De conspirações a checagens falsas, Rússia usa Twitter e Facebook como arma de guerra
Desde a queda do voo MH17, derrubado por separatistas em 2014, Rússia usa redes sociais para plantar dúvidas e acusações contra Ucrânia
Desde a queda do voo MH17, derrubado por separatistas em 2014, Rússia usa redes sociais para plantar dúvidas e acusações contra Ucrânia
No dia 17 de julho de 2014, o voo MH17, da Malaysia Airlines, foi abatido enquanto voava sobre o leste da Ucrânia, próximo à fronteira com a Rússia. A área vivia o confronto entre forças ucranianas e rebeldes separatistas. Enquanto as informações sobre a tragédia eram escassas, a Rússia preparou outro tipo de ataque: inundar as redes sociais com informações falsas sobre o episódio. As consequências duram até hoje — e as táticas, também.
Anos depois, uma investigação feita por autoridades holandesas concluiria que o Boeing 777 — que havia partido com 298 ocupantes de Amsterdã com destino a Kuala Lumpur, na Malásia — havia sido abatido por um míssil Buk disparado de um território controlado por separatistas pró-Rússia.
Nos primeiros dias, porém, era uma grande dúvida de onde havia saído o disparo. Nas redes, uma série de trolls contratados pela Rússia tentou jogar a culpa no país vizinho, mostrando que o uso da tecnologia como arma vai além dos ciberataques tradicionais realizados pelo país.
Dois jornalistas holandeses, Robert van der Noordaa e Coen van de Ven, fizeram uma pesquisa extensa sobre o assunto. As informações foram publicadas em 2019 na revista De Groene Amsterdammer.
Eles analisaram 9 milhões de tweets ligados à Internet Research Agency (IRA), ou “Agência de Pesquisa em Internet”, em tradução livre. Apesar do nome, a empresa tem um objetivo bem específico: ela age em operações de influência para com objetivos pró-Rússia.
Nas primeiras 24 horas após a queda do MH17, a IRA postou no mínimo 65 mil tweets. A maioria das mensagens era em russo e culpava o governo de Kiev pelo desastre. Do dia 17 ao dia 19 de julho de 2014, foram mais de 111 mil publicações.
Os dois jornalistas dizem que este foi o maior número de tweets publicado pelo grupo em um período tão curto de tempo. O IRA também teve influência nas eleições dos EUA em 2016. Para efeito de comparação, nas 10 semanas antes do pleito, foram 175 mil tweets.
Logo na manhã seguinte à queda do MH17, três hashtags nas redes sociais eram direcionadas ao governo de Kiev. As publicações não eram replicadas entre os trolls, mas escritas individualmente. A campanha também envolveu posts no LiveJournal, plataforma bastante usada na Rússia. Os links eram posteriormente compartilhados nas redes sociais.
Um desses posts dizia que um suposto controlador de voo espanhol de nome Carlos trabalhava em Kiev e tinha identificado dois jatos de combate próximos ao MH17. A história era uma fraude, mas chegou a ser citada pelo presidente Vladimir Putin em uma entrevista ao cineasta Oliver Stone.
O governo russo negou envolvimento no desastre desde o início. Moscou acusou a Ucrânia de derrubar o avião usando um caça SU-25. Outra teoria proposta pela Rússia era de que o míssil Buk pertencia a Kiev.
A investigação holandesa derrubou essas hipóteses, mas o estrago já estava feito.
Joost Niemoller, que tem um perfil bastante influente no Twitter holandês, acusou o primeiro-ministro do país de fazer um acordo com Kiev para encobrir a verdade sobre o voo MH17.
Thierry Baudet, líder do partido conservador FvD, questionou a investigação e disse que a Ucrânia era a culpada.
Kees van der Pijl, ex-professor da Universidade de Sussex, afirmou que o país tinha motivos para derrubar o avião: atrair Moscou para uma guerra e contar com uma intervenção da Otan. Ele, inclusive, participou de uma conferência com Viktor Ivanov, aliado de longa data de Vladimir Putin.
As teorias da conspiração foram além da Holanda. Em 2015, Donald Trump, à época candidato à Presidência dos EUA, disse que a Rússia não tinha culpa no episódio, questionando a investigação holandesa.
Como diz o especialista em teorias da conspiração Jelle van Buuren, não importa o quão absurdas sejam, elas sempre reaparecem e é impossível se livrar delas.
O desastre do voo MH17 foi um episódio no contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia. O confronto começou em fevereiro de 2014, logo após uma série de protestos na Ucrânia derrubar o então presidente Viktor Ianukovytch, visto por Moscou como um aliado.
