Ronaldo Gogoni 2 anos e meio atrás
A União Europeia, assim como outros governos mundo afora, sentiu o baque da escassez de semicondutores, intensificada pela pandemia da COVID-19. Assim como os Estados Unidos, o bloco econômico percebeu tarde demais que depender exclusivamente da China não é uma política muito inteligente, quando esta se mostrou incapaz de suprir as demandas de seus clientes.
Durante o discurso anual do Estado da União, realizado nesta terça-feira (15) em Estrasburgo, França, a presidente Ursula von der Leyen anunciou a implementação de uma nova lei para a UE, chamada "European Chips Act" (Lei Europeia de Chips em inglês), a fim de garantir a soberania digital e tecnológica do bloco, fomentando o desenvolvimento, impressão e comercialização de semicondutores, sem depender de mercados externos.
As restrições impostas pelos órgãos de saúde, como forma de conter o avanço da COVID-19 em todo o mundo, afetaram duramente a cadeia de suprimentos de semicondutores. A China, que já enfrentava limitações devido às sanções econômicas da administração de Donald Trump, sob suspeita de espionagem industrial e roubo de tecnologias, foi o primeiro país a investir pesado em desenvolvimento local.
Contudo, o País do Meio e Taiwan são os principais fornecedores de componentes para inúmeras empresas do ocidente, com o último contando com a TSMC, hoje a maior manufatura de processadores ARM, e que também imprime chips x86-64 para inúmeros clientes, como a AMD. Quando a COVID-19 começou a se alastrar pelo leste asiático, toda a cadeia ruiu como um castelo de cartas, causando desabastecimento em cadeia.
Diversas companhias correram para fortalecer seus estoques antes que a corda apertasse, mas o fato é que em pouco tempo, a oferta de semicondutores minguou para todo mundo, de carros a transporte público, segurança e itens de consumo, como smartphones, computadores e consoles de videogame. Como resultado, além da China, os EUA e a Coreia do Sul correram para fortalecer a produção local, a fim de não ficar na mão das empresas asiáticas.
Nos EUA, o presidente Joe Biden anunciou um investimento de US$ 52 bilhões, visando tanto que empresas locais comecem a imprimir seus chips (a Qualcomm é uma companhia fabless), quanto atrair parceiras externas. Sobre este último, a TSMC está em vias de implementar uma linha de montagem no país e entregar os primeiros chips de 5 nm, provavelmente os Apple A15 Bionic para a linha iPhone 13 e o iPad mini 6, ainda neste ano. Já a Coreia do Sul vai injetar US$ 451 bilhões no mercado local de semicondutores pelos próximos 10 anos.
A União Europeia vai pelo mesmo caminho: em dezembro de 2020, o bloco anunciou um grande aporte dos governos locais no desenvolvimento de tecnologia, a fim de fortalecer o setor e diminuir a dependência externa. No entanto, durante o discurso do Estado da União, Von der Leyer revelou uma medida mais drástica, na forma de uma nova lei.
From smartphones to trains or entire smart factories, semi-conductors make everything work.
But we depend on state-of-the-art chips manufactured in Asia.
We will present a new European Chips Act.
This is a matter of tech sovereignty. #SOTEU pic.twitter.com/76abBuLCyw
— Ursula von der Leyen (@vonderleyen) September 15, 2021
A presidente da UE diz que investir pesado no desenvolvimento local de semicondutores "não é apenas uma questão de competitividade", citando a óbvia perda de espaço no mercado para China e Taiwan, e a compra da ARM pela Nvidia, que está sendo questionada por China, Reino Unido e Comissão Europeia e pode ou não ser barrada, mas também uma questão de "soberania tecnológica" e digital.
Von der Leyen diz que enquanto a demanda global por chips explodiu nos últimos anos, a capacidade de oferta das empresas europeias encolheu, por perda de incentivos e capital, e no que tange a ARM, a perda de controle de uma empresa que até o Brexit, era uma das joias do continente. Há de convir que o Grupo SoftBank, a última controladora da companhia, nunca a removeu do Reino Unido, e embora a Nvidia afirme que fará o mesmo, muitos não acreditam nisso.
A dependência de componentes estado-da-arte para diversos fins, providos principalmente pela cadeia de suprimentos asiática, e em menor grau por tecnologias e patentes americanas, é um cenário que a União Europeia não mais está interessada em sustentar. A "European Chips Act" visa combater essa deficiência, estabelecendo por força da Lei uma junção entre todo o esforço de desenvolvimento e produção de componentes.
A ideia é ligar entre si todas as companhias europeias do setor, de modo que estas, os governos dos países-membros e o parlamento europeu ajam como um organismo sincronizado, em todas as frentes (pesquisa, design, testes, impressão e comercialização), atendendo assim a totalidade (ou pelo menos a maior parte) da demanda dos consumidores finais, comerciais e estatais do bloco, e posteriormente, estabelecer a região como um competidor global em igual capacidade aos EUA, China e Taiwan.
A presidente da UE cita que o plano envolvendo a European Chips Act terá uma aproximação similar ao sistema GALILEO, proposto originalmente em uma época em que muitos consideravam o norte-americano GPS como mais do que suficiente. Hoje, a plataforma de geolocalização europeia possui cobertura global, atende mais de 2 bilhões de celulares em todo o mundo, e diferente de todas as demais, é de uso livre e exclusivamente cívico-comercial, não podendo ser empregada em aplicações militares.
Para Von der Leyen, a lei permitirá que a UE "seja ousada mais uma vez", visando a liderança global em semicondutores, sendo livre para fornecer seus designs para qualquer nação interessada em seguir suas determinações. Por fim, o projeto é voltado a "criar condições para proteger os interesses da Europa" e "posicionar firmemente o bloco no cenário geopolítico", sendo capaz de bater de frente com as gigantes de componentes.
O plano de crescimento possui três etapas:
O plano realisticamente não buscará produzir 100% localmente, conforme afirma Thierry Breton, comissário para o mercado interno da UE. Segundo sua visão, a lei permitirá criar um meio para que o continente seja capaz de se estabelecer como um competidor, mesmo que terceirize parte do trabalho para companhias externas. A principal meta é tornar o bloco capaz de andar por si só, ao invés de depender exclusivamente do que acontece na China ou com a ARM.
Com a maioria dos países buscando se tornar mais independentes da cadeia de suprimentos chinesa, faz sentido a União Europeia também se mexer para não ficar atrás de todo mundo, passando a ser fornecedora e deixando de ser uma mera cliente. Se isso vai dar certo, só o tempo dirá.
Fonte: European Commission, TechCrunch