Caso Activision Blizzard: entenda tudo sobre o polêmico processo judicial
Caso da Activision Blizzard denuncia ambiente de trabalho tóxico, com assédio sexual e moral e vários problemas para funcionárias
Caso da Activision Blizzard denuncia ambiente de trabalho tóxico, com assédio sexual e moral e vários problemas para funcionárias
O governo da Califórnia, nos EUA, abriu um processo contra a Activision Blizzard em julho de 2021: os documentos legais apresentavam acusações de assédio sexual e moral, especialmente contra funcionárias da empresa de games. Mais de 40 relatos foram anexados ao texto e, desde então, pouco tem sido feito pela companhia, ainda que com pressão do público e de funcionários, via protestos e passeatas. Entenda o caso.
O processo começou a circular na rede a partir de contas no Twitter, em especial a CharlieIntel, especializada em Call of Duty. Logo, o jornalista Jason Schreier, da Bloomberg, repercutiu as informações, adicionando alguns detalhes apurados em suas fontes e também com mais conteúdo do processo em si. Sites especializados em mercado da indústria de games, como o Gamasutra, seguiram.
As investigações sobre os casos acontecem desde 2018, ou seja, não é algo de agora. O texto do processo – registrado pela agência governamental California Department of Fair Employment and Housing – indica que o governo tentou colaborar com a Activision Blizzard para resolver os casos sem chegar a estágios piores, mas que a empresa falhou em tentar solucionar os problemas dentro dos níveis aceitáveis, possivelmente temendo que os detalhes chegassem ao público ou à imprensa.
O gigantesco processo está disponível neste link, apenas em inglês, e traz diversos relatos de situações constrangedoras e até criminosas que aconteceram entre funcionários e funcionárias da Activision Blizzard. Entre alguns dos depoimentos, histórico de assédios com piadas sobre estupro, funcionárias que não eram promovidas mesmo tendo capacidades superiores a funcionários homens e até mesmo o caso de uma ex-colaboradora que tirou a própria vida, depois de passar por uma relação abusiva com seu supervisor na Blizzard.
Em uma resposta inicial ao processo, a Blizzard emitiu o seguinte e extenso comunicado, mas que é importante ser lido na íntegra:
Valorizamos a diversidade e nos esforçamos para promover um local de trabalho que oferece inclusão para todos. Não há lugar em nossa empresa ou setor, ou em qualquer setor, para conduta sexual imprópria ou assédio de qualquer tipo. Levamos todas as alegações a sério e investigamos todas as reclamações. Nos casos relacionados à má conduta, foram tomadas medidas para resolver o problema.
A DFEH inclui descrições distorcidas e, em muitos casos, falsas do passado da Blizzard. Temos sido extremamente cooperativos com a DFEH ao longo de sua investigação, incluindo o fornecimento de dados extensos e ampla documentação, mas eles se recusaram a nos informar quais problemas perceberam. Eles eram obrigados por lei a investigar adequadamente e a ter discussões de boa fé conosco para entender melhor e resolver quaisquer reclamações ou preocupações antes de entrar em litígio, mas eles não o fizeram. Em vez disso, eles correram para registrar uma reclamação imprecisa, pois nós iremos nos manifestar em tribunal. Estamos enojados com a conduta repreensível da DFEH de arrastar para a denúncia o trágico suicídio de uma funcionária cujo falecimento não tem qualquer relação com este caso e sem consideração pela sua família enlutada. É vergonhoso e pouco profissional, infelizmente é um exemplo de como eles se comportaram ao longo de sua investigação. O tipo de comportamento irresponsável de burocratas estaduais irresponsáveis que estão expulsando muitos dos melhores negócios do estado da Califórnia.
A imagem que a DFEH pinta não é o local de trabalho da Blizzard de hoje. Nos últimos anos e continuando desde o início da investigação inicial, fizemos mudanças significativas para abordar a cultura da empresa e refletir mais diversidade em nossas equipes de liderança, nosso Código de Conduta para enfatizar um foco estrito de não retaliação, ampliou programas e canais internos para que os funcionários relatem violações, incluindo a ‘Lista ASK’ com uma linha direta de integridade confidencial, e introduziu uma equipe de Relações com Funcionários dedicada a investigar as preocupações dos funcionários. reforçamos nosso compromisso com a diversidade, equidade e inclusão e combinamos nossas redes de funcionários em um nível global, para fornecer suporte adicional. Os funcionários também devem passar por treinamento anti-assédio regularmente e têm feito isso por muitos anos. Temos pacotes de remuneração e políticas que refletem nossa cultura e negócios, e nos esforçamos para pagar todos os funcionários de forma justa por trabalho igual ou substancialmente semelhante. Tomamos uma série de medidas proativas para garantir que o pagamento seja conduzido por fatores não discriminatórios. Por exemplo, recompensamos os funcionários com base em seu desempenho e realizamos treinamentos antidiscriminação abrangentes, inclusive para aqueles que fazem parte do processo de compensação.
