Mineradores sem-teto: o êxodo após a repressão chinesa sobre o bitcoin

Repressão chinesa sobre bitcoin (BTC) e outras criptomoedas causa migração histórica de mineradores; o que isso significa para o futuro do ativo?

Bruno Ignacio
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• Atualizado há 11 meses
Mineradores sem-teto: o êxodo após a repressão chinesa sobre o bitcoin (Imagem: Vitor Pádua/ Tecnoblog)
Mineradores sem-teto: o êxodo após a repressão chinesa sobre o bitcoin (Imagem: Vitor Pádua/ Tecnoblog)

A China, até pouquíssimo tempo atrás, era o lar de mais da metade dos mineradores de bitcoin (BTC) de todo o mundo. Então, em meio a uma série de novas medidas restritivas contra criptomoedas no país, ocorreu algo inédito: grande parte da rede do ativo ficou offline enquanto empresas iniciavam um fenômeno sem precedentes, apelidado de “o grande êxodo de mineradores”.

A mineração de bitcoin é a atividade que mantém a rede descentralizada da principal criptomoeda do mercado, com inúmeras máquinas ao redor do mundo cedendo seu poder de processamento para realizar complexos cálculos, criptografar e registrar as transações da moeda digital em um livro-razão público e transparente chamado blockchain.

É claro que ninguém cede suas máquinas e computadores para criptografar e registrar transações de graça. Os mineradores são recompensados com a geração periódica de novas unidades do ativo digital, se conseguirem processar um dos concorridos blocos de dados com sucesso. Além disso, sobre cada movimentação de bitcoin é aplicada uma taxa administrativa que também lhes é destinada.

É uma atividade que demonstrou tamanho potencial de lucro que gigantescas empresas de tecnologia começaram a dedicar parte de suas operações a ela, enquanto outras foram criadas do zero exclusivamente para minerar bitcoin. Mas manter tantas máquinas e computadores ligados 24 horas por dia e 7 dias da semana é algo que demanda muita energia elétrica. Pela mais básica regra do mundo comercial de se diminuir os custos e aumentar o lucro, a maioria dos mineradores procuram lugares que podem lhes oferecer energia barata.

Mapa de mineração de bitcoin referente a abril de 2021 (Imagem: Reprodução/ CBECI)
Mapa de mineração de bitcoin referente a abril de 2021 (Imagem: Reprodução/ CBECI)

Assim, o lar de múltiplos e gigantescos polos industriais também se tornou o destino favorito de mineradores de bitcoin. Oferecendo eletricidade barata proveniente da queima de carvão, abundante na região, a China se tornou rapidamente a nação onde se concentrava a maior parte da taxa de hash global (unidade de medida referente à mineração de criptomoedas). Enquanto Pequim ignorou o problema por anos, medidas mais drásticas começaram a ser tomadas a partir do final de 2020.

A maior queda da história da rede do bitcoin

Neste ano, o governo chinês se deu conta de algumas coisas. Mineradores, principalmente de empresas estrangeiras, estava usufruindo de sua energia barata enquanto os ganhos do processo eram exportados. Suas metas climáticas começaram a ser afetadas pelo consumo exacerbado de eletricidade em múltiplas províncias cuja matriz energética primária ainda é o carvão. Por fim, a China já está implementando sua própria moeda digital do banco central (CBDC), o chamado iuan digital, e Pequim não quer a presença de criptomoedas privadas no país, uma vez que elas podem concorrer com sua nova tecnologia monetária.

Diante de tantos potenciais motivos, o governo chinês rapidamente começou a reprimir os mineradores de bitcoin do país. Em maio, as autoridades começaram a se posicionar mais severamente contra a mineração e a negociação de criptomoedas ao implementar novas proibições, desencadeando o que foi apelidado pela comunidade cripto de “o grande êxodo de mineradores”. Essa migração em massa ainda está ocorrendo aos poucos, e começa a dar sinais de que empresas finalmente estão encontrando um novo lar para alocar suas milhares máquinas. Um dos principais destinos é os Estados Unidos.

Esse fenômeno pode ter se acentuado a partir de maio, mas vem ocorrendo aos poucos desde o final de 2020. Foi ainda em 2017 que a China proibiu as instituições financeiras e de pagamentos de oferecer serviços relacionados a criptomoedas. Desde então, o país se tornou, teoricamente, um inimigo das moedas digitas, visto que elas apresentam um potencial risco à soberania monetária que o governo federal busca manter sobre a economia local. O bitcoin, por exemplo, poderia fornecer mais liberdade e opções financeiras à população do que Pequim gostaria.

