pública ele contasse a real situação, teria sido demitido antes de Dunquerque.

Leia mais sobre: , , , .

relacionados


Comentários