Estamos confiantes em nossa capacidade de demonstrar nossas práticas como um empregador de oportunidades iguais que promove um ambiente de trabalho solidário, diverso e inclusivo para nosso pessoal, e estamos comprometidos em continuar esse esforço nos anos que virão. É uma pena que a DFEH não queria falar conosco sobre o que eles pensavam que estavam vendo em sua investigação.
Apesar de extenso, o comunicado não foi encarado com bons olhos por comunidade e funcionários. Em resumo o texto rebate acusações feitas no processo e diz que todo o trâmite legal inflou as denúncias feitas por trabalhadoras e ex-trabalhadoras da Blizzard, o que piorou a situação. O comunicado também não invalidou o processo, de maneira óbvia.
O caso logo ganhou grandes proporções. Acontece que a Blizzard sempre teve uma imagem progressista muito forte. Seus jogos apresentam diversidade, representatividade e pregam respeito para todo tipo de público. Mesmo detalhes eram percebidos, como a nacionalidade de vários personagens presentes em Overwatch, por exemplo. Ver a empresa no mar de lama de tantos relatos sobre assédio sexual e moral teve um efeito rápido e danoso.
Jogadores de World of Warcraft (WoW) organizaram um protesto dentro do game em defesa das funcionárias que denunciaram casos de abuso sexual dentro da empresa, logo no dia 22 de julho, pouco depois das denúncias. Centenas de pessoas se reuniram no centro da cidade de Oribos, exigindo mudanças transparentes na cultura da companhia.
O protesto foi organizado pela guilda Fence Macabre, que conta com clãs tanto da Aliança quanto da Horda nos reinos Wyrmrest Accord e Moon Guard. Além dos próprios membros da Fence Macabre, o protesto também uniu jogadores de outros reinos e clãs.
Além do protesto, a Fence Macabre começou a arrecadar doações para a ONG Black Girls CODE, que ensina programação para jovens negras de 7 a 17 anos. Na ocasião, no mesmo dia, mais de US$ 9,2 mil (cerca de R$ 47,6 mil) foram arrecadados pelos participantes.
Por outro lado, Mike Morhaime, ex-chefe da Blizzard, resolveu se pronunciar na mesma semana, em 26 de julho. Morhaime sempre foi conhecido como um dos bastiões do respeito, empatia e diversidade dentro da Blizzard. Sua saída, em 2018, não foi vista com bons olhos por parte dos fãs, justamente por ele ser uma figura que trabalhava constantemente para promover um ambiente de trabalho seguro e sadio para todos e todas.
O então presidente da Blizzard, J. Allen Brack, foi afastado do cargo apenas em 3 de agosto. O cargo de liderança passou a ser ocupado pela dupla formada por Jennifer Oneal e Mike Ybarra. O executivo deixou a empresa para ir atrás de novos desafios, mas o timing ajuda a perceber que sua saída tem total relação com as denúncias e os casos de assédio que não conseguiu reparar.
Dias antes, em 23 de julho, Brack enviou um memorando interno aos funcionários, por e-mail, que foi publicado pelo jornalista Jason Schreier, em seu Twitter. Em suas palavras, Brack disse coisas como “embora não possa comentar os detalhes do caso, visto que se trata de uma investigação em andamento, posso dizer que o comportamento detalhado nas alegações é totalmente inaceitável”. Brack escreveu ainda que sempre lutou por igualdade e contra a “bro culture”, que é basicamente a cultura machista que prejudica mulheres em ambientes de trabalho.
O problema é que isso não foi visto em um vídeo publicado no Twitter, para contra-argumentar as afirmações de Brack no final de julho. No vídeo, em uma BlizzCon de 10 anos atrás, uma bancada de produtores homens, incluindo J. Allen Brack, recebe com deboche o questionamento de uma jogadora de World of Warcraft, que aponta que as personagens femininas do jogo parecem ter saído de um catálogo da agência de modelos Victoria’s Secret, ou seja, sexualizadas.
