O curioso caso do Freedom Phone, celular para conservadores contra “censura”
Freedom Phone custa US$ 500, mas é muito parecido com celular chinês de US$ 120; PatriApp Store, loja de apps "sem censura", poderia expor usuário a malware
Freedom Phone custa US$ 500, mas é muito parecido com celular chinês de US$ 120; PatriApp Store, loja de apps "sem censura", poderia expor usuário a malware
O que é o Freedom Phone? Para alguns, é a promessa de ter uma vida online sem censura, longe das estruturas de poder erguidas pelo Google, Apple, Facebook e outras empresas. Para outros, é só um celular Android chinês de US$ 120 sendo revendido por US$ 500 para se aproveitar de conservadores que não entendem muito de tecnologia. Vamos tentar entender isso melhor.
O Freedom Phone se encaixa em um contexto no qual conservadores famosos alegam que redes sociais como Facebook e Twitter reduzem o alcance de suas postagens. Essas empresas não teriam medo de apagar posts de um presidente – caso de Jair Bolsonaro – nem mesmo de banir totalmente o perfil, como foi com Donald Trump. Por isso, algumas pessoas tentam buscar maior “liberdade de expressão” recorrendo a serviços alternativos como Parler e Gettr.
Na última quarta-feira (14), o Freedom Phone começou a chamar bastante atenção – é quando Erik Finman passou a divulgar o aparelho no Twitter. Ele alega ter se tornado um milionário por ter comprado US$ 1 mil em bitcoin em 2012; a criptomoeda se valorizou fortemente desde então.
“Os chefões da big tech estão violando sua privacidade, censurando sua voz, e acho que isso é muito errado”, diz Erik no vídeo de divulgação. A resposta a tudo isso, claro, é o Freedom Phone, que teria estes diferenciais:
O site oficial dá a entender que o FreedomOS é um sistema operacional novo, mas o Tecnoblog encontrou vários sinais indicando que esta é uma leve modificação do LineageOS – sistema livre e de código aberto baseado no Android.
Um desses sinais é o ícone da câmera, que aparece nas imagens de divulgação do Freedom Phone – ele é idêntico ao que o LineageOS usa. Esse símbolo é diferente da Google Camera, assim como dos apps de câmera presentes em distribuições do Android focadas em privacidade (como o GrapheneOS ou CalyxOS).
O mesmo vale para outros ícones: Mensagens, Calculadora, Agenda, E-mail, Contatos, Arquivos, Música – todos são os mesmos símbolos utilizados pelo LineageOS.
Há até mesmo um aplicativo, o AudioFX, que é feito especificamente para essa versão do Android. Ele não aparece nas imagens de divulgação do Freedom Phone, mas consta em um vídeo de Anna Khait, comentarista conservadora que divulgou o celular numa live do YouTube:
Para comparar, estes são os ícones do LineageOS:
Outro sinal é o Trust, listado como um dos diferenciais no Freedom Phone. Um recurso de segurança com o mesmo nome foi lançado no LineageOS em 2018, com o objetivo de melhorar a privacidade e segurança dos usuários. Ele avisa se o sistema está atualizado, facilita ativar a criptografia, e permite desativar acesso a novos dispositivos USB quando o celular está bloqueado (para impedir invasões).
Vale notar que existem algumas diferenças bem pequenas entre o “FreedomOS” e o LineageOS: por exemplo, a tela de boot mostra o logotipo do próprio Freedom Phone. Fora isso, ambos os sistemas parecem idênticos – inclusive, eles não vêm com aplicativos do Google por padrão, nem mesmo a Play Store. (É possível adicionar a loja durante a instalação do LineageOS.)
OK, então o Freedom Phone talvez esteja rodando o LineageOS – mas o sistema é bem bacana, e leva versões atuais do Android para diversos celulares antigos. Esse aparelho para conservadores talvez valha o preço?
Aí está outro problema: o site oficial do Freedom Phone conta com dez botões “Compre agora”, mas não revela a ficha técnica do aparelho. Por que alguém deveria pagar US$ 500 por um celular misterioso?
Algumas especificações foram divulgadas em um post patrocinado no site Gateway Pundit, mas elas também carecem de informações mais detalhadas:
O problema é que… essa ficha técnica deve estar errada. No vídeo de Anna Khait, é possível ver a inscrição “48MP AI Camera” na parte de trás do aparelho, então a câmera não teria 32 MP como diz a lista acima:
Usuários no Twitter repararam que o Freedom Phone tem um design terrivelmente semelhante ao de celulares da chinesa Umidigi. E Erik Finman, responsável pelo projeto, confirma ao Daily Beast que a Umidigi é de fato a fabricante.
