A realidade virtual pode te ajudar a ter sonhos lúcidos

Imagine controlar os sonhos como em um jogo. Estudos sugerem que dá para treinar o cérebro para isso.

Emerson Alecrim
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• Atualizado há 9 meses
Inception

Eu não sei te dizer qual o meu filme preferido. Depende do momento. Mas Inception é sempre um forte candidato: a temática dos sonhos me fascina. Apesar de ser uma obra de ficção, o filme expõe conceitos que têm algum fundo de verdade. É o caso da manipulação dos sonhos, uma arte possível, mas cercada de limitações. É por isso que vários mecanismos vêm sendo estudados para esse fim. Um deles é a realidade virtual.

Um soldado soviético! Ah, é só o cachorro

Quando eu jogava GoldenEye 007 no Nintendo 64, frequentemente terminava as fases com batimentos cardíacos acelerados. Às vezes eu até suava. Cada soldado que aparecia na minha frente era um susto. Toda vez que o Rumble Pak funcionava — o acessório que fazia o joystick vibrar — era uma aflição: significava que eu estava levando tiros.

Logo após a jogatina, se eu fosse imediatamente ao banheiro ou à cozinha, por exemplo, chegava lá tendo a ligeira impressão de que algum soldado soviético estava esperando ali com uma arma em mãos. Coisa do meu estado de vigília no jogo, que precisava de alguns minutos para ser desligado.

É claro que eu sabia que aquilo não passava de uma brincadeira. Mas a parte irracional do cérebro não é muito boa em distinguir uma simulação da realidade: se você estiver imerso em um jogo, aquilo será real para você nos momentos de execução.

GoldenEye 007

Basta terminar o game ou alguém te interromper que a “realidade real” volta, mas alguns resquícios do que você encontrou no mundo virtual podem permanecer por alguns instantes ou, dependendo da frequência com que você joga, surgir mais tarde a partir de algum estímulo. Essa estranha ocorrência tem até nome: Fenômeno de Transferência de Jogo (GTP, na sigla em inglês) — ou efeito Tetris.

O cérebro é uma máquina de simulações

De certa forma, os sonhos também são simulações. O cérebro é muito bom em criá-las. Só que, por padrão, você não exerce nenhum controle consciente sobre o que acontece ali. Na verdade, você nem sabe que está sonhando. Você só percebe que aquilo não é real quando desperta.

A exceção fica para os sonhos lúcidos, aqueles em que você nota que está sonhando. Em um sonho “normal”, você acorda se notar que está sonhando. É como se você tivesse estragado a brincadeira (seja ela assustadora ou não). Mas, se você permanece lá, está tendo um sonho lúcido.

Provavelmente, você já teve algum sonho desse tipo. Vez ou outra eu tenho um e acho fascinante: como eu sei que estou sonhando, posso fazer coisas que no mundo real me deixariam em apuros, como pular de um penhasco (e chegar ao chão fazendo pose de Jaspion) ou dizer que o Windows Phone é uma merda lá no Tecnogrupo (calma, brincadeirinha).

Sonho

Se repararmos bem, sonhos lúcidos têm algumas semelhanças com os games. Se algo der errado — tipo, você morreu —, você simplesmente volta para a vida real. Se você se cansar, também. Além disso, você tem controle sobre as decisões, ainda que as suas opções de ação sejam limitadas.

Há mais uma coisa que liga jogos aos sonhos: o tal do efeito Tetris também pode se manifestar quando você estiver sonhando. A psicóloga Angelica B. Ortiz de Gortari, da Universidade de Liège, é uma grande estudiosa do GTP. Em experimentos com voluntários, ela descobriu que muitos jogadores visualizam cenas de games nos sonhos ou realizam movimentos com os dedos associados ao uso do joystick.

Não é mera coincidência. Jayne Gackenbach, psicóloga da Universidade MacEwan, descobriu com jogadores frequentes que o mundo fictício e controlável dos games pode fazer uma pessoa encarar sonhos sob a mesma óptica das jogatinas. Essa percepção dá a entender que, para o cérebro, sonhos e ambientes virtuais são a mesma coisa do ponto de vista prático.

Vida real + realidade virtual

O sonho é meu e eu faço o que quiser — ou quase

Isso significa que um jogador regular pode ter sonhos lúcidos com muito mais frequência que uma pessoa que não joga. É como se os games treinassem o cérebro para assumir o controle da realidade. Se em um jogo você consegue controlar o que faz, o cérebro entende que dá para fazer o mesmo nos sonhos.

Como um sistema de realidade virtual consegue criar ambientes bastante imersivos, Gackenbach acredita que dispositivos como o Oculus Rift podem ser mais eficientes na tarefa de aumentar a lucidez dos sonhos. De fato, voluntários que participaram de experimentos conduzidos pela psicóloga usando Oculus Rift relataram uma frequência maior de sonhos lúcidos, tal como os jogadores.

Oculus Rift

Se a realidade virtual pode levar ao surgimento de sonhos lúcidos, será que também consegue induzir o contexto deles? Bom, esse é um dos vários pontos sobre o assunto que ainda são alvo de estudos. Mas dá para presumir que sim. Segundo Gackenbach, quanto mais você acha que está em uma realidade, mais a sua memória em relação a outros ambientes vivenciados é estimulada. Assim, o que você faz em um mundo virtual poderia mesmo servir de treinamento para o controle de um sonho.

As pesquisas sobre o assunto continuam. Não para chegar a algo perto do que é retratado em Inception, mas para ajudar na compreensão do que acontece dentro das nossas cabeças. Talvez, no final das contas, os estudos também apontem com precisão quais as implicações negativas dessa invasão de mundos virtuais.

Partindo para uma visão otimista, eventualmente, as conclusões tiradas daí poderão abrir caminho para a criação de programas que tratam traumas psicológicos ou problemas mentais com mais eficácia, afinal, várias nuances dos sonhos ainda são misteriosas, mas sabemos há tempos que eles dizem muito sobre o que se passa na vida de cada indivíduo.

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Emerson Alecrim

Emerson Alecrim

Repórter

Emerson Alecrim cobre tecnologia desde 2001 e entrou para o Tecnoblog em 2013, se especializando na cobertura de temas como hardware, sistemas operacionais e negócios. Formado em ciência da computação, seguiu carreira em comunicação, sempre mantendo a tecnologia como base. Em 2022, foi reconhecido no Prêmio ESET de Segurança em Informação. Em 2023, foi reconhecido no Prêmio Especialistas, em eletroeletrônicos. Participa do Tecnocast, já passou pelo TechTudo e mantém o site Infowester.

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