Dito isso, as medidas restritivas foram constantes e graduais. Em outubro de 2020, a China proibiu as pessoas de vender criptomoedas e restringiu empresas nacionais de emitirem suas próprias moedas digitas. Se acordo com dados do Mapa de Mineração de Bitcoin do Centro de Finanças Alternativas da Universidade de Cambridge, foi a partir desse mês que o país começou a perder gradualmente sua participação na mineração do ativo.

O grande êxodo de mineradores de bitcoin

Participação na mineração de bitcoin entre outubro de 2019 e abril de 2021 (Imagem: Reprodução /CBECI)
Participação na mineração de bitcoin entre outubro de 2019 e abril de 2021 (Imagem: Reprodução /CBECI)

Em outubro de 2020, a China era responsável por aproximadamente 67% de toda a mineração de bitcoin do mundo. Esse percentual chegou ao seu auge em setembro de 2019, quando o país registrava mais de 75% de participação na taxa de hash global. A atividade sempre se concentrou em quatro províncias chinesas: Xinjiang, Mongólia Interior, Sichuan e Yunnan. A energia hidrelétrica de Sichuan e Yunnan as tornam polos de energia renovável, enquanto Xinjiang e a Mongólia Interior abrigam muitas das usinas a carvão da China.

Porém, em novembro de 2020, a participação chinesa no mantenimento da rede do bitcoin caiu mais de 12%, começando a dar espaço para o crescimento dos Estados Unidos nesse mercado. No mesmo período, enquanto a China decaía de 67,4% para 55,6% de dominância da mineração de bitcoin, os EUA decolavam de 6,7% para 9,4%.

Nesse momento, o bitcoin estava apenas começando a viver o grande boom que fez o ativo digital tomar os noticiários do mundo inteiro ao longo de 2021. Naturalmente, a repressão chinesa se aprofundou neste ano, enquanto a migração de mineradores também seguiu a passos lentos para outros países. Ainda segundo dados do Centro de Finanças Alternativas da Universidade de Cambridge, que vão somente até abril de 2021, os Estados Unidos já haviam tomado 16,8% da participação mundial na mineração da criptomoeda, enquanto a China seguia caindo, registrando o mínimo histórico de 46% de participação no mesmo mês.

Não existem mais dados concretos a partir daí. Mas o evento que realmente engatilhou o fenômeno inédito de migração em massa de mineradores de bitcoin ocorreu em maio de 2021. Seguindo dados fornecidos pela plataforma de monitoramento de criptomoedas Blockchain.com, a taxa de hash do ativo digital sofreu um golpe sem precedentes: uma queda histórica do pico de 180 exahashes por segundo (EH/s) registrado em meados de maio para o mínimo anual de menos de 85 EH/s no começo de julho.

Taxa de hash global de bitcoin ao longo de 2021 (Imagem: Reprodução/ Blockchain.com)
Taxa de hash global de bitcoin ao longo de 2021 (Imagem: Reprodução/ Blockchain.com)

Essa enorme variação no poder de processamento da rede do bitcoin foi o que denunciou o aceleramento do processo que já havia acontecendo: mineradores na China foram desligados, ou começaram a interromper por completo suas operações voluntariamente antes que as medidas proibicionistas chegassem até eles.

Um dos primeiros eventos que exemplificam o ocorrido aconteceu na metade de junho, quando o governo da província chinesa de Sichuan, uma das principais áreas de mineração de criptomoedas no país devido à sua energia hidroelétrica abundante, emitiu uma ordem para suspender o fornecimento de eletricidade para 26 instalações locais dedicadas à extração de bitcoin (BTC).

Migração é benéfica para o bitcoin no longo prazo

Segundo Daniel Hwang, líder de projetos especiais da f2pool, maior pool de mineração de bitcoin do mundo, esse fenômeno inédito no mundo das criptomoedas serviu principalmente para uma coisa: descentralizar o poder de processamento da rede da criptomoeda de um único país, o que, ao seu ver, é extremamente benéfico no longo prazo.

Ele explicou em entrevista ao Tecnoblog que a China deter mais da metade de toda a taxa de hash global da mineração de bitcoin não é algo positivo para a rede, criptomoeda e para o futuro do mercado financeiro digital de maneira geral. Isso é exemplificado muito claramente pelas mais recentes repressões às moedas digitais implementadas por Pequim. Então, quanto mais geograficamente concentrada se torna a atividade, mais instável será a estrutura do ativo.

