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Rússia: jornal sancionado prevê colapso do programa espacial

Jornal sancionado publica crítica à Roscosmos e seu diretor Dmitri Rogozin; programa espacial da Rússia estaria "apodrecendo por dentro"

2 anos atrás

O programa espacial da Rússia pode estar em uma situação pior do que a conhecida pelo grande público. Um longo e ácido artigo publicado pelo jornal MK, um jornal tradicional do país, desceu a lenha na Roscosmos e no seu diretor Dmitry Rogozin, basicamente pedindo a cabeça deste em uma bandeja de prata.

O conteúdo do artigo não é lá muito novo, veículos externos que monitoram o programa russo estão cientes das dificuldades pelas quais a Roscosmos vem passando, no que entram também problemas de gestão. A novidade, que surpreendeu muita gente, é ver um veículo de imprensa devidamente sancionado pelo Kremlin, criticando abertamente a agência espacial russa.

2015: foguete Soyuz e cápsula TMA-16M, a que levou o astronauta Scott Kelly ao espaço, passam por manutenção no Cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão (Crédito: Victor Zelentsov/NASA) / Rússia

2015: foguete Soyuz e cápsula TMA-16M, a que levou o astronauta Scott Kelly ao espaço, passam por manutenção no Cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão (Crédito: Victor Zelentsov/NASA)

O MK, anteriormente conhecido como Moscovsky Komsomolets, é um jornal que remonta à ex-União Soviética, tendo sido o veículo original para divulgação de propaganda da Komsomol, a antiga União Juvenil Comunista. Com a dissolução do órgão em 1991, o MK permaneceu como um dos jornais mais tradicionais da Rússia, sendo um veículo perfeitamente alinhado com as determinações de Moscou.

Dado o pouco apreço do governo de Vladimir Putin por pensamento livre e etc., surpreende ver um jornal sancionado e com permissão oficial para publicar notícias referentes ao espaço, em detrimento de indivíduos e veículos independentes, publicar uma matéria crítica a um órgão estratégico.

Há motivação, entretanto. O artigo foi assinado pelo jornalista Dmitry Popov, que escreve para o MK desde 1992 e é particularmente reconhecido pelo governo, tendo recebido inúmeros prêmios ao longo de sua carreira. Sua intenção seria a de jogar no ventilador a situação da Roscosmos, aos olhos de toda a nação, de modo a forçar a mão de Moscou para resolver o problema urgentemente, antes que o programa espacial russo colapse de vez.

O artigo abre com o título "O Programa Espacial Está Apodrecendo Por Dentro", e já no primeiro parágrafo, aponta problemas como falta de pessoal qualificado, uso de instalações e tecnologias defasadas (basta olhar para as Soyuz, que embora funcionem, são recursos imutáveis há quase 60 anos), e o que chamou de "fraqueza sistêmica na liderança".

Dmitry Rogozin, diretor da Roscosmos (crédito: Reuters)

Dmitry Rogozin, diretor da Roscosmos (crédito: Reuters)

Boa parte das críticas miram no diretor da Roscosmos Dmitry Rogozin, que é "muito próximo" de Putin. Em março de 2020, ele assumiu contratos do Ministério da Defesa por corporações estatais, de modo a direcionar os trabalhos para as empresas filiais da agência espacial russa. Porém, uma auditoria mostrou que não apenas essas companhias não estariam cumprindo os prazos, como desde 2019 mais de 60 processos criminais foram movidos contra estas, por acusações de fraude e abusos gerais.

Segundo Popov, somente no período as filiais da Roscosmos teriam causado um prejuízo de US$ 67,7 milhões aos cofres públicos, e não para por aí. Em outro exemplo dado no artigo, o Centro Khrunichev de Pesquisa Estatal e Produção Espacial, um laboratório de Moscou dedicado à propulsão de foguetes, outra filial da Roscosmos, assumiu o compromisso de entregar 10 boosters do Angara A5 até 2016; os cinco primeiros só ficaram prontos em março de 2021, e não há previsão de quando os restantes serão finalizados.

