Crianças esquecidas no carro: quando nem a tecnologia pode ajudar
Ao ganhar a função Child Reminder, o Waze chama atenção para um problema sério: por que há pais que esquecem os filhos nos carros?
Ao ganhar a função Child Reminder, o Waze chama atenção para um problema sério: por que há pais que esquecem os filhos nos carros?
Na semana passada, o Waze ganhou uma função de lembrete para o usuário não esquecer o filho no carro. Em junho, a GM prometeu um sistema parecido em alguns veículos que serão lançados em 2017. Algumas cadeiras para crianças com alarme anti-esquecimento também estão sendo testadas. Além da finalidade proposta, sabe o que essas ideias trazem? Indignação: como alguém pode esquecer o próprio filho dentro do carro?
Vira e mexe o noticiário traz à tona a notícia de um bebê que morreu por ter sido esquecido no carro. Invariavelmente, a ocorrência gera comoção de grandes proporções. Há até casos em que a polícia tem que proteger os pais para evitar que eles sejam linchados.
Não é de se estranhar que isso aconteça. A morte de uma criança em circunstâncias que podem ser facilmente evitadas faz muita gente pensar que aquele pai ou aquela mãe é uma pessoa irresponsável, negligente, imatura, fria, egoísta e por aí vai, o que também pode levar à crença de que a perda, para ela, não é tão importante assim.
Grande equívoco. Na maioria esmagadora das vezes, essas pessoas amam e zelam pelos filhos tanto quanto os pais que bradam que nunca esquecerão um bebê dentro do carro. Até que esquecem: só nos Estados Unidos, estima-se que 40 crianças morrem por ano nessas circunstâncias.
No Brasil não há números oficiais, mas o problema também ocorre por aqui. Na verdade, estamos diante de um fenômeno global. E olha que nem falamos das crianças esquecidas em carros que, felizmente, foram socorridas antes do pior.
O assunto é tão sério que autoridades de trânsito e ONGs de várias partes do mundo fazem cada vez mais campanhas para nos alertar sobre a necessidade de redobrar a atenção com crianças pequenas dentro do carro. Uma delas é a Safe Kids Worldwide, que não só dá alertas, como realiza extensas investigações para diminuir as ocorrências do tipo.
David Diamond é um professor de psicologia da Universidade do Sul da Flórida que estuda o assunto desde 2004. Em artigo publicado recentemente no The Conversation, ele reconhece que, no início, assumiu a postura convencional: de que as mortes são causadas por pais negligentes ou indiferentes.
Mas, após conversar com pessoas que passaram pelo problema e ouvir ligações gravadas de pais que contataram serviços de emergência após encontrarem o filho desfalecido dentro do carro, Diamond constatou que, na grande maioria dos casos, o elemento da negligência ou da indiferença não foi identificado.
Como pode, então, um pai ou uma mãe sair do carro e deixar o filho lá? Cada caso tem que ser investigado e tratado individualmente, mas psicólogos, psiquiatras e outros especialistas que estudam o assunto dão como principal causa o ritmo de vida que força cada um a ficar ligado no “piloto automático”: ficamos tão acostumados a uma rotina frenética que podemos falhar, ainda que momentaneamente, com uma atividade que foge dela.
Imagine, como exemplo, a seguinte cena: o pai leva o filho à creche pela manhã; à tarde, a mãe fica responsável por buscar a criança. Mas, certo dia, a mãe teve que ficar até tarde no trabalho, então coube ao pai buscar o filho. Para piorar, aquele é o dia de fazer as compras da semana. O pai sai da creche, vai ao mercado e, atribulado que está, esquece que a criança ficou lá no banco traseiro.
Note que o pai, no intuito de cumprir todas as suas tarefas, entrou no tal do modo automático. Depois do trabalho, ele dedica aquele dia da semana para ir ao mercado. Faz parte da rotina. Só que, naquela tarde, ele teve um compromisso não habitual: buscar o filho. Se não estivesse com a cabeça cheia de preocupações, muito provavelmente ele teria dado mais atenção ao filho e, consequentemente, lembrado dele dentro do carro.
