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Wargames – Jogos de Guerra: 38 anos de um clássico

Wargames é um filme que resistiu à passagem do tempo, o que é raro, e em filmes com foco em tecnologia, é raríssimo, e por isso é um clássico

3 anos atrás

Filmes sobre tecnologia, como Wargames em geral se enquadram em dois tipos: Os que acertam, mas envelhecem muito rápido, e os que erram, e envelhecem mais rápido ainda. A maior parte da ficção científica cai na segunda categoria, vide a virtual ausência de celulares e mídias sociais mesmo nas obras clássicas.

A Sala de Guerra do NORAD, ao menos na imaginação dos designers (Crédito: United Artists)

Wargames conseguiu escapar por não se propor a “inventar” nada. A tecnologia da época foi usada e mostrada com perfeição, em prol da história, e o resultado foi um filme alegre, tenso, instigante e otimista mesmo diante do Armagedom.

Sinopse

David Lightman (Matthew Broderick) é um hacker adolescente que está tentando acessar uma softhouse para piratear jogos que eles acabaram de anunciar. Você sabe, tipo como hackearam a EA. David sem-querer encontra um número que está ligado a um computador do NORAD, mas ele não sabe.

Matthew Broderick e a minha só minha Ally Sheedy (Crédito: United Artists)

No Departamento de Defesa os oficiais nos silos de mísseis foram substituídos por um sistema automatizado, o WOPR – War Operation Plan Response, que roda continuamente simulações de conflitos bélicos. Quando Lightman inicia um jogo de Guerra Total Termonuclear, o sistema reage de acordo, mas sem saber diferenciar realidade de simulação, está se encaminhando para atacar de verdade a União Soviética.

Com a ajuda do criador do WOPR, David tem que voltar até o NORAD e convencer todo mundo que é tudo uma simulação e os EUA não estão sendo atacados pelos russos.

UOPR. Um computador com cara de computador, sem nada sinistro. (Crédito: United Artists)

Wargames foi um dos primeiros filmes de hackers, mas os próximos filmes não aprenderam nada com ele. Por isso rimos de coisas ridículas como Hackers (1985) – exceto na parte da Angelina Jolie – mas Wargames se sustenta até hoje.

O conceito de um computador confundir uma simulação com um ataque real é assustador, mas mais ainda é saber que o conceito é real e já havia acontecido. Em 9 de Novembro de 1979 um computador no NORAD foi alimentado com uma simulação sem-querer, e reportou 2200 ICBMs soviéticos lançados em direção aos EUA. O Presidente tinha 7 minutos para comandar um contra-ataque. Em cima da hora satélites repetidamente não detectaram os lançamentos, confirmando o alarme falso.

Lawrence Lasker, um dos roteiristas pesquisou também a cena hacker, que na época estava explodindo, e o resultado é o filme hacker mais realista até hoje, nem Mr Robot chega perto.

David, o Hacker

Lightman não é o clássico hacker estereotipado. Ele é um adolescente absolutamente normal vivendo em uma família bem ajustada. É meio rebelde no colégio, mas nada fora do normal. Ele tem um computador velho, um IMSAI 8080 de 1975, um clone do Altair 8800 que foi o início da Microsoft. Ele usa seu computador para entrar no sistema da escola e mudar suas notas e de sua paquera, Jennifer Mack.

Ele não precisa criar uma GUI em Visual Basic para rastrear o IP da escola, eles mudam as senhas regularmente, mas anotam em um papel na mesa da secretária.

Aquele cara está jogando Galaga! (Crédito: United Artists)

David descobre o telefone do NORAD usando o bom e velho (hoje) método de wardialing. Ele usa um programa para discar todos os números telefônicos de uma área, identificando quando há uma resposta digital do outro lado, e anotando o número em uma lista. É um método totalmente legítimo e realista para achar linhas conectadas a modems. E o filme ainda explica que o WOPR estava conectado a uma linha externa por erro de um técnico da telefônica.

Wardialing, como nos velhos tempos. (Crédito: United Artists)

Jennifer Mack, a amiga

Nada contra Porky's, Fast Times at Ridgemons High e basicamente todos os filmes da Sessão da Tarde, caráteres foram formados com a Phoebe Cates saindo da piscina, mas os filmes criam uma impressão de que todo adolescente nos Anos 80 era obcecado por sexo e homens e mulheres eram incapazes de interagir de outra forma.

Ai ai... (Crédito: United Artists)

Jennifer (Ally Sheedy) é uma colega de classe de David, eles desenvolvem uma amizade real, e ela frequenta o quarto dele sem isso soar estranho ou inapropriado. É uma rara e madura relação, mesmo nos dias de hoje rara na TV e no cinema.

Claro, no final rola um clima e eles trocam umas bitocas, mas com o fim do mundo iminente, não dá pra culpar as crianças.

