Banimento do Telegram gera polêmica e divide especialistas

Multa de R$ 100 mil para quem burlar bloqueio e punição a usuários comuns preocupam; postura do Telegram agrava situação

Giovanni Santa Rosa
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Logotipo do Telegram

Controversa, sombria, adequada. Esses são alguns dos termos usados por especialistas ouvidos pelo Tecnoblog para definir, criticar e elogiar a decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes. Nesta sexta-feira (18), o magistrado determinou o bloqueio do aplicativo de mensagens Telegram no Brasil por não cooperar com investigações sobre fake news.

A decisão do ministro responde a um pedido da Polícia Federal e vem depois de várias intimações ao Telegram, todas elas sem resposta. Provedores de internet precisarão cortar o acesso ao aplicativo, e lojas de aplicativos precisarão removê-lo de suas listagens. Quem tentar burlar os bloqueios pode ser processado e multado em até R$ 100 mil.

O advogado Adriano Mendes, especialista em direito digital da Assis e Mendes, diz que a determinação tem base legal. “O Marco Civil prevê esse tipo de ação”, explica ele em conversa com o Tecnoblog.

Carlos Affonso de Souza, diretor do ITS Rio, lembra que o alcance do Marco Civil está em discussão no próprio STF no momento. Os artigos do texto que tratam do tema podem gerar a suspensão das atividades de tratamento de dados, mas talvez não as atividades do aplicativo como um todo.

Até agora, os ministros Edson Fachin e Rosa Weber se manifestaram contra o uso do Marco Civil para bloquear aplicativos. Moraes seria o terceiro a votar, mas pediu vista e suspendeu o julgamento.

O advogado Fabrício da Mota Alves, sócio do Serur Advogados, diz ao Tecnoblog que a determinação é controversa. Ele explica que o texto presume que há ilegalidades no Telegram porque o aplicativo não responde às solicitações da Justiça. Portanto, há uma tentativa de georreferenciar os serviços ofertados no Brasil pela internet.

“Pelo critério usado, só podem ofertar serviços no Brasil aplicativos ou empresas que tenham sede, filial, representação ou canais de comunicação com autoridades brasileiras.” Alves diz que isso é problemático. “Só aí você elimina 80%, 90% das aplicações disponíveis nas lojas oficiais, porque são de empresas que não têm condição ou interesse em ter uma representação no Brasil. São milhares de soluções e serviços.”

Determinação afeta usuários comuns

Mendes se diz contrário a esse tipo de determinação. “Neste caso, o causador do dano é o ‘Allan dos Santos’ e por causa dele uma série de pessoas e até negócios serão afetados”, comenta. “É como cortar a água e a energia de toda a cidade porque uma casa deixou uma torneira aberta e a luz acesa, não aceitando as ordens para desligar.”

As consequências para usuários “comuns” do Telegram também é um ponto ressaltado por Gustavo Rodrigues, coordenador de políticas públicas e pesquisador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (Iris).

“Há pesquisas indicando que o Telegram está presente em mais de 50% dos smartphones do Brasil. Embora saibamos que condutas ilícitas aconteçam na plataforma, a maior parte dos usuários se vale dela para finalidades legítimas, como comunicação interpessoal, consumo de notícias e entretenimento”, comenta Rodrigues em conversa com o Tecnoblog.

O pesquisador lembra que, em 2015 e 2016, o STF entendeu que o impacto do bloqueio do WhatsApp — também determinado por descumprir ordens judiciais — justificaria uma suspensão do seu bloqueio. Por isso, ele acredita que a decisão não se sustentará.

Francisco Brito Cruz, diretor do instituto de pesquisa InternetLab, diz ao Tecnoblog que a determinação abre um precedente negativo. “Por mais que estejamos falando de um caso que envolve cumprimento de ordem judicial, temos que lembrar que essa decisão tem impacto em milhões de usuários que usam o Telegram para fins legítimos”, ele pondera.

Alves também acha que o bloqueio não terá a eficácia pretendida. “Os agentes criminosos, que já militam à margem da lei, portanto não estão preocupados com essa decisão, vão buscar outras ferramentas para continuar praticando suas atividades ilícitas.”

A questão, porém, parece ir além disso.

Telegram adotou embate, e STF quer mandar recado

Mendes diz que a intenção do Supremo é mandar uma mensagem clara aos serviços de que, se eles não estiverem alinhados com o Judiciário, sofrerão impactos. Essa postura tem em vista as eleições deste ano, quando se espera que situações envolvendo fake news e informações tendenciosas se proliferem.

A política parece ser mesmo a senha para entender o embate entre a Justiça brasileira e o Telegram.

“O Telegram desenhou desde o início de suas operações no Brasil uma estratégia de antagonismo com o judiciário brasileiro que iria gerar consequências”, explica Cruz, do InternetLab. “E a consequência chegou, politicamente falando.”

“A gente tem um casamento de um Supremo atuante e polêmico de um lado, que está determinado para fazer valer o inquérito, e, do outro lado, um aplicativo irascível. Ele sequer estabeleceu um canal de resposta, mesmo que seja uma contestação, às ordens da Justiça brasileira, e daí é um barril de pólvora, e a panela destampou. É uma situação insustentável do ponto de vista político e a responsabilidade também é do Telegram que adotou essa postura.”

Heloísa Massaro, diretora do InternetLab, lembra ainda que o Telegram se recusou a estabelecer um diálogo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para adotar medidas de combate a fake news, o que agravou as tensões entre o poder público e o aplicativo.

