Como a Amazon ocupou o espaço das grandes livrarias

Ascensão da loja no Brasil é mérito de sua operação robusta, mas recuperação judicial de Saraiva e Livraria Cultura facilitou as coisas

Josué de Oliveira
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• Atualizado há 11 meses
Desde o começo, a Amazon tem uma forte conexão com mundo dos livros (Imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog)
Desde o início, a Amazon tem uma forte conexão com mundo dos livros (Imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog)

“Crise” é uma palavra corriqueira no mercado editorial brasileiro. Trata-se, afinal de contas, de uma indústria que encolheu 39% nos últimos 16 anos, segundo a Nielsen. Além disso, o brasileiro lê pouco, uma média de 2,5 livros inteiros por ano, de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil.

As crises econômicas atravessadas pelo país também afetam o consumo de livros e o faturamento das editoras. Flutuações no ritmo de compras pelo Governo, idem. Some-se a isso a pandemia (lojas tendo que fechar às pressas) e um aumento acumulado de 90% no preço do papel. O negócio do livro no Brasil não é fácil para nenhum dos integrantes de sua cadeia.

Exceto, talvez, para um deles. A Amazon destoa nesse cenário complicado para autores, editoras e livrarias. Com seu tamanho, descontos agressivos e soluções tecnológicas, sua fatia do varejo de livros no Brasil só faz crescer desde sua chegada no país, em 2012. O cenário é semelhante nos EUA. A Amazon é uma potência quando o assunto é vender livros.

Mas, para além dos próprios méritos da empresa, um outro fator contribuiu para sua ascensão: os principais competidores já tiveram dias melhores.

Recuperação judicial em dose dupla

Aquelas que já foram consideradas as mais importantes livrarias do país lutam para não falir. Saraiva e Livraria Cultura se encontram em processo de recuperação judicial desde 2018, e o mercado como um todo sentiu o impacto dos problemas financeiros enfrentados por ambas.

Os sinais de que as coisas iam mal se acumulavam antes mesmo da abertura do processo. O principal era o atraso nos repasses às editoras. Novos prazos eram requisitados, e, quando a data combinada chegava, novas extensões eram pedidas. As livrarias passaram a dividir seus problemas de caixa com as editoras.

Os perrengues de Saraiva e Livraria Cultura são resultado de dívidas acumuladas ao longo de anos. Enquanto expandiam suas operações, as redes iam fazendo empréstimos e investindo em lojas cada vez maiores – e, portanto, mais caras de se manter. Em dado momento, os pedidos por mais prazo não foram suficientes, e os processos de recuperação judicial tiveram início.

Loja da Saraiva (imagem: Humberto Souza/Saraiva)
Loja da Saraiva (imagem: Humberto Souza/Saraiva)

Em seu auge, a dupla Saraiva e Cultura seriam adversárias respeitáveis. Porém, lidando com uma crise sem precedentes, seu poderio diante de um player como a Amazon diminui consideravelmente. Não há tempo ruim para a gigante de Seattle, que vende de tudo e ainda oferece outros tantos serviços além do varejo. O estado combalido de suas concorrentes abriu caminho para que a Amazon ocupasse a dianteira que um dia foi delas.

A loja de tudo já foi apenas uma livraria

Os livros estão no DNA da Amazon. No longínquo ano de 1995, a loja iniciou suas operações como uma livraria online. Esse pedaço da operação se solidificou como um dos carros-chefes da empresa.

Os preços baixos, o enorme acervo, a entrega, a solução tecnológica para leitura de e-books – o Kindle, e-Reader lançado em 2007 –, todos esses aspectos ajudam a explicar o domínio da Amazon no mercado de livros. Em 2020, a loja já era responsável por metade das vendas de livros impressos nos EUA, e nada menos que três quartos dos e-books lançados por editoras.

