A cultura da Nintendo de jogos sem promoção — e o que os fãs acham disso
A Nintendo sabe que não faz parte da cultura dos japoneses esperar para comprar jogos com preços reduzidos, porém esse modelo de negócios não agrada nem um pouco os fãs brasileiros
A Nintendo é conhecida por não diminuir os preços, nem fazer promoções frequentes de seus jogos exclusivos por aqui. Esse modelo de negócios faz parte da cultura da empresa e funciona bem no Japão — o berço da Big N. Por outro lado, fãs ocidentais, em especial brasileiros, não veem essa prática com bons olhos e, muitas vezes, recorrem a métodos ilegais para aproveitar os games, como a pirataria.
Ainda que seja bastante questionável, o modelo de negócios da Nintendo tem motivos para ser assim. Há pessoas que defendem e outras que criticam ferozmente o fato da empresa vender jogos de 2017 por R$ 300, quase cinco anos após o lançamento — e não estou falando só de The Legend Zelda: Breath of the Wild. Essa decisão da companhia tem dois lados, e vale a pena entendê-los.
Neste texto, vamos destrinchar a cultura da Nintendo para saber por que a empresa prefere manter o preço dos jogos nas alturas, enquanto Sony e Microsoft fazem promoções semanais com descontos agressivos. A ideia, aqui, não é falar se alguém está certo ou errado na história, mas sim derrubar o senso comum de que a Big N gosta de desrespeitar seus consumidores de forma proposital.
Para a Nintendo, o Japão está sempre em primeiro lugar
Antes de tudo, vale explicar que a Nintendo é uma empresa tradicional do Japão, com missões, visões e valores baseados na cultura japonesa. Apesar da Sony ter a mesma origem, a dona do PlayStation está cada vez mais “ocidentalizada”, e isso influencia diretamente no modelo de negócio de cada uma das gigantes dos videogames.
Na Japão, a cultura do imediatismo é bem forte. Diversos vídeos espalhados pela internet mostram as filas enormes que se formam na frente de lojas de videogames quando consoles ou jogos muito esperados são lançados. O canal Ruptly, por exemplo, publicou uma gravação feita na cidade de Tóquio, no dia em que o Nintendo Switch chegou às lojas.
A Nintendo está ciente desse imediatismo dos japoneses e, por isso, tende a respeitar as pessoas que saem de suas casas para serem os primeiros a comprarem algum produto. No livro Ask Iwata — que reúne pensamentos e citações de um dos presidentes mais emblemáticos da Nintendo —, o ex-CEO Satoru Iwata compartilha seu pensamento sobre o assunto:
“Depois que um hardware é lançado, o preço é reduzido gradualmente por cinco anos até que a demanda atinja seu curso. Mas como o ciclo de demanda nunca falha, por que se preocupar em reduzir o preço dessa maneira? Minha opinião pessoal sobre a situação é que, se você baixar o preço ao longo do tempo, o fabricante condiciona o cliente a esperar por um negócio melhor, algo que sempre achei uma abordagem estranha. Claro, isso não significa que eu seja contra baixar os preços inteiramente, mas eu sempre quis evitar uma situação em que as primeiras pessoas a se manifestar e nos apoiar se sintam punidas por pagar caro, resmungando: ‘acho que este é o preço que eu pago por ser o primeiro da fila’.”
Satoru Iwata.
Apesar de usar preços de hardware como exemplo, a mesma regra vale para jogos, que também não ficam mais baratos com o passar do tempo — e podem até encarecer. Na eShop japonesa, hoje, The Legend of Zelda: Breath of the Wild pode ser encontrado por 7.679 ienes (cerca de US$ 67, ou R$ 372 em conversão direta). Na época do lançamento do jogo, em 2017, a Nintendo cobrava 6.980 ienes (US$ 61, ou R$ 338).
Para nós, brasileiros, esse modelo de negócios não faz o menor sentido. Enquanto isso, os japoneses aceitam as quantias mais altas sem questionar, pois eles sabem que, enquanto um jogo estiver vendendo bem, a Nintendo não vai baratear seus preços, e isso dificilmente vai mudar nos próximos anos.
Preços no Japão não são tabelados como no ocidente
Com o objetivo de entender melhor a forma como os japoneses consomem videogames, conversamos com uma pessoa que respira Nintendo, produz conteúdo especializado sobre a empresa e morou por cinco anos no Japão: Rodrigo Coelho — dono do canal Coelho no Japão, no YouTube. Em nosso papo, Coelho explicou como funciona a precificação de jogos na Terra do Sol Nascente:
“Lá [o preço] é decidido muito mais pela publicadora, mesmo dentro de um mesmo console, e pelo jogo em si. Por exemplo, normalmente você vai aos EUA comprar um game recente e paga US$ 60 ou US$ 70. No Japão, não. Quando eu fui comprar o PS4 lá, eu queria pegar o Monster Hunter World, e ele custava 2.000 ienes mais caro que outros jogos da mesma época. Fazendo uma aproximação, em vez do jogo custar US$ 60, ele custava US$ 80. No Octopath Traveler, que era exclusivo do Switch, a Square Enix sabia do hype pelo jogo. Por remeter aos Final Fantasies antigos, os quais fazem parte da cultura japonesa, a publicadora vendia por US$ 78 em vez de US$ 60”.
