Street Chaves, um clássico do absurdo e do nonsense
"Acredito que a tosquice faz parte do charme."
Tive algumas fases em minha carreira gamer. Entre 2009 e 2011, por exemplo, eu fiquei completamente fissurado por games portáteis (em particular, games das plataformas iOS). Por outro lado, lá pelo finzinho dos anos 1990 eu era gamer de lanhouse: um intrépido desbravador de madrugadas em corujões com os amigos. E no começo dos anos 2000, eu caçava tudo quanto era joguinhos freeware.
Eu tinha uma certa tara por jogos freeware (de preferência com multiplayer online) e, como toda tara, não dá pra explicar. Aliás, agora que paro para pensar, dá sim: estamos falando de uma era pré-banda larga e, embora fosse possível baixar os chamados “jogos completos”, passar a madrugada inteira baixando Tony Hawk Pro Skater 3 fatiado em 50 pedaços de arquivos .RAR com alguma senha obscura era uma mão de obra desmotivadora (pra não dizer eticamente falha).
Os joguinhos freeware resolviam os dois problemas com uma cajadada só: os poucos megabytes típicos de joguinhos grátis eram fáceis de gerenciar mesmo numa conexão discada, e não havia o karma negativo (pra não dizer os possíveis vírus) que acompanhavam as versões crackeadas dos jogos piratas.
Virei o evangelizador de games da turma: em minhas muitas madrugadas vasculhando a internet, eu descobria os novos joguinhos e levava para a turma do bairro e da faculdade. Inevitavelmente, os melhores joguinhos que eu encontrava se tornavam a febre do mês na rua e no laboratório de informática da faculdade.
E numas dessas peregrinações pelos recantos internéticos de joguinhos gratuitos, encontrei Street Chaves.
Caso você seja um pobre coitado que não jogou Street Chaves e não teve este jogo como um estandarte cultural gamer absoluto, permita-me antes de mais nada lamentar pela sua infância ou adolescência perdida. Você ainda pode baixar o jogo hoje e jogar, mas definitivamente não é a mesma coisa.
Para os desavisados que não tinham um bom amigo como eu para trazer-lhes as boas novas gamísticas (como por exemplo este neologismo que acabo de usar), explico: Street Chaves foi um marco gamer nacional. Trata-se de um jogo de luta estrelando ninguém menos que a trupe da vila mexicana mais amada do mundo. Sim, eu arrisco mesmo dizer “do mundo”. Você sequer conhece outra vila mexicana? Locação de novela nem conta, e a escola de Carrossel não era uma vila.
Bem nos moldes de Street Fighter e King of Fighters, o Street Chaves trazia como estágios aqueles cenários que você cansou de ver no SBT: a clássica vila, a sala do professor Girafales, a casa da Dona Florinda que só apareceu em uns três episódios, o restaurante da dondoca burguesa e alguns outros.
A reprodução das fases não é lá o que podemos chamar de “fotorrealista”, mas eu acredito que a tosquice faz parte do charme. Tratando-se de um jogo baseado num seriado que foi pioneiro na arte do chroma key porco, acho que a tosquice gráfica é até apropriada.
O gameplay em si é um assombro. Com 15 personagens (dos mais cativantes, como o titular Chaves, aos mais obscuros, como a tal “Glória”), é um rol farto de lutadores. Os sprites dos personagens seguem a tosquice que é característica a todo o jogo — screenshots dos rostos dos atores acompanhados do equivalente virtual de bonequinhos de papel dos personagens, com membros tenuamente conectados uns aos outros, um fruto da uma necessidade de ilustrar os lutadores executando posições que os personagens nunca fizeram no seriado.
É a escola de animação South Park, mas aqui funciona porque você está maravilhado demais vendo o Seu Madruga finalmente descendo o cacete kármico na Dona Florinda após décadas de abuso físico. Não que eu aprove a violência contra mulheres (e creio que hoje em dia seja melhor frisar isso, pelo sim ou pelo não); leve em consideração a mentalidade infantil com a qual muitos de nós ainda estávamos equipados quando conhecemos este jogo pela primeira vez. Ver o Seu Madruga finalmente mostrando suas lendárias habilidades de boxeador e se defendendo das pancadas da Dona Florinda era quase a realização de um sonho infantil.
E esse era realmente o apelo do jogo: ver os personagens se degladiando (e usando para isso golpes muito parecidos com os do Guile ou da Chun Li), pondo fim à inacabável discussão “mas ó, se o Chaves finalmente se emputecesse com o Quico, aposto que ele arrebentava a cara dele como vivia prometendo!”. E daí que o Quico é filhinho de mamãe e, como tal, provavelmente tinha a renda pra custear a prática de alguma arte marcial…? Chaves é um garoto de rua e, como tal, foi endurecido pelas intempéries da vida urbana desalentada. Com karatê ou sem karatê, o Quico provavelmente apanharia mais que boi fujão.
Esse é realmente o charme de Street Chaves. Não é nem tanto o fator novelty “olha, alguém fez um jogo do Chaves!”. É finalmente ver o Seu Madruga dizendo “Senhor Barriga, eu não apenas não lhe pagarei o aluguel, como também enfiarei alguns hadoukens na sua cara pela encheção de saco constante”.
E pra completar o pacote da experiência, a trilha sonora é composta das músicas clássicas do seriado. Lembra de “Tchuim Tchuim Tchum Claim”? Então. Imagine-se encarnando o Godines e sentando a porrada no Professor Girafales ao som desta canção, bem no meio da sala de aula.
Não há como pôr um preço nisso e, felizmente, os desenvolvedores não tentaram. Street Chaves é inteiramente grátis e pode ser baixado aqui.