WOPR – A Inteligência Artificial

No filme WOPR fala, graças a um sintetizador de voz. Tecnologia que já existia na época, mas era bem ruim, então preferiram usar a voz de John Wood, que faz o Professor Falken, criador do WOPR. Wood leu suas falas de trás pra frente, palavra a palavra. Depois um engenheiro de som teve o trabalho de corno de cortar palavra por palavra e montar as falas na ordem correta, gerando o efeito pausado da voz do computador.

WOPR, ou Joshua (o software é batizado em homenagem ao filho pequeno falecido de Falken) interage com os personagens, mas não é nenhum HAL 9000, em momento algum ele é tratado como uma Inteligência Artificial “real”.  É uma série de programas que simula conversas simples e segue algumas diretivas, como tentar vencer as simulações, e interagir com Falken. Joshua é tão “burro” que quando David entra com a senha de Falken, o software acha que está falando com seu criador.

Os Hackers

Em busca da senha para tentar acessar  WOPR, David vai até uma universidade encontrar amigos hackers, esses sim ofensivos estereótipos de nerds de computadores e 100% realistas. Na conversa entre eles temos a primeira menção a um Firewall em um filme, e a explicação de uma “porta do cavalo”, uma senha ou interface de acesso que um programador esconde em um sistema, caso tenha seu acesso principal negado.

Qualquer departamento de TI EVAR! (Crédito: United Artists)

David faz todo um trabalho de engenharia social, pesquisando a vida de Stephen Falken, e depois de muito trabalho tenta “Joshua” como senha. Funciona. E se você acha um absurdo um sistema desses ter uma senha assim, eu gostaria de lembrar que durante 15 anos na Guerra Fria o código de lançamento dos mísseis nucleares americanos foi “00000000.”

Em nenhum momento ele é o Neo, David não é o Escolhido, em Wargames. Ele é inteligente e descobre a solução final (não aquela) mas é uma dedução perfeitamente razoável, dentro das capacidades do personagem.

Os Cientistas

Stephen Falken não soa parecido com Stephen Hawking por acaso. O personagem inicialmente era baseado no cientista inglês, que foi convidado, mas preferiu não fazer uma aparição no filme. Hawking só virou arroz de festa em Hollywood bem mais tarde.

John Wood nem foi a primeira opção, o personagem teria a personalidade de Stephen Hawking mas seria interpretado por John Lennon, que demonstrou interesse no papel mas um talk de Mark Chapman tinha outros planos.

Falken acha que a Humanidade teve sua chance, e não quer impedir uma guerra nuclear. (Crédito: United Artists)

O personagem de John wood é um especialista em inteligência artificial que abandona o emprego no Departamento de Defesa depois que o filho e a esposa morrem em um acidente de carro. O Governo cria uma identidade nova e “mata” Falken, por ele ser importante demais e possível alvo de seqüestro por governos inimigos.

O trabalho no WOPR é continuado por John McKittrick (Dabney Coleman), ex-assistente de Falken e vilão do filme, mas não incompetente. Ele apenas não consegue aceitar que um adolescente sozinho conseguiu acessar seu supercomputador de estimação. Falken por sua vez, em extrema depressão acha que a Humanidade deve seguir o caminho dos dinossauros, então se vamos nos matar numa guerra nuclear, que seja.

O NORAD

Essa é a parte mais divertida. Os produtores tiveram apoio da Força Aérea dos EUA, no nível de sair pra beber com o General James V. Hartinger, comandante do NORAD, uma figuraça que se tornou a forma para o General Jack Beringer, no filme. A ponto dos roteiristas apenas imaginarem o que Hartinger falaria e como agiria, e colocarem no papel.

Mesmo assim eles obviamente não tiveram acesso à Sala de Controle do NORAD, que ao contrário do filme não era alvo de visitas guiadas para civis, então o jeito foi deixar o departamento de arte se soltar.

O resultado foi uma mistura de NASA com Armagedom, Wargames imaginou um NORAD com gigantescas molas na superestrutura, preparado para resistir a um ataque nuclear direto (nessa parte acertaram) e um imenso salão com imensas telas monitorando o mundo. Nessa parte erraram.

Os militares quando viram o filme quase choraram. A verdadeira sala de controle é minúscula, na época eles usavam tecnologia dos Anos 50/60, eles nem sonhavam em ter acesso aos computadores que os produtores de Wargames usaram para criar os efeitos.

Sala de Comando do NORAD na Montanha Cheyenne. Essa é a versão MODERDIZADA depois da reforma em 2004. Imagine a pedreira que era em 1983. (Crédito: USAF / Domínio Público)

Na época nenhum computador tinha capacidade de gerar os gráficos dos mapas e trajetórias de mísseis em tempo real, então o estúdio responsável pelos efeitos visuais comprou um HP 9845C, um monstro que na época custou US$39,500, equivalentes a US$106 mil em 2021.

