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Shenmue: a influente obra-prima de Yu Suzuki

Fundando as bases para os títulos de mundo aberto lançados depois, saiba como foi criado um dos jogos mais importantes de todos os tempos, o Shenmue

2 anos atrás

Em 29 de dezembro de 1999 os apaixonados por videogames viram o lançamento de um jogo extremamente ambicioso e que mudaria a indústria para sempre. Idealizado pela mente brilhante de Yu Suzuki, Shenmue serviria como referência para muitos jogos de mundo aberto que seriam produzidos depois, mas também mostrava como a rotineira vida de um jovem em busca de vingança podia ser extremamente imersiva — e bastante divertida.

Shenmue

Crédito: Divulgação/Sega

Suzuki iniciou sua carreira na Sega em 1983, quando programou o Champion Boxing, jogo para o primeiro console da empresa, o SG-1000. Com o título apresentando um desempenho incrível, seus chefes decidiram levá-lo para os fliperamas, colocando uma unidade do videogame dentro de cada gabinete.

Mesmo ainda estando no seu primeiro ano de trabalho, o talento de Yu Suzuki fez com que ele fosse promovido a chefe de desenvolvimento e o que ele produziria a seguir seria um divisor de águas em sua vida. Hang-On era um jogo de moto em que não usávamos controles tradicionais, mas sim precisávamos nos sentar numa réplica de uma motocicleta e conforme a movêssemos de um lado para o outro, o veículo repetiria a ação na tela.

Com sua equipe o game designer havia criado os Taikans (sensação corporal, em tradução livre), que seria um estilo de fliperama que buscava a simulação ao utilizar gabinetes movidos por um sistema hidráulico.

Porém, ao mesmo tempo em que gravava seu nome como um dos maiores gênios dos arcades, Yu Suzuki queria se desprender das amarras impostas pela plataforma. Entre elas estava um design voltado para partidas curtas, afinal, quanto mais tempo o jogador passasse numa máquina, menos fichas estavam sendo gastas nela.

A região portuária de Shenmue pela visão de um fã (Crédito: Reprodução/Tyler edlin/Artstation)

Após vasculhar os RPGs japoneses lançados no final dos anos 80, Suzuki reuniu a equipe da Sega AM2 e para realizar testes de câmera, dos sistemas de diálogos e de combates, eles deram início ao desenvolvimento de um protótipo para o Saturn.

“O desafio mais difícil foi tentar entender o que Suzuki queria criar,” afirmou Keiji Okayasu, que codirigiu o jogo ao lado de Yu e Toshihiro Nagoshi. “Todos os membros da equipe automaticamente usaram o Dragon Quest e o Final Fantasy como pontos de referência, porque esses eram os RPGs com os quais a maioria estava mais familiarizada. Mas Suzuki não aprovou.”

Entre os exemplos citados por Yu Suzuki para recusar tais clássicos  estava a maneira como os diálogos funcionavam neles, com os NPCs sempre repetindo suas falas. Para ele, seria possível fazer com que os personagens falassem coisas diferentes e para que o jogador não perdesse alguma dica importante dada por outras pessoas, Okayasu sugeriu a criação de um bloco de notas, que seria preenchido com dicas recebidas nessas conversas.

Intitulado The Old Man and the Peach Tree, o jogo se passaria na década de 50, na cidade de Luoyang, China e nos colocaria na pele de Taro. A procura de um mestre de Kung Fu chamado Ryu, o protagonista acabaria encontrando um velho homem que lhe diz que só contará onde está o mestre caso o jovem lhe traga um pêssego. Após encontrar a fruta, o protótipo terminava com Taro vendo o ancião atirando pedras na água, atitude que acabava matando um peixe sempre que elas tocavam a superfície, levando o rapaz a acreditar que ele estava diante do mestre.

Com aquele protótipo tendo agradado à diretoria da Sega, a empresa deu o sinal verde para que ele evoluísse para um jogo completo e em 1996 a AM2 deu início ao projeto Gruppy, que depois ficaria conhecido como Virtua Fighter RPG: Akira's Story. O estúdio visava entregar uma abordagem cinematográfica, dublagem para os personagens e uma história que durasse cerca de 45 horas.

Suzuki então dividiu a aventura em quatro atos: “tristeza”, “luta”, “partida” e “começando de novo”, o que levaria o personagem Akira a superar o luto pela morte do seu pai e sair em busca de vingança.

Valendo-se da engine da série Virtua Fighter e contando com o apoio de roteiristas, dramaturgos e diretores de cinema, o game designer queria entregar uma experiência que não se limitasse a uma boa jogabilidade. Esses profissionais então chegaram a 11 capítulos para a história, com o projeto alcançando um tamanho muito maior do que aquilo que era produzido na época.

Shenmue

Apenas um dia normal na vida de Ryo Hazuki (Crédito: Divulgação/Sega)

Porém, quando 1997 chegou, o diretor decidiu que o melhor seria transferir o desenvolvimento para o novo videogame que a Sega estava criando. Dada a grandiosidade do que eles estavam criando, o Saturn limitaria muito o que poderia ser entregue e a preocupação se justificava. O plano era nos colocar para encarar oito horas de exploração e diálogos; cinco horas de cenas não-interativas; quatro horas em batalhas com múltiplos inimigos; quatro horas de busca por itens; quatro horas treinando artes marciais; quatro horas viajando entre as áreas disponíveis; outras quatro no equivalente às masmorras dos RPGs tradicionais e mais 12 horas em outros tipos de atividades.