A empresa tem dois modelos com a inscrição “48MP AI Camera” na traseira: o Umidigi A9 Pro e A9 Pro 2021. Eles são basicamente o mesmo smartphone no que se trata de design, dimensões, peso, tela (Full-HD+ de 6,3 polegadas), processador (MediaTek Helio P60) e bateria (4.150 mAh):
A diferença é que o modelo mais recente roda Android 11 e vem só na versão 8 GB + 128 GB; enquanto o A9 Pro do ano passado roda Android 10 e começa em 4 GB de RAM e 64 GB de armazenamento.
Tanto o Umidigi A9 Pro como o A9 Pro 2021 podem ser encontrados por cerca de US$ 120 no Alibaba; os preços dependem do vendedor, e são mais baixos para quem compra por atacado para revender.
Tá, algumas pessoas vão pagar US$ 500 por um celular que poderia ser adquirido direto da China por muito menos. Mas o Freedom Phone tem a PatriApp Store, que promete não banir nenhum app. No início do ano, a rede social Parler foi removida pela Apple e pelo Google de suas lojas para iPhone e Android após a invasão ao Capitólio dos EUA.
A questão é que, como estamos falando de Android, (quase) sempre há uma forma de baixar apps fora da Play Store. É o caso do próprio Parler, que segue banido pelo Google mas pode ser obtido via APK pelo site da rede social.
E, se a loja do Freedom Phone não proíbe nenhum app, como ela vai proteger os usuários contra software malicioso? “As lojas do Google e da Apple implementam um processo rigoroso de inspeção de código antes de disponibilizar os aplicativos”, explica Matthew Hickey, especialista em cibersegurança, ao Daily Dot. “E embora não seja à prova de falhas, isso ajuda a evitar que uma ampla gama de malware infecte os dispositivos.”
Um dos argumentos de venda para o Freedom Phone é evitar a “tirania” de gigantes como o Facebook. No entanto, como mostra um vídeo da comentarista Candace Owens, o Facebook e o Instagram estão disponíveis para download na PatriApp Store:
E como aponta Mishaal Rahman, do XDA Developers, a PatriApp Store parece ser basicamente uma versão da Aurora Store: esta loja de código aberto permite acessar os apps da Play Store sem ter uma conta do Google. A AuroraOSS avisa, no entanto, que isso “claramente viola os termos de serviço” do Google.
HAHAHAHAHA. The so-called "uncensorable app store" called "PatriApp Store" on the FreedomPhone is literally just a rebranded Aurora Store (an OOS front-end for the Google Play Store). pic.twitter.com/QQL1lmKIHf
— Mishaal Rahman (@MishaalRahman) July 15, 2021
Então, para resumir, o Freedom Phone provavelmente:
Com tudo isso, para que comprar o Freedom Phone? Ele serve para qual objetivo? Bem, o aparelho pode não beneficiar exatamente quem compra, e sim quem vende. Vários comentaristas conservadores ganham dinheiro através de produtos próprios, como camisetas, canecas, suplementos alimentícios – e, possivelmente, uma comissão na venda desse celular.
Sim, o Freedom Phone tem um programa de afiliados. Funciona assim: eles divulgam o aparelho para seus seguidores junto a um código de desconto, e recebem uma comissão que pode chegar a US$ 50 em cada venda realizada.
Veículos conservadores da mídia nos EUA, como Gateway Pundit e Just The News, estão divulgando o Freedom Phone e oferecendo um cupom de desconto; comentaristas como Jack Posobiec, Dinesh D’Souza, Candace Owens e Anna Khait fizeram o mesmo. Um deles, Saul Anuzis, até posou em uma foto junto a Erik Finman, que teria começado todo o projeto:
Em 2019, Finman lançou uma startup chamada CoinBits, que permite investir valores baixos em bitcoin. Mais recentemente, ele estava investindo na Metal Pay, que prometia criar uma alternativa à criptomoeda Libra (hoje Diem) do Facebook. O rapaz de 22 anos disse ao Business Insider em junho que não está mais envolvido com essa empresa.
O que aconteceu para Finman – que diz ser milionário de bitcoin – apoiar um produto tão suspeito como o Freedom Phone? Por que ele está bloqueando usuários e escondendo dezenas de respostas no Twitter que apontam os problemas desse projeto? O Tecnoblog entrou em contato, mas não obteve resposta.
Atualizado às 12h50