O desabafo de um lolzeiro: por que nos estressamos tanto com jogos online?
Seja no LoL, no CoD, no Valorant ou em qualquer outro game competitivo, a toxicidade e o estresse excessivo são naturalizados como parte da experiência, mas não tem que ser assim
Você levanta todos os dias de manhã, vai estudar ou trabalhar (às vezes os dois), e quando chega em casa, cansado em corpo e mente, naturalmente busca alguma forma de entretenimento, um escape. Para mim, desde que me conheço por gente, esse prazer diário tem sido videogames, mais especificamente jogos online e competitivos.
Claro, você busca se divertir com essa atividade, mas por que tantas vezes ela acaba sendo mais uma fonte de estresse? Por que nosso psicológico pode ser tão afetado por um “simples joguinho”?
League of Legends, o famoso lolzinho, é provavelmente o maior e principal exemplo desse tipo de experiência. Contando com uma comunidade mundialmente reconhecida por sua toxicidade, o famosíssimo MOBA move milhões de jogadores por todo o mundo e foi sem dúvida um importantíssimo pilar para a ascensão e reconhecimento do e-sports. O LoL lota arenas e protagoniza espetaculares shows de abertura para campeonatos mundiais, acompanhados por uma legião engajada players e pela mídia.
Minha experiência com o famigerado lolzinho começou ainda em 2012, alguns anos após seu lançamento em 2009. Na época, eu estava no ensino médio e fui convencido por alguns amigos a me aventurar por Summoner’s Rift, seja para o bem ou para o mal. Ao longo dos anos, parei de jogar, voltei, parei de novo… Mesmo assim, League of Legends fez e ainda faz parte da minha vida, especialmente de 2017 em diante.
O jogador de LoL é um meme por si só. O jogo é muitas vezes alvo de piadas. “Ei, bora jogar para passar estresse”? Coisa normal de ouvir. Mais normal ainda é sentir a razão de tudo isso na pele. É comum perder uma partida porque seu time não para de brigar. Também é uma experiência recorrente jogar mal e ser agredido verbalmente, às vezes com as clássicas ofensas infantis direcionadas a sua mãe, outras vezes com falas racistas, homofóbicas, machistas, ameaças de morte…
Enfim, que o LoL é um ambiente tóxico todos sabemos, ainda mais aqui no Brasil. Mas, afinal, por que eu jogo um game que me deixa tão estressado? Que me faz me sentir mal? Claro, há também a contrapartida. Ganhar é bom e reconfortante, é um autoreconhecimento do seu esforço e habilidade. Jogar com os amigos é outra coisa empolgante e divertida. No final das contas, vira rotina.
Particularmente, por muito tempo me estressei (e ainda me estresso) com o LoL. Mas este texto não é exclusivamente sobre esse jogo. Na realidade, essa cultura gamer estressante se estende para muitos outros títulos que já joguei bastante na vida. Black Desert Online é um desses exemplos. Um MMORPG 90% focado em PvP (player versus player) cujo trunfo gira em torno de guerras de guilda.
Na realidade, não escrevo isso para falar de nenhum game em específico. Estou aqui para investigar um pouco esse curioso comportamento que nós, gamers, temos de nos estressar tanto com jogos online, a ponto de insultar alguém que nem conhecemos e devolver o ódio. Temos aí um ciclo vicioso de ofensas e a base para a toxicidade naturalizada nos chats.
Afinal, por que é tão estressante?
Naturalmente, minha referência para tudo que digo são anos de vivência jogando e me estressando online. Não tenho a pretensão de trazer eu mesmo todas as respostas (se é que elas existem). Por isso, conversei com Evelise Carvalho, psicóloga clínica com mestrado em psicologia forense e que atua principalmente com violência em jogos. Além disso, ela é uma gamer de longa data de League of Legends, World of Warcraft e outros títulos.
Evelise Galvão de Carvalho é psicóloga, tem 35 anos e joga todo tipo de jogo online desde os 17, especialmente World of Warcraft e League of Legends.
Ela é mestre em psicologia forense pela Universidade Tuiuti do Paraná, possui Diploma em psicologia forense e criminal pelo Independent College Dublin, Irlanda e é ainda graduada em psicologia pela Faculdade Evangélica do Paraná.
Atualmente, a psicóloga gamer atua nas áreas clínica e forense na Clínica Íntegra em Curitiba, especializada em atendimentos de adolescentes e jovens adultos com transtornos comportamentais ligados à tecnologia, assim como outros transtornos mentais e comportamentais.
Também é palestrante nas temáticas: saúde mental e tecnologia, violência de gênero na internet, mundo digital e as influências no comportamento humano, cyberbullying, psicologia forense e comportamento antissocial na internet.
Evelise é autora de uma cartilha gratuita direcionada para pais e cuidadores sobre o que as famílias precisam saber sobre games.
