Governo do Rio de Janeiro exige dados de internet e telefone mesmo sem ordem judicial

Cabral dá prazo de 24 horas para provedores revelarem informações sigilosas

Thássius Veloso
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• Atualizado há 1 semana

O governador do meu Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, assinou um decreto que dá direito ao próprio governo de investigar os dados telefônicos e de internet de suspeitos de vandalismo – sem qualquer ordem judicial neste sentido. Minha gente, o Estado Democrático de Direito está mais uma vez perigando definhar neste país.

O decreto está no Diário Oficial da última segunda-feira. Basicamente, ele estabelece a criação de um órgão com o único intuito de investigar as pessoas suspeitas de participação em atos de vandalismo durante as manifestações sobre as quais, convenhamos, não preciso escrever uma linha sequer. Todo mundo sabe do que se trata. No texto consta a chamada Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas, carinhosamente apelidada de CEIV.

Decreto estabelece criação do CEIV
Decreto estabelece criação do CEIV

A tal comissão terá membros indicados pelas forças de segurança do Rio de Janeiro: Secretaria Estadual de Segurança, Polícia Civil e Polícia Militar. O Ministério Público Estadual, entidade vinculada à União, ficaria responsável por presidir o órgão.

Diz o decreto que a CEIV ficará responsável por “tomar todas as providências necessárias à realização da prática de atos de vandalismo, podendo requisitar informações, realizar diligências e praticar quaisquer atos necessários à instrução de procedimentos criminais com a finalidade de punição de atos ilícitos praticados no âmbito das manifestações públicas”.

Investigar crimes é bom. Não há dúvida disso.

O pulo do gato aparece no parágrafo único do artigo número 3: “As empresas Operadoras de Telefonia e Provedores de Internet terão prazo máximo de 24 horas para atendimento dos pedidos de informações do CEIV”. Em resumo, as teles estão obrigadas a prestar as informações solicitadas em não mais do que um dia.

Qualquer pessoa com o mínimo de noções sobre Direito sabe que isso não é possível. É um atentado contra a Carta Magna Lá no artigo quinto, famoso por começar com o “todos são iguais perante a lei”, diz o seguinte mais para baixo: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”. Inviolável. É um direito básico da nossa Constituição.

Mais à frente aparece a única exceção: “salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. A palavra-chave aqui é a ordem judicial. Sim, isso é comum. Diariamente a Justiça manda revelar informações sobre a atividade de pessoas na internet, bem como os dados telefônica. O problema está na forma como o decreto foi redigido. É como se o governador do Rio de Janeiro entendesse que essa ordem judicial não fosse necessária.

O jornal Folha de São Paulo foi atrás de especialistas para comentar o assunto. Com a palavra, Bruno Dantas, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ): “No Brasil, é a própria Constituição que assegura o sigilo das comunicações, que só pode ser vulnerado pelo juiz competente no bojo de processo criminal. Por isso, considero o parágrafo único do artigo 3° do Decreto do Governo do RJ escandalosamente inconstitucional.” Outro advogado ouvido pelo jornal disse que é “abuso de poder”. Para Técio Lins e Silva, trata-se de um escândalo. “Quem edita um decreto desse está brincando com o Estado democrático”, concluiu em entrevista à Folha.

Ao Globo, a professora de direito constitucional Cristina Luna afirmou que só a Constituição pode determinar a quebra de sigilos. Ela lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu inconstitucional a possibilidade Ministério Público, por si só, decidir quebrar o sigilo de algum investigado. Apenas com a ordem de um juiz ou uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a nossa bem conhecida CPI. Outro professor ouvido pelo jornal, Claudio Pereira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi além ao dizer que não é competência do governador fixar um prazo como de 24 horas previsto no decreto.

Quando eu li o tal decreto, automaticamente me lembrei de outro que provavelmente você conhece. O Ato Institucional Número Cinco (AI-5) foi o mais duro golpe do regime militar brasileiro em 1968. Ele retirava dos cidadãos o exercício de quais direitos públicos ou provados, dependendo exclusivamente de uma decisão do poder Executivo. A Constituição estava suspensa. O Executivo deu uma banana para os direitos individuais. É mais ou menos isso que o governador do Rio de Janeiro está fazendo.

Manifestantes se reuniram em frente à casa do governador. "Ditador", dizia um dos cartazes
Manifestantes se reuniram em frente à casa do governador. “Ditador”, dizia um dos cartazes

Cabral é um dos personagens mais criticados durante o arroubo de manifestações que tomou as ruas do país. Ele costuma se limitar a dizer que cumpre com suas obrigações; está assegurando o direito de ir e vir; não deve nada a ninguém. Na semana passada, vez e outra também disse que grupos internacionais entravam na internet – nas redes sociais – para incitar a violência nos atos políticos. Até agora, não mostrou uma prova sequer do que disse.

Os Estados Unidos têm o poder de espionar quem bem quiserem, bastando acionar um botão. Okay, pode não ser tão simples, mas essa simples possibilidade alertou o mundo sobre as necessárias discussões sobre privacidade. Da mesma forma, o governo estadual do RJ suspende direitos com a edição de um decreto. Novamente, o velho discurso: estamos protegendo a sua segurança. A que custo?

Leia o documento na íntegra

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Thássius Veloso

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Thássius Veloso é jornalista especializado em tecnologia e editor do Tecnoblog. Desde 2008, participa das principais feiras de eletrônicos, TI e inovação. Também atua como comentarista da GloboNews, palestrante, mediador e apresentador de eventos. Tem passagem pela CBN e pelo TechTudo. Já apareceu no Jornal Nacional, da TV Globo, e publicou artigos na Galileu e no jornal O Globo. Ganhou o Prêmio Especialistas em duas ocasiões e foi indicado diversas vezes ao Prêmio Comunique-se.

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