O artigo informa que a Roscosmos está tendo problemas para construir mesmo tecnologias para lá de otimizadas, como as cápsulas Soyuz e Progress, citando os problemas de acoplagem da MS-16 em fevereiro de 2021. Basicamente, os profissionais (ir)responsáveis não verificaram o processo de selagem antes do lançamento, o que impediu a acoplagem automática.

O que a Roscosmos usa como selante? Isto:

Sendo justo, epóxi sempre foi usada na indústria aeroespacial, com reforços como vidro, boro, carbono e Kevlar, mas não dava para perder a piada (Crédito: Divulgação/Henkel)

Sendo justo, epóxi sempre foi usada na indústria aeroespacial, com reforços como vidro, boro, carbono e Kevlar, mas não dava para perder a piada (Crédito: Divulgação/Henkel)

A CHEMEX, empresa contratada para fornecer a resina epóxi a ser usada na MS-16, não teria sido capaz de produzir o seu próprio material, e recorreu a comprá-lo de um terceiro, e embora as especificações tenham sido atendidas, a Roscosmos não teria sido informada sobre a verdadeira origem da resina, até o momento do problema de acoplagem na MS-16 surgir.

Popov também criticou a dependência da Alemanha para a aquisição de produtos químicos usados na produção do peróxido de hidrogênio combustível, que alimenta as cápsulas e foguetes Soyuz, citando sanções a serem aplicadas contra a Rússia pela União Europeia. O jornalista aponta que "o ocidente pode interromper o programa espacial com uma canetada", e que o ideal seria o país voltar a ser autossuficiente.

O Cosmódromo de Vostochny, construído ao leste da Rússia visto pelo presidente Putin como uma prioridade para o programa espacial, também foi alvo de críticas. O artigo aponta que a administração de Rogozin teria entregado apenas 200 estruturas das 1.200 projetadas, 40% delas nem começaram os trabalhos, e por causa disso, o lançamento dos foguetes Angara A5, que deveriam ser feitos em 2021, ficaram para 2023, se tanto.

Sobre o programa lunar, Popov teceu críticas ao projeto de cápsulas Oryol ("Águia" em russo), que deverá substituir as Soyuz. Projetadas em 2009, elas ainda não saíram da fase de projeto e continuam consumindo dinheiro, e as comparou com a Crew Dragon, anteriormente menosprezada por Rogozin, cujos trabalhos começaram no mesmo ano e já estão em pleno uso. Críticas também foram reservadas às promessas de lançamento anuais, que não foram cumpridas em 2019 (44 planejados, 25 conduzidos), 2020 (40 e 17) e 2021 (menos da metade dos 47 prometidos).

Para resolver esse problema, a Roscosmos decidiu que daqui por diante, não mais divulgará o número de lançamentos planejados anualmente.

Cápsula Soyuz-TMA, 4ª geração da espaçonave russa, vista da ISS (Crédito: Thegreenj/Wikimedia Commons) / Rússia

Cápsula Soyuz-TMA, 4ª geração da espaçonave russa, vista da ISS (Crédito: Thegreenj/Wikimedia Commons)

No geral, Popov vê a Roscosmos e suas filiais como um gigantesco sumidouro de dinheiro, seja em projetos atrasados, promessas não cumpridas, fraude e salários superfaturados de seus dirigentes. Rogozin, por exemplo, teria uma vida de luxo mantida por uma renda anual de aproximadamente US$ 460 mil, valores esses não muito diferentes aos pagos por Moscou a demais executivos; já os técnicos da agência teriam salários entre US$ 500 e US$ 1.000, ridiculamente baixos.

O jornalista do MK conclui seu artigo clamando por "vontade política" a ser injetada na administração da Roscosmos, de modo a "impor a ordem" e impedir que "bilhões, ou até mesmo trilhões de rublos" continuem sendo sendo desperdiçados, enquanto o programa espacial russo estaria ruindo a olhos vistos, algo que se não conhecido anteriormente pela mídia global, já era um ponto de desconfiança há algum tempo.

É interessante ver que um veículo sancionado pelo governo russo tenha colocado o dedo na ferida e escancarado os problemas das Roscosmos a toda a população, quase forçando a mão do presidente Putin a agir. A dúvida, no entanto, é sobre quem ele vai descer a foice e o martelo: se em Rogozin, ou em Popov e no MK.

Fonte: MK (em russo), Ars Technica

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