Dori Prata 2 anos atrás
Lançar uma obra de entretenimento na China não é uma tarefa das mais simples. Precisando se submeterem às leis e exigências do governo local, é relativamente comum filmes terem que ser alterados para conseguirem passar pelos impiedosos olhos da censura e no caso de um longa como o Clube da Luta, é claro que ele não seria aceito sem algumas escoriações.
Funcionando como um manifesto político e carregado com uma pesada mensagem anarquista, o filme dirigido por David Fincher e com roteiro de Jim Uhls se tornou um clássico cult por muitos fatores. Entre eles certamente está a crítica que a história fazia à cultura consumista, com o seu final sendo a conclusão do plano elaborado pela mente perturbada do protagonista.
A partir daqui o texto trará spoiler sobre o Clube da Luta, portanto, caso não tenha assistido ao filme ainda, leia por sua própria conta e risco.
No original o desfecho da história se dá quando o narrador descobre a existência de Tyler Durden e sua intenção de destruir o espírito do consumismo. Pois o ápice do Projeto Caos seria implodir diversos prédios e é justamente isso o que acontece no final do filme de 1999.
Após uma inacreditável luta com o seu lado mais sombrio, junto de Marla Singer o narrador assiste à queda de diversos edifícios, mas quando a Tencent Video decidiu adicionar o longa ao seu catálogo online, descobriu que o governo chinês não aceitaria uma mensagem tão subversiva. A saída foi cortar a cena antes de os prédios serem demolidos, mostrando uma tela preta aos espectadores e onde pode ser lida a seguinte mensagem:
“Através das pistas fornecidas pelo Tyler, a polícia rapidamente descobriu todo o plano e prendeu todos os criminosos, impedindo com sucesso que as bombas explodissem. Após o julgamento, Tyler foi mandado para um manicômio, recebendo tratamento psicológico. Ele recebeu alta do hospital em 2012.”
O que ainda não está muito claro (e talvez não fique) é quem cuidou da alteração da cena. Hoje os direitos sobre o filme pertencem à Disney, mas na China a distribuição é feita pela Pacific Audio & Video Co., que por sua vez é uma afiliada da Guangdong TV, que pertence ao estado.
Há quem garanta que a edição foi feita pela própria Disney, para que assim o Clube da Luta pudesse ser aceito pelas autoridades locais, mas como nenhuma das empresas envolvidas se pronunciou sobre o caso, o mistério permanece.
De qualquer forma, bastou uma imagem do corte aparecer nas redes sociais chinesas para que os fãs do filme demonstrassem sua indignação com a censura. Para eles, a ausência daquela cena descaracteriza toda a obra e por mais que eu não goste do desfecho mostrado por Fincher e Uhls, sou obrigado a concordar com a reclamação.
Mesmo correndo um enorme risco de atiçar a ira em muitas pessoas, a verdade é que o final proposto pelo filme nunca me agradou. Começando por o protagonista dar um tiro na boca (mesmo saindo pela bochecha), o que foi suficiente para “exorcizar” o Tyler, mas não para poucos segundos depois ele continuar conversando como se nada tivesse acontecido. Além disso, o impacto dos prédios caindo — ou da ideia de implodir o capitalismo — não foi tão grande em mim quanto em muitas pessoas.
Esse sentimento ganharia força alguns anos depois, quando tive a oportunidade de ler o livro de Chuck Palahniuk. Além de não haver a genial utilização de Where is My Mind?, dos Pixies, as semelhanças vão até justamente o momento em que o narrador tenta se matar. A partir dali, o que lemos são os devaneios de um sujeito que havia escapado da morte, com o narrador pensando ter chegado ao céu. Para mim, aquela é uma bela maneira de mostrar o seu escapismo, uma forma dele nunca aceitar estar internado em um hospital psiquiátrico.
Ao optar por um final mais “palpável”, concordo que o filme pode ter tornado tudo muito mais grandioso, mas isso retirou a principal qualidade presente no livro, que era a sua dubiedade. Particularmente prefiro o estilo mais artístico proposto por Palahniuk e é curioso pensar que o anticlimático fim presente na versão chinesa do filme se aproxima do livro e das revistas em quadrinhos que serviram como continuações para aquela história.
Ainda assim, aquela foi a visão de David Fincher e Jim Uhls para concluir a história do narrador e de Tyler Durden, e acredito que ela sempre deveria ser respeitada. É triste ver que ainda hoje temos governos se metendo na obra de artistas e nem consigo imaginar o quão frustrante deve ser ter que assistir a um filme que não pôde chegar a nós da maneira como foi idealizado, simplesmente porque algum político julgou que deveria intervir.
Fonte: CBR