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Na Rússia, publicar notícias sobre o espaço agora é ilegal

Nova lei classifica indivíduos e agências independentes que cubram notícias sobre o programa espacial da Rússia como "agentes estrangeiros"

2 anos e meio atrás

Que o governo da Rússia não é fã da liberdade de expressão, isso não é novidade alguma. Em 2014, uma lei obrigou todos que usam a internet para divulgar notícias, incluindo blogueiros e usuários de redes sociais, a se registrarem como veículos de mídia. Recentemente, o cerco em torno da internet vem sendo fechado, para cercear vozes opositoras. Até memes com figuras públicas (leia-se o czar presidente Vladimir Putin) são ilegais.

Entre as mais recentes e controversas medidas tomadas por Moscou nos últimos tempos, Putin determinou que quase todos os veículos de imprensa locais independentes, sejam agências ou indivíduos, fossem classificados como "agentes estrangeiros", supostamente financiados por grupos externos para desestabilizar o país. Agora, a classificação foi estendida para todos que publicam notícias acerca do programa espacial russo.

Camarada Putin assumiu o controle das notícias referentes ao programa espacial russo (Crédito: stux/Pixabay) / Rússia

Camarada Putin assumiu o controle das notícias referentes ao programa espacial russo (Crédito: stux/Pixabay)

A classificação "agente estrangeiro" é um eufemismo vindo direto da antiga União Soviética, sendo o equivalente a "inimigo do povo". Basicamente, a lei foi criada para restringir a publicação de notícias que não viessem diretamente dos canais financiados e controlados pelo Kremlin, como a rede de mídia RT, além de notificações oficiais do departamento de imprensa do governo.

A medida foi uma forma deliberada de tocar o terror em todo mundo que publique notícias na Rússia, sejam eles grandes jornais independentes ou tuiteiros/blogueiros, e pouco importa o teor das manchetes. Mesmo que elas se apresentem benéficas e favoráveis à Rússia, continuam sendo publicações não-oficiais, e devem ser combatidas.

A lei foi aprovada às vésperas das eleições parlamentares, e foi um movimento óbvio de contenção aos grupos de oposição, em especial os partidários do desafeto Alexei Navalny, preso desde janeiro de 2021. Veículos são obrigados a publicarem um "disclaimer", alertando que sua produção "foi criada ou distribuída por 'canais de mídia estrangeiros' executando as funções de agente estrangeiro, ou por uma entidade legal russa executando as mesmas funções".

Detalhe, mesmo que os veículos não tenham um dedo sequer de agências e/ou veículos externos, ainda serão classificados como "laranjas" destes e ferramentas de contrainformação que atuam contra a Mãe Rússia, numa clara medida de virar a opinião pública contra eles. Assim, apenas notícias sancionadas e devidamente sanitizadas, vindo dos órgãos oficiais, serão as únicas consideradas legítimas e verdadeiras por Moscou, e por extensão, pelo povo.

Até então, a medida mirava principalmente em sites, jornais, blogs e usuários de redes sociais focados em notícias de cunho político, mas uma nova lei, publicada no dia 30 de setembro de 2021, estende a restrição a qualquer um que veicule informes sobre a agência espacial Roscosmos, ou iniciativas privadas russas referentes ao espaço.

Foguete Soyuz-2 é lançado do Cosmódromo de Vostochny, em Tsiolkovsky (Crédito: Dlvlugação/Roscosmos)

Foguete Soyuz-2 é lançado do Cosmódromo de Vostochny, em Tsiolkovsky (Crédito: Dlvlugação/Roscosmos)

A Rússia já proibia notícias espaciais que usassem informações consideradas confidenciais, independente da fonte, mas a lei agora cobre toda e qualquer notícia publicada por outros que não sejam a Roscosmos, veículos de mídia do governo, ou outros órgãos oficiais. Qualquer nota sobre atividades ligadas aos esforços da exploração espacial russa, sejam elas civis ou militares, renderá ao veículo em questão a classificação como "agente estrangeiro".

A lei, publicada no jornal estatal Rossiyskaya Gazeta, lista 60 tópicos sobre o que será considerado como "notícia problemática" pelo governo russo, incluindo tópicos como divulgação de novos procedimentos, materiais e tecnologias, notas sobre financiamentos para programas de reestruturação, informes sobre novos acordos entre a Roscosmos, o Ministério de Defesa russo e outras agências, inclusive estrangeiras, e informações gerais sobre as capacidades da agência espacial.

A parte sobre financiamento e a administração geral da Roscosmos é um assunto particularmente sensível: seu diretor Dmitry Rogozin, que é bem próximo de Putin, estaria enriquecendo graças a um gordo salário de aproximadamente US$ 460 mil anuais, enquanto engenheiros da agência recebem muito pouco, por volta de US$ 10 mil/ano.

A título de comparação, o ex-diretor da NASA Jim Brindestine recebia US$ 185 mil/ano (muito provavelmente o atual, Bill Nelson, recebe algo bem próximo disso, se não o mesmo valor), e o salário médio dos engenheiros da agência espacial norte-americana é de US$ 80 mil/ano.

Notas sobre futuros lançamentos de missões espaciais também serão restritas, mas há uma pegadinha. Veículos de mídia são livres para noticiar as que envolvam melhorias socioeconômicas para a Rússia (como novos satélites), ou que sejam voltados à pesquisa científica, sejam 100% nacionais ou parcerias com agências espaciais de outros países, desde que estas sejam civis e não militares.

No entanto, conforme apontado pela blogueira Katya Pavlushchenko no Twitter, a pesquisa espacial na Rússia é praticamente uma coisa só, sendo muito difícil distinguir o que é apenas tocado por civis, e onde os militares entram. Resumindo, um canal poderia publicar uma nota aparente inócua e 100% civil, para lá na frente ser taxado como "agente estrangeiro", devido a uma mínima e muito bem oculta participação da Roscosmos.

A lei já está fazendo estragos: Pavlushchenko, assim como vários outros divulgadores individuais, já declararam que deixarão de cobrir notícias referentes à atividade russa na exploração espacial, com medo de represálias.

Em entrevista, a blogueira apontou para o óbvio de que a lei de restrição à imprensa é genérica de propósito, permitindo que as autoridades classifiquem órgãos de imprensa independentes como uma ferramenta inimiga, por basicamente qualquer coisa. No geral, blogs e divulgadores deverão focar mais na exploração espacial de outros países, como os EUA e a União Europeia, enquanto que a cobertura das atividades russas ficarão a cargo dos canais oficiais do governo.

As medidas entram em vigor na próxima segunda-feira (11), e não afetam agências de notícias internacionais, embora estas passem a contar com bem menos acesso a informações envolvendo a Roscosmos e os trabalhos da Rússia na exploração espacial, sem que elas antes passem pelo sanitizador do Kremlin.

Fonte: Rossiyskaya Gazeta (em russo), Ars Technica

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