Enquanto esse fenômeno pode ter ficado na história da criptomoeda como a maior queda no poder de processamento da rede já registrada, ele também serviu para criar uma estrutura mais descentralizada, independente e robusta, o que pavimenta o futuro do ativo digital.

Descentralização da rede do bitcoin cria uma estrutura mais estável para a criptomoeda (Imagem:
Descentralização da rede do bitcoin cria uma estrutura mais estável para a criptomoeda (Imagem: Dmitry Demidko/Unsplash)

Hwang conta em primeira mão a experiência que passou com seus parceiros. Enquanto a f2pool não é uma empresa que efetivamente compra e instala máquinas de mineração de criptomoedas, ele a descreve como uma “entidade global”, uma plataforma que une múltiplos parceiros em uma única pool para melhorar a probabilidade de se processar um bloco de dados, consequentemente aumentando os ganhos em ativos digitais.

Assim, Hwang conta que muitos de seus parceiros operavam de fato na China até pouco tempo atrás, mas agora buscam se realocar em outros países e retomar suas atividades. Mas o mais interessante é que seu discurso difere um pouco do que a mídia global vem divulgando.

Apesar de ser inegavelmente verídica a perseguição do governo chinês aos mineradores de bitcoin e de outras criptomoedas no país, muitas dúvidas são levantadas sobre como Pequim conseguiria de fato identificar e expulsar tantas empresas em um período tão curto de tempo. O mês de julho foi a janela de tempo mais importante para esse setor. Foi justamente nesse período de um pouco mais de trinta dias que companhias desligaram incontáveis máquinas que sustentavam a rede do bitcoin, obviamente afetando a estabilidade da criptomoeda.

Porém, Hwang esclarece algo muito importante: “Pequim não expulsou efetivamente toda essa gente do país”. De fato, governos provinciais, alinhados com as diretrizes do governo federal de reprimir serviços relacionados ao bitcoin e sua mineração, começaram a cortar a energia de instalações que comprovadamente realizavam a atividade. Do ponto de vista burocrático, a vida dos mineradores também vinha se tornando cada vez mais complicada ao longo dos últimos meses. Por fim, os incentivos energéticos aplicados à indústria de maneira geral também estavam sendo negados a quem poderia puxar eletricidade para minerar a criptomoeda.

Para onde vão os mineradores “sem-teto”?

Mineração de bitcoin (Marco Verch/Flickr)
Mineração de bitcoin (Marco Verch/Flickr)

O “grande êxodo” de mineradores ocorreu também pelo medo das demais empresas presentes no país. Por mais que algumas companhias tiveram suas instalações fechadas, as medidas restritivas não foram tão pesadas como a mídia ocidental apontava, de acordo com Hwang. Porém, elas serviram como gatilho para que os mineradores que operavam na China optassem por organizar internamente seu desligamento temporário e migração para outros países enquanto ainda podiam, antes de surgir complicações com o governo.

Assim, não é surpresa nenhuma que a taxa de hash global despencou mais de 60% entre maio e julho. Porém, já vemos sinais concretos de recuperação e normalização nas atividades dos mineradores de bitcoin. Os dados mais recentes da Blockchain.com indicam que a rede da criptomoeda já opera a quase 130 EH/s, mesmo nível de dezembro de 2020 e de abril de 2021.

Em entrevista à CNBC, Alejandro De La Torre, vice-presidente de outra pool de mineração chamada Poolin, com sede em Hong Kong, afirmou que os mineradores parceiros da plataforma buscaram deixar o país o mais rápido possível para reduzir suas perdas. “Não queremos enfrentar a cada ano algum tipo de nova proibição chegando na China”, disse o executivo. “Portanto, estamos tentando diversificar nossa taxa de hash global de mineração e é por isso que estamos nos mudando para os Estados Unidos e para o Canadá.”

O comentário de De La Torre e o comportamento de seus parceiros mineradores é familiar ao descrito por Hwang e aos que participam da f2pool. O destino final? Incerto dizer, mas a América do Norte parece ser o novo polo de mineração de criptomoedas, com um destaque especial para o estado americano do Texas, que vem oferecendo energia barata e trazendo incentivos para esse setor emergente no país, mesmo diante da crescente preocupação regulatória que ronda o Congresso, que mais recentemente aprovou novos impostos sobre ativos digitais.