Programado em BASIC, o 9485C vinha com duas CPUs de 16 bits, 128KB de ROM e impressionantes 1,6MB de RAM. Ele era capaz de gerar imagens com 4096 cores e altíssima resolução (para a época): 560 x 455. Cada frame das animações levava cinco minutos para ser desenhado. Eles eram então fotografados e os filmes gerados projetados nos telões da sala de controle, uma solução bem semelhante à usada pela NASA na sala de controle das missões Apollo.

HP 9845C. Não, não rodava Crysis. (Crédito: Lommes / Wikimedia Commons)

A Mensagem

Um dos motivos do General Hartinger ter gostado do roteiro e por isso apoiado o filme é a mensagem de que automação demais pode ser perigosa, e quando estamos lidando com a possibilidade de exterminar centenas de milhões de pessoas, é imperativo que tenhamos homens tomando a decisão final. Ou mulheres, como em Março de 2019, quando todos os silos de mísseis nucleares nos EUA foram comandados por oficiais femininas. E o mundo não acabou por causa disso.

Joshua Aprende

Em Wargames Joshua é o que chamamos hoje de IA usando Machine Learning. Quanto mais cenários Joshua simula, mais ele aprende, e a grande sacada do filme é quando o WOPR está tentando decifrar o código de lançamento dos mísseis (ele não tentou “00000000”) e David Lightman dá a idéia de colocar Joshua para jogar contra si mesmo.

Eles conseguem acesso a um software de jogo da velha, Joshua é instruído a jogar continuamente, e como o mais básico algoritmo de jogo da velha sempre termina empatado a não ser que um dos jogadores cometa um erro estúpido, Joshua consome mais e mais recursos tentando vencer, sem sucesso. Ao mesmo tempo ele consegue o último dígito do código de lançamento.

No cinema a gente vibrava quando os mísseis vinham pro Brasil (Crédito: United Artists)

Dessa vez ao invés de lançar os mísseis, Joshua inicia uma série de simulações, com objetivo de ganhar o “jogo”, mas da mesma forma que com o jogo da velha, nenhuma das simulações termina com um vencedor. Joshua descobriu o conceito de MAD – Destruição Mútua Assegurada, que foi a base da Guerra Fria.

Ao final, depois de milhares de cenários Joshua interrompe as simulações e diz a clássica fala:

“Um jogo estranho. A única forma de vencer é não jogando.”

Wargames – O Legado

Ronald Reagan (sim, o ator!) era Presidente dos EUA e amigo de Lawrence Lasker, ele assistiu ao filme em Camp David, a residência de fim de semana do POTUS, e adorou, mas ficou preocupado. Ele comentava sobre Wargames com políticos e assessores, e perguntou formalmente se algo assim poderia acontecer.

Uma semana depois a resposta: “Senhor Presidente, o problema é muito maior do que o senhor imagina”. Na época hacking nem era crime previsto em legislação, as políticas de segurança eram nulas ou praticamente inexistentes.

Wargames foi diretamente responsável pela criação da Diretriz Nacional de Segurança 145, promulgada em 1984 e que mudou completamente a forma com que o Governo dos EUA encarava cybersegurança, tanto na esfera militar como na civil.

E a continuação, WarGames: The Dead Code (2008)?

Nesta casa nós não falamos sobre Wargames: The Dead Code.

E a websérie interativa de 2018?

Sai daqui! Xô! ALT+F4!

O Segredo de Wargames

Wargames capturou com perfeição a essência de um movimento geek que estava ainda nascendo. Uma geração inteira de jovens foi exposta a um mundo de computadores, aventuras, tecnologia, e principalmente um mundo acessível, um mundo real.

Para alegria das crianças, os microcomputadores vendidos em 1983 eram bem melhores do que o lixoso IMSAI que David Lightman usava, e as Radio Shacks da vida não conseguiam manter modems em suas prateleiras. A garotada, depois de descobrir que não era fácil invadir o NORAD, começou a se conectar nos BBSs (Bulletin Board System) e interagir com outros nerds, formando a gênese da comunidade online que hoje engloba o planeta inteiro.

Sério, isso era muito divertido, acreditem. (Crédito: Reprodução Internet)

Dois anos depois de Wargames foi lançado um jogo chamado Theatre Europe, era um jogo de guerra, no ZX Spectrum (aqui TK90X) e era excelente, exceto que o jogo tinha uma mensagem pacifista. Caso você quisesse usar armas nucleares, deveria ligar para um número aonde uma mensagem explicaria toda a problemática de um mundo assolado por armas nucleares, e como deveríamos militar pelo banimento desses instrumentos de destruição.

Lembrando de tudo que aprendi em Wargames, pensando em Joshua, MAD e como não havia vencedores em uma guerra global termonuclear, fiz o que deveria ser feito: hackeei o jogo e lancei todos os meus mísseis contra os russos.

Game over, man, game over (Crédito: Reprodução Internet)

O Trailer

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