Enxergando no projeto uma ótima oportunidade para divulgar o Dreamcast, a diretoria da Sega decidiu que o melhor seria não o vincular à série Virtua Fighter, lançando uma nova propriedade intelectual e após tratar o jogo internamente como Project Berkeley, eles chegaram ao nome Shenmue: Chapter 1: Yokosuka. Porém, a mudança também obrigaria a equipe a abandonar o tema inicial e os personagens que estavam sendo utilizados.

Os atos definidos por Suzuki passariam então por alterações, com eles adotando as palavras “vagarosamente”, “completamente” e “suavemente”. Olhando em retrospecto, tais essas classificações servem para ilustrar perfeitamente o ritmo do jogo e outros aspectos do Shenmue também seriam definidos naquela etapa do desenvolvimento.

Entre eles estava o desejo do game designer em “povoar” aquele mundo que estava criando, oferecendo conteúdo suficiente para que o jogador não ficasse entediado enquanto encarava uma aventura que poderia durar dezenas de horas. Assim eles implementaram o sistema conhecido como Quick Time Events (QTE), incluíram batalhas que poderiam acontecer aleatoriamente e diversos minigames e missões paralelas.

Shenmue ainda contaria com mais de 1200 ambientes internos projetados por arquitetos e um sistema de mudanças climáticas baseado nos registros meteorológicos da cidade de Yokosuka em 1986, ano em que se passa a história. Outro feito impressionante para época foi a inclusão de ciclos de dia e noite, além dele nos colocar diante de mais de 300 personagens, cada um com seus próprios nomes, personalidades, relacionamentos e uma rotina diária — o que incluía ações corriqueiras como acordar, ir para o trabalho, almoçar e voltar para casa.

Yamanose recriada por um fã na Unreal Engine 4 (Crédito: Reprodução/Dmytro Chernykh/ Artstation)

Com tantas novidades, explicar ao mundo como um jogo assim seria não era uma tarefa simples e com o próprio Yu Suzuki se recusando a tratá-lo como um RPG, ele passou a dizer que o Shenmue pertencia a um novo gênero: FREE, de Full Reactive Eyes Entertainment. O curioso é que o termo rapidamente caiu no esquecimento e mesmo com vários títulos bebendo da fonte daquele jogo, nenhum se classificou como um FREE.

Mas a incapacidade de estabelecer o nome de um novo gênero não foi o único problema enfrentado por Suzuki e sua equipe. Com tanto conteúdo a ser entregue, eles estimavam que o jogo precisaria ser dividido entre 50 e 60 CDs, o que obviamente era inviável. A solução foi criar um sistema de compressão que diminuísse consideravelmente o espaço necessário para os dados.

Outro desafio ainda maior pôde ser visto na maneira como os personagens se comportavam naquele mundo aberto. Reza a lenda que certo dia, enquanto testava o que já havia sido criado, a equipe notou que todas as pessoas do distrito onde se encontra o armazém haviam desaparecido. Após uma investigação, eles descobriram que o problema estava numa loja de conveniência, pois quando os NPCs se dirigiram a ela para tomar o café da manhã, houve um enorme “congestionamento”. A solução encontrada por aqueles profissionais foi simplesmente aumentar a porta do estabelecimento.

Os problemas com o sistema de animação dos personagens também eram constantes. De homens caminhando como se fossem mulheres até gatos andando sobre duas patas, os atalhos tomados pelos artistas para acelerar a produção deram origem a situações bizarras, com mais de 300 bugs sendo descobertos a cada dia.

Mesmo com a equipe de controle de qualidade trabalhando sete dias por semana para garantir que o Shenmue fosse o melhor jogo possível, Yu Suzuki garante que essa não foi a pior parte. “O maior desafio que encontramos foi o gerenciamento de projeto,” afirmou o diretor durante uma palestra na Game Developers Conference, em 2014. “No fim, tínhamos 300 pessoas trabalhando e sem experiência num projeto tão grande. Na época não existiam ferramentas de gerenciamento de projetos... então, em vez disso, criamos uma planilha de ordem de serviço que era uma lista de itens no Excel. Como continuávamos testando, os itens não diminuíam. Num certo ponto tínhamos 10 mil deles.”

Shenmue

Born to Be Wild ♫ (Crédito: Divulgação/Sega)

Contudo, toda essa dedicação por parte do pessoal da AM2 e a inovação trazida pelo Shenmue não foram suficientes para agradar o grande público. No total, apenas 1,2 milhão de cópias foram vendidas em todo o mundo e como o título custou US$ 47 milhões para ser produzido, fazendo dele até então o projeto mais caro de todos os tempos, podemos considerá-lo um fracasso comercial.

Mas além do custo absurdamente alto para o seu desenvolvimento, parte deste insucesso pode ser creditado a pequena base instalada do Dreamcast. Com apenas pouco mais de 9 milhões de console tendo sido vendidos, há até quem afirme que o jogo só teria dado lucro se cada dono daquele console tivesse comprado a obra-prima de Yu Suzuki duas vezes.

Já a crítica e boa parte daqueles que tiveram a oportunidade de experimentar o Shenmue na época em que ele foi lançado teceram vários elogios à saga de Ryo Hazuki. Mesmo com reclamações podendo ser feitas a alguns aspectos técnicos, como o excesso de paredes invisíveis, o roteiro ou a dublagem na versão em inglês, a imersão proporcionada pelo jogo era algo impressionante.

Hoje o Shenmue pode parecer um tanto datado, com diversos jogos de mundo aberto tendo o superado em todos os sentidos. Porém, se não fosse pela genialidade de Yu Suzuki e a coragem (até um pouco irresponsável) dos executivos da Sega em apostar no projeto que nasceu como a história de um velho e uma árvore de pêssegos, talvez os vastos mundos virtuais ainda estivessem alguns anos atrasados em termos técnicos e artísticos.

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