Estados Unidos é um dos principais destinos dos mineradores de bitcoin (Imagem: Jernej Furman/ Flickr)
Estados Unidos é um dos principais destinos dos mineradores de bitcoin (Imagem: Jernej Furman/ Flickr)

Mesmo assim, o destino parece sólido. Há espaço físico, energia barata e abertura política para que múltiplas empresas, que antes estavam sem lar, se instalem e retomem suas atividades.

Cazaquistão é destino mais próximo e acessível

Didar Bekbauov dirige a Xive, uma empresa que fornece serviços de hospedagem para mineradores internacionais. A companhia também vende o equipamento especializado necessário para a mineração de bitcoin e outras criptomoedas. Em entrevista ao Tecnoblog, o CEO da companhia afirmou que “perdeu a conta” de quantos clientes mineradores entraram em contato com eles buscando ajuda no processo migratório da China para outros países.

Sua experiência também revela o mesmo que Hwang descreveu. “Um minerador de bitcoin nos disse que apenas as usinas de eletricidade do governo restringiram a mineração, enquanto as privadas continuarão a atendê-los”, disse Bekbauov. “Mas a maior parte da eletricidade é gerada por usinas do governo, então as empresas terão que se mudar”, concluiu.

Com sede no Cazaquistão, o presidente da Xive destacou que o país vizinho da China se tornou também outra opção popular para os mineradores sem-teto chineses. Por oferecer energia fóssil de baixo custo e baratear o processo de transporte pela proximidade geográfica, a região chamou muitas empresas ao longo de julho e agosto. Contudo, parte delas decidiram se instalar permanentemente, enquanto outras usaram o país como base temporária para então continuar sua viagem à América do Norte.

Bitcoin mais sustentável?

Além das mudanças positivas na estrutura da rede do bitcoin, o processo de descentralização e migração em massa da China também possibilitou outra grande vantagem para a criptomoeda: mudar sua matriz energética dominante. Enquanto o preço do bitcoin decolava em 2021, as pessoas começaram a questionar sobre a sustentabilidade do ativo digital. A pressão sobre a imagem das empresas investidoras foi suficiente para que a Tesla suspendesse a opção de pagamentos na criptomoeda apenas um mês após implementá-la.

Bitcoin poderia se tornar mais sustentável (Imagem: Executium/ Unsplash)
Bitcoin poderia se tornar mais sustentável (Imagem: Executium/ Unsplash)

Assim, uma vez que a migração se tornou quase que mandatória, os mineradores se viram com a oportunidade de limpar o impacto ambiental de suas atividades e a imagem do criptoativo ao se instalarem em regiões que usam energia limpa. Nesse sentido, os Estados Unidos e Canadá são dois dos destinos favoritos que fornecem eletricidade proveniente de usinas nucleares e hidroelétricas.

Para falar sobre isso, o Tecnoblog entrevistou também o porta-voz e diretor de marketing da provedora de serviços em blockchain Hathor Labs, Guto Martino. Para ele, essa janela de oportunidade é importante, mas requer os devidos incentivos. Afinal, assim como em qualquer modelo comercial, os mineradores querem gastar o menos possível para obter o máximo lucro.

Por isso, Martino explica que um minerador pode de fato optar por se instalar em regiões que fornecem energia limpa e realmente contribuir para um futuro mais verde para o bitcoin. Mas contar com a simples “boa vontade” e consciência ambiental das empresas é algo ingênuo de se fazer. Por isso, ele acredita que é importante incentivar essa transição, exemplificando com o que sua companhia já faz com a “Hathor Green”, programa que bonifica mensalmente mineradores de bitcoin com um bônus na criptomoeda nativa HTR ao comprovarem que usam eletricidade limpa.

Por mais que a rede do bitcoin tenha sofrido um dos maiores golpes de sua história e que seus mineradores tenham vivenciado algo inédito, os lados negativos já foram sentidos e superados. Agora, o bitcoin tem a chance de ser repensado para um futuro mais verde, mais estável e mais robusto, abrindo as primeiras portas para uma utilização prática global mais palpável. Seria a criptomoeda realmente a “moeda do futuro”?

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Bruno Ignacio

Bruno Ignacio

Ex-autor

Bruno Ignacio é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero. Cobre tecnologia desde 2018 e se especializou na cobertura de criptomoedas e blockchain, após fazer um curso no MIT sobre o assunto. Passou pelo jornal japonês The Asahi Shimbun, onde cobriu política, economia e grandes eventos na América Latina. No Tecnoblog, foi autor entre 2021 e 2022. Já escreveu para o Portal do Bitcoin e nas horas vagas está maratonando Star Wars ou jogando Genshin Impact.

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