Em uma conversa longa e descontraída (que me fez me sentir quase em uma sessão de terapia), tentei entender o porquê desse meu estresse em jogos online e os fatores por trás dessa questão macro social. Aqui, minha experiência serve também como um espelho para o que muitos outros jogadores sentem.
Logo no início, Evelise me contou que joga games online há quase 20 anos e já compartilhou comigo um relato pessoal de como é difícil ser mulher no ambiente gamer: “Jogo desde que tinha dezessete anos e sempre fui dona de guilda e estive em posições de liderança, o que deixa tudo ainda pior”.
Eu, como membro da comunidade LGBT, compreendo muito bem essa situação. Perdi as contas de quantas ofensas pessoais e homofóbicas recebi gratuitamente em chats de games online, seja pelo meu avatar, pelo meu nickname ou por não esconder quem sou. Inevitavelmente, mesmo atrás de uma tela, essas coisas machucam profundamente.
Então, por que nos estressamos? Ficamos furiosos com o comportamento tóxico alheio, óbvio. Ficamos ainda mais indignados com aqueles que acham que a suposta camada de proteção proporcionada por um nome in-game e por uma imagem de anime como avatar permite queações e falas extremamente ofensivas não tenham consequências. É ainda mais revoltante ver que pouquíssimas medidas são tomadas para punir esses jogadores, tanto in-game e muito menos na vida real.
Evelise tocou então em um ponto importantíssimo para essa discussão. A cultura agressiva e tóxica naturalizada nos games é talvez a mais óbvia fonte do estresse que passamos. Porém, o buraco é bem mais em baixo. Ainda existem inúmeros fatores que contribuem para a tensão, para a raiva e para os surtos causados pelos videogames.
Um jogo, muitas vezes, não é apenas um jogo
Eu compreendo e me identifico profundamente com essa fala. Após uma breve reflexão, percebi que inúmeras vezes na minha “vida gamer” trouxe meus problemas para dentro de um jogo. Seja por um fracasso, baixa autoestima, ansiedade ou a depressão, eu realmente buscava vencer para provar para mim mesmo que eu era bom em algo. Outras vezes, o estresse pode partir de algo mais superficial, como um simples dia ruim que você projeta no virtual.
No entanto, esse tipo de coisa afeta não apenas a você, mas também a todos que estão compartilhando seu tempo jogando com você.
A origem da toxicidade
“É como uma teia. Se você bate em uma extremidade, a teia toda se mexe”, disse Evelise. Segundo a especialista em atos de violência virtual, a toxicidade é uma cultura e um efeito em cadeia. Assim como explicado acima, um dia ruim de uma pessoa pode chegar ao chat como uma ofensa ao outro, o que instiga demais jogadores a fazerem o mesmo. No próprio LoL, quando uma pessoa começa a xingar, prontamente surgem mais e mais pessoas fazendo o mesmo.
Estamos falando de um problema coletivo. O jogador tóxico, que gera estressa e afeta a estabilidade mental do outro, também é uma pessoa.
E isso não poderia ser mais preciso. A vítima de insultos por vezes será a autora de ofensas a outros jogadores.
Evelise me explicou também que recebe muitos jovens na clínica em que trabalha. Muitos deles são encaminhados por pais preocupados por comportamentos agressivos e reações exageradas e desproporcionais relacionadas a games online. Inclusive, ela levantou dados importantíssimos para essa discussão.
Brasil é referência em players tóxicos
Enquanto este texto abrange um cenário macro social global, precisamos focar mais ainda no Brasil. Segundo a profissional, nosso país é considerado a segunda nação mais tóxica em games do mundotodo, atrás somente da Polônia (o que foi uma grande novidade para mim). De acordo com pesquisas da psicóloga, o mercado de games não apenas reconhece nós brasileiros como uma comunidade problemática, como até mesmo chega a mudar sua abordagem comercial por conta disso.
Black Desert Online, por exemplo, demorou muito mais para chegar no Brasil pelo receio que os desenvolvedores tinham de incluir os brasileiros no game. Isso é muito grave e não falamos disso. Por que o brasileiro é tão tóxico? Essa resposta eu ainda não tenho, mas é algo que precisa ser discutido.
Os efeitos no nosso psicológico
Evidentemente, o que vivemos com nossos personagens dentro dos games online não permanece somente no virtual. Não é seu “char” que sente, é você. Novamente, Evelise me deu uma visão esclarecedora sobre essa questão:
“Nosso cérebro processa informações e não separa o que está na ‘realidade’ e o que está na internet. Somos seres sociais e dependemos de interações com os outros para viver. A opinião do outro nos afeta, a ofensa do outro nos machuca… trazemos tudo isso para nosso psicológico e inevitavelmente somos afetados pela agressividade, toxicidade e pelo estresse gerado por tudo isso.”