No Brasil, situação parecida: cerca de 40% do mercado, com picos de 60% durante a pandemia. Enquanto outras redes de livraria, como a Leitura, tomam os espaços antes ocupados pela Saraiva, a Amazon se consolida como o principal player do mercado no país.

Além do mercado tradicional, a Amazon também é o principal caminho tomado por autores independentes. Através do Kindle Direct Publishing, seu programa de autopublicação, qualquer um pode lançar um e-book em sua plataforma. Até há concorrentes no segmento, mas nenhum chega perto do tamanho do KDP.

É muito poder. E poder demais nas mãos de um único player pode acabar sendo problemático. Embora as condições aplicadas pela Amazon em seu trato com as editoras não sejam muito diferentes do praticado por Saraiva e Cultura, faz sentido ter certa apreensão. Uma única decisão poderia afetar o mercado como um todo. E se de repente a Amazon exigir descontos muito maiores do que uma editora quer oferecer?

Kindle (Imagem: James Tarbotton/Unsplash)
Kindle (Imagem: James Tarbotton/Unsplash)

Isso já aconteceu, inclusive. Em 2014, numa disputa para fixar o preço dos e-books da editora francesa Hachette em US$ 9,99 (o que a editora não queria), a Amazon simplesmente impediu que títulos da mesma pudessem ser adquiridos em pré-venda. Além disso, também aumentou o tempo de entrega de seus livros para até um mês.

Hachette e Amazon acabariam chegando a um acordo, mas a editora francesa teve prejuízo devido às ações da empresa. O caso se tornou um exemplo emblemático da pressão que a loja de tudo pode exercer sobre quem não aceita jogar de acordo com suas regras.

Melhor que a Saraiva, mas é melhor ficar atento

Disputas como essa jamais aconteceram no Brasil. Até o momento, a presença da Amazon no mercado nacional tem sido positiva. É o que explica o editor Daniel Lameira, cofundador da editora Antofágica. Ele lembra dos atrasos da Saraiva, por exemplo, e destaca que, com a Amazon, esse problema não existe.

Pro mercado editoral, é melhor dar 60% (do valor do livro) para a Amazon e receber, do que o que acontecia até então, que era consignação. Era uma bagunça, a Saraiva não acertava direito, sumia livro, atrasava. (…) Ela ficava com os livros consignados, avisava que tinha vendido dez livros (quando provavelmente tinha vendido cem), iam te pagar em cento e vinte dias, e cento e vinte dias depois não te pagavam. (…) Na Amazon não tem isso. Ela é muito boa nesse sentido. É o melhor serviço que tem hoje para editoras, para autores fazerem que seus livros cheguem nas pessoas.

Daniel Lameira

Mas essa relação também pode ter contornos problemáticos, na opinião de Lameira. A Amazon praticaria uma espécie de capitalismo de plataforma, sendo semelhante, nesse sentido, a aplicativos como iFood. A solução tecnológica é oferecida e os usuários – editoras e autores – ficam presos a ela, já que as outras opções existentes no mercado – Saraiva, Livraria Cultura – foram superadas.

Em outras palavras, é um cenário de dependência. A Amazon tem a tecnologia e a base de clientes, o que lhe dá considerável vantagem na mesa de negociação. Apesar dos benefícios que ela objetivamente trouxe ao mercado de livros, argumenta Lameira, essa real dimensão do poder da Amazon não pode ser perdida de vista, e cabe a editoras e autores refletirem sobre caminhos para escapar do que pode acabar se revelando uma armadilha.

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Josué de Oliveira

Josué de Oliveira

Produtor audiovisual

Josué de Oliveira é formado em Estudos de Mídia pela UFF. Seu interesse por podcasts vem desde a adolescência. Antes de se tornar produtor do Tecnocast, trabalhou no mercado editorial desenvolvendo livros digitais e criou o podcast Randômico, abordando temas tão variados quanto redes neurais, cartografia e plantio de batatas. Está sempre em busca de pautas que gerem conversas relevantes e divertidas.

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