Ainda que o caso tenha ocorrido há mais de 10 anos, ele casa com algum teor das denúncias, já que a investigação foi iniciada apenas em 2018 – indicando que os casos ocorreram há mais tempo. Além disso, Fran Townsend, executiva da Activision Blizzard, chegou a enviar um comunicado interno, dizendo que as acusações do processo passavam uma imagem errada de empresa e que não tinham mérito.
O que aconteceu depois disso, mas antes da saída de Brack, foi uma série de protestos e reclamações por parte dos funcionários atuais da Blizzard. Em 27 de julho, mais de 2 mil trabalhadores assinaram uma carta aberta à direção da empresa. O comunicado dizia:
Para os líderes da Activision Blizzard,
Nós, os signatários, concordamos que as declarações da Activision Blizzard, Inc. e seu consultor jurídico sobre o processo da DFEH, bem como a declaração interna subsequente de Frances Townsend, são abomináveis e insultuosas para tudo o que acreditamos que nossa empresa deveria representar. Para colocar de forma clara e inequívoca, nossos valores como funcionários não são refletidos com precisão nas palavras e ações de nossa liderança.
Acreditamos que essas declarações prejudicaram nossa busca contínua por igualdade dentro e fora de nosso setor. Categorizar as alegações feitas como “distorcidas e, em muitos casos, falsas” cria uma atmosfera empresarial que descrê as vítimas. Também lança dúvidas sobre a capacidade de nossas organizações de responsabilizar os agressores por suas ações e promover um ambiente seguro para que as vítimas se apresentem no futuro. Essas declarações deixam claro que nossa liderança não está colocando nossos valores em primeiro lugar. Correções imediatas são necessárias do mais alto nível de nossa organização.
Os executivos de nossa empresa alegaram que ações serão tomadas para nos proteger, mas em face das ações legais – e das respostas oficiais preocupantes que se seguiram – não confiamos mais que nossos líderes colocarão a segurança dos funcionários acima de seus próprios interesses. Afirmar que este é um “processo verdadeiramente sem mérito e irresponsável”, enquanto vemos tantos funcionários atuais e ex-funcionários falarem sobre suas próprias experiências em relação a assédio e abuso, é simplesmente inaceitável.
Solicitamos declarações oficiais que reconheçam a seriedade dessas alegações e demonstrem compaixão pelas vítimas de assédio e agressão. Apelamos a Frances Townsend para cumprir sua palavra de renunciar como patrocinadora executiva da Rede de Mulheres Funcionárias da ABK como resultado da natureza prejudicial de sua declaração. Apelamos à equipe de liderança executiva para trabalhar conosco em esforços novos e significativos que garantam que os funcionários – assim como nossa comunidade – tenham um lugar seguro para falar e se apresentar.
Apoiamos todos os nossos amigos, companheiros de equipe e colegas, bem como os membros de nossa comunidade dedicada, que sofreram maus-tratos ou assédio de qualquer tipo. Não seremos silenciados, não ficaremos de lado e não desistiremos até que a empresa que amamos seja um local de trabalho do qual todos possamos nos sentir orgulhosos de fazer parte novamente. Nós seremos a mudança.
No dia seguinte, o mesmo grupo planejou, e executou, uma paralisação e uma pequena passeata na frente do quartel-general da Blizzard, em Irvine, com uma extensa carta de convocação aos colegas de trabalho, em prol de mudanças drásticas, reais e imediatas, diante das denúncias.
Em um primeiro momento os funcionários não planejaram se sindicalizar e deixaram claro que o movimento não tinha qualquer relação com sindicatos. Nos EUA, sindicatos são vistos com muito receio por empresas, geralmente em detrimento dos funcionários, por conta da cultura e das leis trabalhistas que lá existem.
Não por um acaso, em 29 de julho, a Blizzard contratou um escritório de advocacia chamado WilmerHale — conhecido por destruir e impedir a formação de sindicatos de trabalhadores.
Ao Kotaku, um representante da Activision Blizzard disse que a WilmerHale seria responsável por “ajudar organizações a fortalecerem seus ambientes de trabalho, melhorando políticas e procedimentos relacionados a questões de discriminação, assédio e represália”. Porém, o histórico da agência não é tão simples assim.