Em Donbas, região no leste do país que inclui Donetsk e Luhansk, separatistas pró-Rússia e forças ucranianas entraram em conflito. Foi neste lugar que o Boeing 777 da Malaysia Airlines caiu.
Outro foco do confronto foi na Crimeia. A península no sul da Ucrânia foi anexada pela Rússia entre fevereiro e março de 2014, em uma operação envolveu movimentos nas redes sociais.
De acordo com uma reportagem de 2017 do jornal norte-americano The Washington Post, nos seis dias que se seguiram à queda de Ianukovytch, espiões ligados à agência de inteligência internacional russa GRU criaram perfis fakes no Facebook e no VKontakte, rede social bastante usada no país.
O objetivo dessas contas era se passar por gente comum da Ucrânia que estava desiludida com os protestos da oposição. Estes perfis deixavam comentários de reprovação aos acontecimentos em páginas de notícias estrangeiras. Eles diziam que as manifestações haviam sido tomadas por nacionalistas e fascistas armados.
A ação não parou por aí. Outros fakes postavam ameaças físicas a aliados do presidente deposto, como forma de simular o radicalismo dos revolucionários — uma acusação feita com frequência pela Rússia.
Além disso, os oficiais da GRU criaram grupos no Facebook e no VKontakte para incentivar a população da Crimeia a apoiar a secessão da Ucrânia. Uma das formas de obter esse apoio era fazer circular a informação de que a península estava sob ameaça de organizações nazistas.
Outra maneira de influenciar a opinião pública era mostrar imagem dos soldados russos que participaram da invasão da Crimeia com crianças, idosos e até animais de estimação.
De 2014 para cá, muita coisa mudou. Uma ferramenta que passou a ser usada contra mentiras, fake news e desinformação foi a verificação de fatos — mas nem ela está imune.
Uma reportagem da agência de jornalismo investigativo ProPublica mostra que, nas últimas semanas, a Rússia vem usando o formato de verificação de fatos para disseminar sua narrativa sobre o conflito na Ucrânia.
A matéria relata que oficiais russos divulgam vídeos para desmentir montagens que supostamente estariam circulando entre ucranianos
Em um desses casos, dois cortes são exibidos na sequência. O primeiro seria atribuído a um ataque russo à cidade de Kharkiv. O segundo corte demonstraria que se trata, no entanto, de uma explosão em um depósito de armas em 2017.
A questão é que estes vídeos supostamente fakes não estão circulando. Ou seja, a própria Rússia vem fabricando vídeos falsos para acusar a Ucrânia de espalhar desinformação.
“É a primeira vez que eu vejo o que poderia ser chamado de uma operação false flag de desinformação”, diz Patrick Warren, professor da Universidade de Clemson. False flag é o nome dado a ações cometidas por um agente e atribuídas falsamente a um inimigo.
Pesquisadores da Universidade de Clemson e da ProPublica identificaram mais de uma dezena de vídeos que dizem desmascarar fake news ucranianas, mas estas fake news aparentemente não existem. Buscas reversas não encontram os vídeos que foram supostamente manipulados — apenas os que tentam desmenti-los.
Até o momento, estas verificações falsas já alcançaram mais de um milhão de visualizações em canais pró-Rússia no Telegram, além de milhares de likes e retweets no Twitter. A TV estatal do país e contas do governo em redes sociais ajudam a promover este conteúdo.
A ProPublica não ignora que existem, sim, vídeos fakes sobre a guerra. Mas as verificações vindas da Rússia quase sempre fazem referências a peças que não circularam nas redes.
Além disso, há evidências de que os vídeos falsos e as verificações estão sendo produzidos usando o mesmo arquivo como base. É o que apontam os metadados analisados pelos pesquisadores de Clemson.
“Os metadados localizados em alguns vídeos mostram claramente que eles foram criados depois de duplicar um único arquivo e editá-lo”, explica Darren Linvill, professor na universidade. “Quem fez isso criou o vídeo fake e o vídeo desmentindo ao mesmo tempo.”
O objetivo, explica Warren, é plantar dúvidas no público russo (e em outros países que falam o idioma) ao ver vídeos da guerra, como destruição causada por mísseis e ataques aéreos.
Mas os efeitos vão além da internet, como explica Joan Donovan, diretora de pesquisa do Shorenstein Center da Universidade de Harvard. As verificações falsas não precisam se espalhar para cumprir seu objetivo — elas podem ser citadas a qualquer momento pela mídia russa como prova de que existe uma campanha de desinformação sendo orquestrada por Kiev.
A guerra também é disputada nas narrativas.