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Parasite Eve: a explosão mitocondrial da Square

Baseado em livro homônimo e fugindo do lugar-comum, Parasite Eve foi um jogo com uma história madura e que aproximou os RPGs da linguagem cinematográfica

2 anos atrás

Com títulos como Resident Evil e Metal Gear Solid fazendo muito sucesso na época, a segunda metade dos anos 90 foi marcada por uma corrida das desenvolvedoras por jogos com uma abordagem mais cinematográfica. Entre elas estava a Square, uma empresa conhecida pelos seus RPGs de fantasia medieval, mas que enxergava no romance Parasite Eve uma boa oportunidade para romper alguns paradigmas.

Parasite Eve

Crédito: Reprodução/Francisco Sanz/ArtStation

Escrito por Hideaki Sena e publicado em 1995, o livro de ficção científica e terror contava uma história tão fascinante quanto bizarra. Nele, as mitocôndrias esperaram séculos pela oportunidade ideal para liberar todo o seu potencial, evoluindo e sendo transmitida de um ser vivo para o outro através de seus descendentes.

Na biologia, as mitocôndrias são organelas celulares responsáveis pela respiração celular e assim lhes fornecendo energia. Segundo a teoria endossimbiótica de Lynn Margulis, inicialmente essa “casa de força” vivia de maneira independente, mas em algum momento da linha evolutiva ela foi absorvida por uma célula hospedeira, passando a servir como fonte de energia enquanto era protegida e recebia nutrientes.

Farmacologista de formação, Sena imaginou o que aconteceria se as mitocôndrias passassem por uma mutação e conseguissem voltar a viver sem as amarras impostas pelas células. Partindo deste princípio, ele chegou a Eve, uma criatura formada pelas evoluídas mitocôndrias e que encontra em Kiyomi Nagishima o hospedeiro ideal, passando a controlar suas ações e assim a submetendo a um acidente de carro.

A tempestade perfeita acontece após ser decretada a morte cerebral da mulher e como Eve consegue influenciar os pensamentos de qualquer pessoa que se aproxime do ser, ele convence o marido de Kiyomi a doar seu rim. Pois será no corpo de Mariko Anzai (e sem a resistência do sistema imunológico devido ao transplante por que passou) que as mitocôndrias darão início ao seu reinado de terror.

O nascimento do RPG cinematográfico

O save era feito ao usarmos um telefone (Crédito: Reprodução/MAT/Moby Games)

Servindo como uma continuação para o livro de Hideaki Sena, o projeto da Square contaria a história de Aya Brea, uma novata policial habitante da cidade de Nova York. Filha de Mariko, 20 anos antes a jovem perdeu a mãe e a irmã gêmea, Maya, em um acidente de carro. Porém, a vida ainda lhe reservaria outra surpresa, que se revelaria na véspera do Natal de 1997, quando a moça vai ao Carnegie Hall assistir uma ópera.

Seria lá que ela se depararia com Melissa Pearce, atriz que havia recebido um rim de Maya. Aya por sua vez foi transplantada com uma córnea da irmã e ao cruzar olhares com a estrela do espetáculo, esta percebe a presença de Eve no corpo da policial e aproveita a situação para se agir. A mulher então faz com que, exceto por ela, a nossa personagem e o seu acompanhante, todos os presentes entrem em combustão espontânea.

A grotesca cena servia para deixar claro o tom do Parasite Eve, primeiro título da Square a ser classificado nos Estados Unidos como Mature. Aquilo significava que o jogo não era recomendado para menores de 17 anos, indicando que a história seria muito diferente de tudo o que a empresa havia criado até então.

Também se destacava a aventura se passar numa metrópole do mundo real e a cidade de Nova York foi escolhida após a equipe responsável pelo Final Fantasy VII ter desistido de usá-la como ambientação. Um dos motivos para situar a história por lá também se deve ao fato de boa parte do desenvolvimento ter acontecido nos Estados Unidos, algo que não havia acontecido nos projetos anteriores da empresa.

E para garantir que o desenvolvimento tivesse a maior qualidade possível, a Square deu a produção a ninguém menos do que o pai do Final Fantasy, Hironobu Sakaguchi. Mesmo com um dos criadores do Chrono Trigger, Takashi Tokita, assumindo a direção, coube a Sakaguchi algumas decisões importantes, como, por exemplo, a criação de Aya Brea. Já o design da personagem seria feito por Tetsuya Nomura, que anos depois ficaria conhecido por liderar a criação da série Kingdom Hearts.

Curiosamente, Hideaki Sena só foi tomar conhecimento do enredo do jogo quando este fora concluído, já que o projeto estava sendo tocado pela Square e a editora do autor.

New York, New York

Parasite Eve

Manhattan já viveu dias melhores (Crédito: Reprodução/Blood/Moby Games)

Mas de todas as qualidades presentes em Parasite Eve, umas das minhas favoritas é como o jogo nos leva para um mundo mais realista. Ao fugir do manjado estilo medieval, onde o protagonista muitas vezes vem de uma linhagem nobre ou consegue disparar as mais variadas magias, esse pé na realidade facilita o processo de imersão.