Sim, soa como uma coisa ridícula. Por mais atarefado que esteja, nenhum pai ou responsável pode se descuidar dessa forma. Mas, em muitos casos fatais, foram justamente essas circunstâncias que estiveram presentes.
David Diamond explica que temos uma memória de hábito. É ela que permite que você realize tarefas repetitivas com bastante habilidade: levar seus filhos todo dia à escola pelo caminho certo e dirigir o carro sem errar a troca de marcha, por exemplo, acabam sendo tarefas executadas com mais eficiência nesse modo automático.
A memória de hábito é extremamente importante para nós, portanto. O problema é que ela pode, ocasionalmente, suprimir a memória prospectiva, que é a que lida com o que vai acontecer: você a usa para lembrar de tomar um remédio à tarde ou pagar uma conta antes do vencimento, só para dar uma noção da sua importância.
Imagine, então, que todo dia de manhã você sai cedo para comprar pão. É uma rotina. A sua memória de hábito faz você levantar no mesmo horário, vestir as roupas e seguir pelo caminho certo até a padaria. Certo dia, você percebe que, além de pão, precisa comprar bolacha. Mas você está tão acostumado com a rotina acorda » põe a roupa » escova os dentes » padaria » “me vê cinco pães” » casa que esquece da bolacha. A sua memória de hábito suprimiu a memória prospectiva.
Segundo Diamond, algo parecido acontece em boa parte dos casos de crianças esquecidas no carro. E o risco de uma falha desse tipo se manifestar aumenta quando você está muito estressado, preocupado ou tem dormido pouco.
Para piorar a situação, são necessários pouco minutos para que uma tragédia aconteça. A temperatura no interior de um carro pode aumentar 10 °C em cerca de 10 minutos. Quando o corpo atinge 40 °C ou mais, os riscos de danos aos órgãos aumentam expressivamente, especialmente em crianças. Nelas, o corpo pode esquentar de três a cinco vezes mais rápido que em um adulto, de acordo com a Safe Kids Worldwide.
A função Child Reminder do Waze é uma das várias tentativas da indústria de enfrentar o problema com uma solução tecnológica. Basicamente, o recurso é um lembrete que deve ser habilitado por você que, ao término da viagem, exibe uma notificação sobre a criança no banco traseiro. Há até apps para esse fim.
O sistema que a GM vai colocar nos carros da linha Acadia (não disponível no Brasil) em 2017 faz algo parecido, só que o alerta aparece no painel do veículo junto com um sinal sonoro.
Dispositivos específicos para evitar o esquecimento de crianças nos carros também estão sendo testados. É o caso de cadeiras que combinam sensores com alarmes e até de pulseiras Bluetooth que disparam um sinal quando os pais se afastam alguns metros do filho.
Porém, até agora, nenhuma solução mostrou resultados realmente convincentes. Primeiro porque a indústria está tomando bastante cuidado com essa questão: nenhuma empresa quer ser responsabilizada pela morte de uma criança no carro sob o argumento de que o sensor não funcionou ou algo assim.
Fora isso, os recursos já amplamente disponíveis, com o Child Reminder do Waze, dependem de uma ação do usuário: muita gente pode não se lembrar de ativar a função ou simplesmente ignorá-la por achar que nunca irá precisar dela.
Diante disso, campanhas de conscientização continuam sendo a melhor forma de combater o problema. A Safe Kids Worldwide ressalta que, se as pessoas tiverem ampla ciência de que apenas alguns minutos são necessários para que uma criança morra de hipertermia (elevação da temperatura corporal) ou asfixia dentro de um carro, provavelmente serão mais atentas a isso — da mesma forma que ficamos atentos ao atravessar uma rua, por exemplo.
A Safe Kids Worldwide também aponta alguns truques simples também podem ajudar: