Como a telemedicina avança no Brasil e vai além da pandemia

O Brasil abraçou a telemedicina para combater a COVID-19, mas o atendimento médico remoto pode fazer muito mais por nós

Emerson Alecrim
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• Atualizado há 1 ano e 5 meses
Telemedicina no Brasil

Você procura um lugar calmo na sua casa, desbloqueia o celular, abre um aplicativo e, em questão de segundos, a pessoa do outro lado aparece na tela. Não é um colega de trabalho ou o primo que mora em outra cidade, mas o médico. Bem-vindo à era da telemedicina.

Se consultas médicas pela internet soam como uma ideia futurista para você, saiba que esse conceito já é realidade, inclusive no Brasil. Uma realidade fortemente pautada pela pandemia do novo coronavírus (COVID-19), é verdade. Também é verdade, porém, que o caminho para essa modalidade da área da saúde vem sendo preparado há tempos.

Ainda há desafios a serem superados, mas a telemedicina tem tudo para ser transformadora para o Brasil, beneficiando pacientes e sistemas de saúde, sejam eles públicos ou privados. Você vai entender o porquê nas próximas linhas.

Telemedicina no Brasil de hoje

A razão pela qual a telemedicina ganhou tanto espaço no noticiário durante as últimas semanas é um tanto óbvia: a modalidade foi autorizada pelo governo por ser uma forma de enfrentamento à COVID-19.

Trata-se de uma estratégia que visa diminuir a exposição ao coronavírus (SARS-CoV-2). Um paciente com COVID-19 que manifesta sintomas leves evitará que outras pessoas sejam infectadas se receber orientações médicas a distância.

Da mesma forma, o indivíduo que evita idas a consultórios, clínicas ou hospitais para tratar de outros problemas de saúde estará menos exposto ao coronavírus, afinal, as chances de contaminação aumentam nesses ambientes.

É claro que há situações em que a atenção médica presencial é mandatória. É o caso, por exemplo, de quem tem dificuldade para respirar. A telemedicina entra em cena nas situações em que o atendimento pode ser oferecido remotamente sem riscos ao paciente.

Não são poucos, viu? Prova disso está no ofício que o Conselho Federal de Medicina (CFM) enviou, em 19 de março, ao então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. No documento (PDF), a entidade reconhece três formas de telemedicina, todas válidas durante a fase de pandemia de COVID-19:

  • Teleorientação: os profissionais da medicina realizam, remotamente, a orientação e o encaminhamento de pacientes em isolamento;
  • Telemonitoramento: permite orientação e supervisão médica para monitoramento ou vigência à distância de parâmetros de saúde e/ou doença;
  • Teleinterconsulta: serve exclusivamente para troca de informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico.

O efeito dessa abertura já é perceptível. Nas últimas semanas, programas de telemedicina passaram a fazer parte da rotina de operadoras de planos de saúde, redes de clínicas particulares, hospitais privados e até de serviços públicos por meio de iniciativas como o TeleSUS.

Se orientações médicas sobre determinados problemas de saúde puderem ser passadas remotamente, o número de pessoas presentes em prontos-socorros tenderá a diminuir, facilitando o atendimento de quem está em situação mais urgente.

Não há milagres, obviamente. Nos serviços de saúde, é unanimidade que, quando o atendimento remoto esbarrar em algum tipo de limitação ou ineficiência, o paciente deve ser encaminhado para o consultório médico.

Formatos de telemedicina - Teleorientação: os profissionais da medicina realizam, remotamente, a orientação e o encaminhamento de pacientes em isolamento; Telemonitoramento: permite orientação e supervisão médica para monitoramento ou vigência à distância de parâmetros de saúde e/ou doença; Teleinterconsulta: serve exclusivamente para troca de informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico.
Imagem: Henrique Pochmann/Tecnoblog

Como a telemedicina funciona

O conceito é relativamente antigo, mas, no contexto atual, podemos entender a telemedicina como a prestação de atendimento médico remoto por meio de tecnologias de transmissão de áudio e imagem. Isso significa que até ferramentas como Skype, Zoom e Hangouts podem ser usados para esse fim.

No dr.consulta, atendimentos vêm sendo realizados por chamadas de vídeo no WhatsApp. Bruno Reis, diretor médico da empresa, revela ao Tecnoblog que a ferramenta começou a ser usada em 11 de março para orientações sobre sintomas de gripe ou COVID-19 e, no dia 25 do mesmo mês, passou a cobrir o dr.consulta online, serviço de telemedicina que já conta com mais de 300 médicos.

Porém, o uso de soluções dedicadas ao segmento ganha força no Brasil. Um exemplo vem da Amparo Saúde, startup da área da saúde que, além de trabalhar com uma rede própria de clínicas, disponibiliza uma plataforma de telemedicina para operadoras como Amil, SulAmérica e Seguros Unimed.

Ao Tecnoblog, o médico Gentil Alves, diretor de relações com o mercado da Amparo Saúde, explica que a empresa surgiu em 2017 com foco em atenção primária, modelo hierarquizado e organizado de atendimento que, como tal, evita que o paciente passe por consultas ou procedimentos desnecessários.

Para viabilizar esse objetivo, a Amparo desenvolveu uma série de soluções próprias do decorrer dos últimos 18 meses, inclusive para atendimento remoto — antes da pandemia, já havia expectativa de abertura do governo e do CFM para a telemedicina. Entre as tais soluções estão sistemas de agendamento de consultas, prontuário eletrônico, acompanhamento do paciente e, claro, a ferramenta para consulta remota.

Fica evidente, portanto, que não basta colocar médico e paciente em contato. É preciso que uma série de ferramentas de apoio garanta um atendimento completo e seguro, afinal, o sigilo médico também precisa ser considerado.

Especialidades que “combinam” com atendimento remoto

Em princípio, a telemedicina pode funcionar com praticamente todas as especialidades médicas. Tudo depende do que precisa ser avaliado. O dr. Gentil Alves explica, por exemplo, que uma consulta com um neurocirurgião pode precisar de um exame de tomografia, assim como uma avaliação oftalmológica pode depender de equipamentos que só existem no consultório. Em casos como esses, o atendimento presencial é indispensável.

Em contrapartida, clínica geral e médico da família são exemplos de especialidades que se beneficiam sobremaneira da telemedicina, até porque elas podem resolver grande parte das queixas dos pacientes sem que seja necessário encaminhá-los a especialistas.

Como não é possível fazer avaliação física, uma entrevista devidamente conduzida pelo médico para analisar sintomas e sinais é fundamental. “Ouvir atentamente e fazer uma boa inspeção por vídeo auxiliam no raciocínio clínico“, diz o médico Bruno Reis.

Orientação médica a distância (foto: dr.consulta)
Orientação médica a distância (foto: dr.consulta)

Hoje, o dr.consulta trabalha com cerca de 20 especialidades via telemedicina, mas duas se sobressaem: clínica médica e psiquiatria. De acordo com Reis, o atual momento de pandemia tem levado a uma grande procura por atendimentos relacionados aos sintomas da COVID-19 e potencializado transtornos de ansiedade e depressão.

Mas atendimentos um pouco mais sofisticados, com especialistas, também podem ser oferecidos, dependendo das circunstâncias. Na Amparo Saúde, Alves explica que um paciente pode, por exemplo, enviar uma foto de uma lesão suspeita durante a consulta para que, remotamente, o dermatologista avalie a necessidade de um exame clínico ou procedimento específico.

Em um futuro não muito distante, a telemedicina será expandida por força da própria tecnologia. Entre médicos que já conhecem a modalidade, fica cada vez mais claro que até recursos existentes em wearables, como medidor de batimentos cardíacos e oxímetro (que deve chegar ao Apple Watch neste ano, para você ter ideia), poderão servir de apoio para diagnósticos ou monitoramentos.

Como ficam receitas e atestados médicos?

Se a consulta é remota, como o paciente recebe receita para medicamentos? O médico pode emitir uma prescrição eletrônica, desde que o documento receba uma assinatura digital por meio de um certificado ICP-Brasil.

O paciente pode apresentar a receita a partir do seu celular ou encaminhá-la por e-mail à farmácia, por exemplo. Cabe ao farmacêutico validar a assinatura digital no site do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI). O CFM alerta que as farmácias não são obrigadas a aceitar o receituário digital, por isso, vale pesquisar antes de sair para comprar os remédios.

Validador de documentos digitais do ITI
Validador de documentos digitais do ITI

De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a assinatura digital é obrigatória para receitas de controle especial e nas prescrições de antimicrobianos.

Também existe a possibilidade de a receita ser enviada ao paciente por serviço de entrega. É o que faz o dr.consulta para receitas amarelas (entorpecentes) e azuis (psicotrópicos) na cidade de São Paulo — estas não podem ser emitidas com certificação ICP-Brasil.

Ah, sim: a assinatura digital também vale para atestados médicos.

A telemedicina veio para ficar?

O Ministério da Saúde deu sinal verde para o exercício da telemedicina no Brasil em 20 de março de 2020, com a Portaria nº 467. O documento deixa claro, no entanto, que essa decisão tem “caráter excepcional e temporário”.

Em 15 de abril, foi a vez do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assinar a Lei nº 13.989, que “dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2)“.

Mas, e depois da pandemia?

Essa não é uma resposta fácil. Quando Bolsonaro sancionou a lei que autoriza a telemedicina, vetou o artigo que permitiria o exercício da modalidade depois da fase de enfrentamento da COVID-19. Na argumentação do Planalto, essa atividade, para ser permanentemente autorizada, precisa ser regulamentada por lei.

Só que essa história vai além disso. Em fevereiro de 2019, o CFM chegou a publicar a Resolução nº 2.227 (PDF), que definia regras para a telemedicina no Brasil, mas revogou o documento dias depois por pressão de entidades médicas.

Telemedicina (estetoscópio + teclado)

Nos bastidores, parece mesmo haver conflitos. Há desde questionamentos sobre se a telemedicina pode garantir tratamento adequado a pacientes até um aparente lobby: grupos de médicos estariam preocupados com a possibilidade de a modalidade aumentar a concorrência entre eles.

O Tecnoblog tentou contato com o CFM para obter posicionamentos sobre esse e outros aspectos, mas não obteve retorno.

Enquanto isso, a Resolução CFM nº 1.643 continua sendo a base para a prática atual. O problema é que essa resolução foi liberada em 2002 (para você ver como o assunto é antigo) e, consequentemente, é “genérica” demais para as necessidades atuais.

Do ponto de vista da tecnologia, a telemedicina já é viável. Poucos problemas técnicos são relatados atualmente. No sistema da Amparo Saúde, por exemplo, as falhas quase sempre estão relacionadas à instabilidade do acesso à internet dos pacientes e mesmo esses problemas não são numerosos.

Fica claro, portanto, que o assunto terá que ser discutido seriamente em um futuro próximo. De certa forma, a pandemia vem servindo com um grande experimento para a telemedicina no Brasil e, ainda que ajustes precisem ser feitos, já deixa evidente que a modalidade traz mais benefícios do que desvantagens.

A telemedicina veio para ficar, sim. Só falta ser colocada no papel.

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Emerson Alecrim

Emerson Alecrim

Repórter

Emerson Alecrim cobre tecnologia desde 2001 e entrou para o Tecnoblog em 2013, se especializando na cobertura de temas como hardware, sistemas operacionais e negócios. Formado em ciência da computação, seguiu carreira em comunicação, sempre mantendo a tecnologia como base. Em 2022, foi reconhecido no Prêmio ESET de Segurança em Informação. Em 2023, foi reconhecido no Prêmio Especialistas, em eletroeletrônicos. Participa do Tecnocast, já passou pelo TechTudo e mantém o site Infowester.

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