Ela destaca que o Telegram tem adotado cada vez mais ferramentas que o aproximam de uma rede social.

“Temos a instalação de funções como canais que funcionam quase como feeds de redes sociais. Apesar disso, não há uma discussão aprofundada sobre moderação de conteúdo no app”, pondera.

Outros advogados defendem a postura adotada por Moraes.

Eduardo Ramires, sócio-fundador da Manesco Advogados, considera que a decisão é absolutamente legítima e fundamentada. “A medida adotada por Alexandre de Moraes é exercer os poderes republicanos nacionais para que um instrumento de comunicação responda com uma atenção à lei brasileira, à soberania e democracia do Brasil”, diz o advogado em comentário enviado à reportagem.

Adib Abdouni, advogado constitucionalista e criminalista, vai nessa mesma linha. “A partir do momento em que se mostra presente o agravamento da omissão dos responsáveis pela administração da referida plataforma digital em cooperar com a Justiça, a decisão mostra-se adequada”, comenta ao Tecnoblog.

Abdouni considera que a determinação ajuda a repelir a disseminação de manifestações que saiam do campo da liberdade de expressão e entrem em fake news, discursos de ódio, propaganda nazista ou venda de certificados de vacinação.

Na prática, banir Telegram é mais difícil do que parece

Bruno Bioni, diretor do Data Privacy Brasil, retoma o histórico de bloqueios de aplicativos no Brasil, como o Secret e o WhatsApp.

O Secret, caso você não se lembre dele, era um app de mensagens anônimas usado para bullying e difamação. Ele acabou proibido no Brasil — Apple, Google e Microsoft foram obrigadas retirar o aplicativo de suas lojas.

Já o WhatsApp, entre 2015 e 2016, foi suspenso algumas vezes, com seu acesso cortado por operadoras de telefonia.

“Essa decisão [do Telegram] aprende com esse histórico de bloqueios que já existe no Brasil, porque ela combina todas essas técnicas”, explica Bioni ao Tecnoblog. “Então ela tem um grau de maior efetividade frente a outros bloqueios que já existiram no Brasil.”

Mendes explica que a Anatel vai determinar que os backbones dos provedores bloqueiem os IPs ligados ao Telegram. Porém, a situação pode ser mais complexa do que uma simples ordem.

“O problema é que esses IPs e servidores podem ter mais serviços compartilhados e ativos. Se a ordem for cumprida, tudo que estiver no mesmo endereço de IP ficará sem comunicação de ida e volta para os acessos do Brasil”, diz o advogado.

Além disso, o próprio Telegram pode dar um jeitinho. “Se o Telegram mudar os endereços de IP ou dos servidores, automaticamente todos as mensagens voltarão a funcionar.”

Cruz acha que não faz sentido pensar se o bloqueio vai “dar certo” ou “fracassar”. Ele lembra que a internet é uma rede descentralizada, em que subterfúgios são comuns.

Mesmo assim, como atinge lojas de aplicativos, os downloads diários do Telegram certamente cairão, já que nem todo mundo sabe instalar um arquivo APK ou usar uma VPN.

“Estamos falando de uma situação que, na melhor das hipóteses, pode gerar uma situação de instabilidade para uma série de usuários do Telegram.“

Multa para quem driblar bloqueio preocupa

Você deve se lembrar das vezes em que o WhatsApp foi bloqueado no Brasil. Souza, do ITS Rio, vê semelhanças e diferenças entre os dois casos.

“Por um lado ela repete a estratégia de atingir as lojas de aplicativos, impedindo o download do app, e também determina que empresas de conexão à Internet impeçam o acesso ao Telegram”, explica Souza. “Mas por outro lado a decisão traz uma inédita sanção para os usuários que se valerem de meios tecnológicos para burlar a determinação judicial.”

O texto da determinação traz o seguinte trecho:

“As pessoas naturais e jurídicas que incorrerem em condutas no sentido de utilização de subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações ocorridas pelo TELEGRAM estarão sujeitas às sanções civis e criminais, na forma da lei, além de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais)”.

Ou seja: quem usar VPN para entrar no Telegram poderá ser multado e processado. Mendes, porém, acha que este texto é muito genérico e dificilmente será aplicado.

Alves também não crê em punições. “Ainda que essas pessoas burlem, como você vai identificar? A VPN é feita exatamente para impedir a identificabilidade.”

Mesmo assim, Cruz critica duramente essa possibilidade. Para ele, a previsão de multa é “desequilibrada”, “errada” e “negativa”.

“Uma coisa é você direcionar isso aos envolvidos no inquérito, que aparecem na investigação que originou a ordem judicial. A outra coisa é você, a partir de um inquérito sigiloso, que possivelmente não teria sua decisão divulgada, ordenar uma multa que pode ser aplicada e oponível a qualquer brasileiro”, comenta o diretor do InternetLab. “Não me parece uma determinação proporcional. Me preocupa essa parte.”

Colaboraram: Bruno Ignacio, Pedro Knoth.

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Giovanni Santa Rosa

Giovanni Santa Rosa

Repórter

Giovanni Santa Rosa é formado em jornalismo pela ECA-USP e cobre ciência e tecnologia desde 2012. Foi editor-assistente do Gizmodo Brasil e escreveu para o UOL Tilt e para o Jornal da USP. Cobriu o Snapdragon Tech Summit, em Maui (EUA), o Fórum Internacional de Software Livre, em Porto Alegre (RS), e a Campus Party, em São Paulo (SP). Atualmente, é autor no Tecnoblog.

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