Nesse sentido, eu quero destacar que esses efeitos podem ser muito piores em pessoas que já contam com transtornos psicológicos. Eu mesmo, com a minha ansiedade generalizada, síndrome do pânico e depressão, já vi todas essas condições terríveis de se viver serem agravadas pela minha experiência com games online. De repente, sua atividade de escape se torna um pesadelo.
Destaco os ataques pessoais gratuitos e ao discurso de ódio. Só quem tem feridas profundas e traumas relacionados ao preconceito contra minorias sociais sabe do que estou falando. Ser atacado na internet por ser gay, lésbica, transexual, negro ou mulher, por exemplo, é algo que te marca. Você lembra das ofensas, de cada palavra digitada no chat ou falada em call, e as carrega consigo como um fardo que pesa no seu emocional por muito tempo.
Como melhoramos? (como player e como pessoa)
Mas, se existem tantos problemas, também precisa existir alguma solução, não é mesmo? Não há uma fórmula mágica para se combater o estresse com jogos online e a cultura da toxicidade, mas há coisas que podem melhorar esse comportamento. Assim como o ódio e a raiva são transmitidos em cadeia, a gentileza também é.
Evelise me contou um tática que ela mesmo aplicou em partidas em League of Legends que se mostraram super efetivas. Mesmo com equipes sendo “inimigas”, elogiar aquele que te venceu e incentivar aquele que perdeu são as coisas simples que podem e devem ser feitas. Pode não parecer, mas, segundo a psicóloga, um comportamento positivo no chat é um fator inibidor para que o tóxico seja tóxico.
Ela também destacou que se jogar algum jogo em específico lhe faz mal constantemente, não tenha medo de deixá-lo. Evelise conta que não joga mais ranqueadas ou sequer Summoner’s Rift em League of Legends, apenas ARAM, justamente porque é o modo de jogo que proporciona a melhor experiência para ela.
Claro, há sempre jogadores como eu, que quase nunca da o braço a torcer e permanece jogando, mesmo com o estresse elevado. O famoso player “tryhard”, aquele realmente dedicado a melhorar seu ranking e ser bom no game, prefere, de maneira geral, se estressar do que deixar de jogar por isso. No entanto, A psicóloga me contou também que manter a calma é um dos elementos mais cruciais para se melhorar a gameplay.
Outra tendência comum diante da derrota é automaticamente culpar o time ou outros players em específico, em vez de reconhecer seus próprios erros. É um processo trabalhoso. É muito mais fácil direcionar sua frustração diante do fracasso para outra pessoa, mas a autorreflexão é a chave para um psicológico mais saudável e para uma gameplay mais avançada. Reconheça seus erros, sempre tive dificuldade com isso.
Pouco tempo após minha entrevista com Evelise, fui testar tudo o que foi dito em uma partida ranqueada de League of Legends. Me surpreendi. Ao mudar meu próprio comportamento e incentivar outros jogadores, tive uma experiência espetacularmente boa e amigável.
Sim, é isso mesmo, foi relaxante jogar LoL. Foi uma das pouquíssimas vezes em que, mesmo em desvantagem no início, não houve xingamentos, porque eu estava sendo gentil e apoiando os demais no chat. No final das contas, venci, porque a comunicação em um MOBA e a cooperação são coisas cruciais para atingir a vitória, mas são impossíveis de se alcançar quando todos estão se xingando no chat.
Não tenha vergonha de pedir ajuda
A maioria das pessoas que procuram Evelise em sua clínica possuem problemas na vida e transtornos psicológicos. Alguns deles estão fortemente conectados com jogos online. Por isso, ela amigavelmente avisa:
“Não tenha medo ou vergonha de pedir ajuda profissional. Não se julgue por achar que precisa de ajuda e procure quem possa fornecê-la. Às vezes, amigos podem auxiliá-lo, outras vezes, é um psicólogo, e não há demérito algum nisso”.
Essa é, talvez, uma das chaves para começarmos a desconstruir essa cultura tóxica que predomina na comunidade player brasileira. Por que atacar o outro? Essa é uma questão importante para se perguntar a si mesmo. A distância física e emocional entre players impede que vejamos as consequências de nossas ações. No entanto, é absolutamente fundamental pensarmos nelas, e no que um “pequeno” xingamento pode fazer com o psicológico do seu colega de jogo.
Encerrei a entrevista com muitos aprendizados, mas também senti um leve gostinho do que é essa ajuda profissional voltada para games, e foi surpreendentemente reconfortante.
Bruno Ignacio é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero. Cobre tecnologia desde 2018 e se especializou na cobertura de criptomoedas e blockchain, após fazer um curso no MIT sobre o assunto. Passou pelo jornal japonês The Asahi Shimbun, onde cobriu política, economia e grandes eventos na América Latina. No Tecnoblog, foi autor entre 2021 e 2022. Já escreveu para o Portal do Bitcoin e nas horas vagas está maratonando Star Wars ou jogando Genshin Impact.