Hoje, com a tecnologia nos permitindo visitar recriações quase perfeitas de Nova York em muitos jogos, pode parecer estranho explorar as fases daquele RPG da Square, mas quando ele chegou ao primeiro PlayStation, era incrível poder visitar alguns lugares famosos da cidade. Do Museu de História Natural até o Central Park, passando pelo SoHo e por uma destruída Estátua da Liberdade, a aposta da equipe envolvida na criação do jogo acertou precisamente ao apostar em uma ambientação tão diferente do que estávamos acostumados a ver nos games.

Também merece destaque a construção da protagonista. Embora desde o início Sakaguchi tenha imaginado uma Aya Brea forte, sexy e fascinante, ela não é a típica heroína dos games. Com seu estilo (tanto comportamental quanto de vestimentas) mais sóbrio e permanecendo calada durante boa parte do tempo, é fácil no colocarmos em seu lugar e imaginar como seria passar por uma situação tão traumática.

Algo que ajuda a tornar a personagem tão forte é ela estar sempre sozinha, com o seu parceiro na polícia ou um cientista que encontrarmos pelo caminho nunca nos ajudando durante os combates. Pela sua “condição mitocondrial” fazer com que ela seja a única que pode enfrentar Eve, isso faz com que Aya precise contar apenas consigo mesma, fazendo dela uma protagonista com uma resiliência digna de uma Ellen Ripley.

Contudo, o roteiro do Parasite Eve funciona tão bem, que em momento algum ele recorre à tentação de mostrar a protagonista como a típica policial durona. Sofrendo com a perda de sua irmã, Aya vez ou outra se pega pensando em Maya ou no motivo para ter os poderes que tem, mas sem nunca perder a calma. Esse é o tipo de profundidade emocional que não costumava ser abordado nos jogos da época, mostrando o quão a frente do seu tempo aquele título se encontrava.

Some a tudo isso as impressionantes cenas não interativas feitas em computação gráfica pelos artistas da Square e o resultado é um RPG incrível. Graças a sua história mais adulta e a intenção de Eve de despertar o “Ser Supremo”, ele mostrava como os jogos poderiam tratar de temas que iam além de castelos, princesas indefesas ou vilões que simplesmente querem acabar com o mundo. Lembre-se, o objetivo de Eve é recriar as espécies, usando a evolução para alcançar isso.

Um pouco de sobrevivência, uma pitada de ação e muito RPG

Apesar de o enredo ser um dos pontos principais de qualquer bom RPG, fazer com que um jogo do gênero se aproximasse da linguagem cinematográfica não era uma tarefa simples. Pensando nisso, a Square tratou de implementar algumas mudanças no Parasite Eve, a começar pela transição entre exploração e batalhas.

Com os encontros ainda podendo acontecer de forma aleatória, as lutas aconteciam no mesmo ambiente em que estávamos antes delas começarem, nos dando a sensação de uma aventura muito mais dinâmica.

Porém, nele ainda tínhamos a adoção de um sistema batizado pela Square como Active Time Bar (ATB), o que nos obrigava a esperar um determinado tempo até podermos realizar ações. A diferença em relação a outros títulos da empresa é que Aya podia se movimentar livremente e assim evitar os ataques dos inimigos. Já quando partia para a ofensiva era possível ver um domo ao redor da personagem, que representava a área que suas armas poderiam alcançar.

Além disso, o jogo não renunciou a uma das principais características dos RPGs, que é a possibilidade de subirmos de nível conforme a experiência adquirida nos combates. Essa evolução também nos garantia pontos que poderiam ser usados para melhorarmos a ATB ou as armas, assim como aumentarmos a capacidade de itens carregados.

Um futuro ainda incerto

Aya e seu parceiro, Daniel (Crédito: Reprodução/MAT/Moby Games)

Mas apesar da ótima recepção por parte do público e da crítica, que adoraram desde o roteiro até a jogabilidade, passando ainda pela magnífica trilha sonora composta por Yoko Shimomura, o sucesso da série não durou muito.

Em 1999 foi a vez do PlayStation receber o igualmente excelente Parasite Eve II e uma nova aventura estrelada por Aya Brea só apareceria em 2010, quando o The 3rd Birthday foi lançado para PSP. Sem que o segundo jogo deixasse muito espaço para uma continuação, a Square decidiu fazer da continuação uma espécie de spin-off, com a protagonista sofrendo de amnésia e lembrando apenas parte do seu passado.

Para a infelicidade dos fãs, este capítulo deixava de lado muitos dos elementos que tornaram seus antecessores tão bem-sucedidos, com o The 3rd Birthday funcionando muito mais como um jogo de tiro em terceira pessoa. Com tantas mudanças, o título que deveria servir como uma maneira da empresa reacender o interesse do público pela personagem acabou tendo um efeito negativo.

Desde então, o que as pessoas que se apaixonaram pelos dois Parasite Eve mais gostariam é de ver um retorno triunfante. Isso poderia acontecer através de uma verdadeira continuação, mas muitos já se dariam por satisfeitos se os detentores dos direitos chegassem a um acordo para a produção de um remake. Algo nos moldes do que foi feito com o Final Fantasy VII seria o ideal, mas por enquanto tudo não passa de um mero sonho.

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