Como destacado pelo usuário @JDespland, no Twitter, a WilmerHale foi a mesma empresa contratada pela Amazon para impedir que os funcionários da gigante do e-commerce se sindicalizassem, em fevereiro deste ano.
Mas os problemas da Blizzard não pararam por aí. Já em 4 de agosto, após a saída de Brack, a Activision Blizzard foi novamente processada.
Dessa vez, a ação foi movida por investidores e acionistas que se sentiram “prejudicados economicamente”. De acordo com o documento, eles foram “enganados” pela desenvolvedora, a qual manteve em segredo todos os problemas de comportamento dos funcionários.
Além disso, a desenvolvedora deixou de informar os investidores que estava há dois anos sob investigação da Department of Fair Employment and Housing. Essas atitudes resultaram não só em sérios prejuízos financeiros, como também em danos à imagem da empresa no mercado, afetando ainda os acionistas.
O processo cita especificamente o CEO da Activision Blizzard, Bobby Kotick, o atual CFO, Dennis Durkin, e o ex-CFO, Spencer Neumann, como executivos que estariam cientes sobre a não divulgação de informações sobre a empresa. Os investidores buscam compensação pelos valores supostamente perdidos em decorrência do escândalo. Detalhe: o processo foi revelado no mesmo dia em que a Blizzard tinha reunião de resultados financeiros com os mesmos investidores.
Já no dia 6 de agosto, soubemos que a Overwatch League, uma das principais competições oficiais da Blizzard, perdeu patrocínios e parcerias da empresas importantes, como Coca-Cola, T-Mobile e State Farm.
Depois de um tempo, algumas demissões concretas e relevantes começaram a ocorrer na Blizzard. Três nomes considerados importantes deixaram a empresa no meio de agosto, entre eles Jesse McCree, designer líder de Diablo 4 e que também inspirou o nome de um dos personagens de Overwatch.
McCree saiu também junto com Luis Barriga, diretor de Diablo 4. Além deles, Jonathan LeCraft, designer da equipe de World of Warcraft, deixou a empresa no mesmo período. A Blizzard, contudo, não abriu os motivos para as saídas, apenas informou que aconteceu. A situação pode ser explicada por um caso que foi exposto nas redes sociais com a chamada “Suíte Cosby”.
Ao que parece, durante os dias em que ocorriam a BlizzCon, funcionários da Blizzard tinham um quarto especial reservado em um dos hoteis de Anaheim, onde realizavam festas e possivelmente orgias. O nome se dá por conta do comediante Bill Cosby, que já recebeu diversas acusações de abuso sexual durante anos.
Em uma foto registrada em 2013, um grupo de homens é visto na cama, segurando um enorme quadro com a imagem de Bill Cosby. Jesse McCree e Jonathan LeCraft, demitidos agora, estão entre estes homens.
Além disso, o próprio LeCraft é um dos homens citados nominalmente entre os processos registrados contra a Blizzard, de acordo com o Kotaku. Logo, a coisa meio que se explica automaticamente.
A saída de McCree, por fim, inspirou uma petição de fãs para que o nome do personagem Jesse McCree, de Overwatch, tivesse seu nome modificado – ele foi inspirado no game designer. O pedido dos fãs foi aceito pela Blizzard, dias depois, mas um novo nome não foi informado.
As demissões, porém, não ajudaram a melhorar a imagem da Blizzard, já que nada de concreto mudou. Inclusive a coisa piorou. O Department of Fair Employment and Housing (DFEH), órgão do governo responsável pelo processo, indica que a Activision Blizzard teria instruído seus funcionários a conversar com os advogados da empresa WilmerHale e não com a organização estadual, além de ter destruído alguns documentos que ajudariam as investigações.
Este texto estará em constante atualização, enquanto a história não se fechar e uma resolução para os funcionários da Blizzard for apresentada. Pequenas novidades surgem aqui e ali sobre o caso, eventualmente. De acordo com o Engadget, apenas 20% do quadro de funcionários da Blizzard é representado por mulheres, enquanto a liderança é composta, majoritariamente, por homens brancos.
As queixas não são de hoje. O Bloomberg informa que situações similares ocorriam há muitos anos. Em 2018, o próprio Mike Morhaime comunicou a demissão de Ben Kilgore, diretor de tecnologia, após um problema envolvendo relação que Kilgore havia desenvolvido com sua assistente.
Resta aguardar por mais posicionamentos da Blizzard e medidas a serem tomadas, para ver como o caso será solucionado.