Rodrigo Coelho.
Coelho ainda disse que os japoneses não costumam pedir desconto nem pechinchar. Quando querem comprar um produto mais barato, eles recorrem ao mercado de usados. Se forem a uma loja adquirir um jogo qualquer, o povo nipônico sabe que vai pagar a quantia original, e isso não é um motivo de reclamação por lá.
No Japão, as pessoas convivem diariamente com a escassez. Por isso, há uma ânsia de comprar as coisas o mais rápido possível. Além disso, os japoneses valorizam muito itens limitados e colecionáveis, então jogos em mídia física ainda são os preferidos dos fãs, e as lojas sabem disso. Sobre a desvalorização dos games, Coelho falou o seguinte:
“A desvalorização não acontece a pedido das publicadoras [japonesas]. Aqui no ocidente, a publicadora decide abaixar o preço do jogo direto nas prateleiras. No Japão, eu vejo isso acontecendo conforme a vontade das lojas. As publicadoras enviam os jogos em um certo valor, e o japonês é muito cauteloso, então as entregas são pequenas para que os itens sejam vendidos e repostos depois. Assim, eles não precisam recolher nada”.
Rodrigo Coelho.
Exigir redução de preços no Brasil “é batalha perdida”
Por ter modelo de negócio baseado na cultura japonesa desde sua origem, há mais de 130 anos, a Nintendo não vai mudar sua filosofia do dia para a noite. Nós, ocidentais, precisamos começar a entender isso, até para evitar possíveis quedas de cabelo precoces ou ataques do coração por estresse.
Aqui na redação do Tecnoblog temos o Ricardo Syozi — fã da Nintendo há mais de 30 anos que compartilha desse mesmo pensamento. Na visão de Syozi, gostar dos produtos da Nintendo sendo brasileiro é uma batalha perdida, e a empresa tem total liberdade para ser assim, infelizmente.
“Eu tenho 37 anos, e quero jogo com preço menor há 30. Para a Nintendo, cortar o preço de um jogo é o mesmo que desvalorizá-lo. A intenção da empresa sempre foi trabalhar com o imediatismo. Obviamente ela não vai falar isso de forma aberta, mas não é algo inédito e não vai parar”, comentou.
Syozi também aproveitou para lembrar que, por mais que seja bacana ter jogos mais baratos, videogames sempre foram hobbies de luxo. Hoje em dia, existem formas mais acessíveis de jogar, como esperar promoções ou assinar serviços tipo o Xbox Game Pass. No caso da Nintendo, porém, não tem para onde correr, porque a empresa sempre vai colocar os japoneses em primeiro lugar.
“Eu compro jogo da Nintendo com o meu dinheiro há mais ou menos 19 anos, desde a época do GameCube, e já era muito caro. Os brasileiros sempre esperam o melhor momento para comprar com desconto, mas eu já não sou assim. Eu cresci nessa onda de jogo que não fica barato. Como consumidor, é uma batalha perdida. Eu acho bonitinho quando a gente vai ao Twitter fazer nossas campanhas e subir hashtags para a Nintendo abaixar os preços, mas o público principal dela é o japonês, e ela sempre abraçou essa ideia. O americano, o europeu… eles são importantes, mas o domínio da Nintendo é o Japão. E como é uma cultura do Japão, não adianta eu, Ricardo, brasileiro, morador de São Paulo, achar que eu conseguiria mudar isso”.
Ricardo Syozi.
Syozi concluiu reforçando que não há um vilão nessa história toda. “Isso tudo é culpa da Nintendo e do consumidor. Porque se ninguém comprasse, a Nintendo abaixaria os preços, mas aí a empresa também não criaria os jogos que a gente tanto ama. A Big N só vai ceder e fazer um sistema de assinatura ou dar descontos mais frequentes quando o mercado forçá-la a isso”, afirmou.
Fãs ainda têm esperança de comprar jogos mais baratos
Apesar de aceitarem a realidade, tanto Syozi quanto Coelho ainda querem que a Nintendo passe a olhar para outros países com o mesmo carinho que ela olha para os japoneses. Afinal, franquias como Mario, Zelda, Pokémon e Kirby fazem muito sucesso no mundo todo, não só no Japão. Como exemplo, Coelho citou um caso recente envolvendo a Rússia:
“A Nintendo anunciou há uns meses que a empresa havia começado a praticar preços diferentes na Rússia. Eles analisaram o mercado da Rússia e perceberam que, para vender melhor por lá, seria preciso diminuir os preços dos jogos, consoles e acessórios. Eu gostaria que eles fizessem o mesmo aqui no Brasil, porque não dá para comparar a nossa realidade com os países de fora”.
Rodrigo Coelho.
Enquanto isso, Syozi também deseja ver jogos mais baratos um dia, mas sabe que isso pode nunca acontecer.
“Eu gostaria que a Nintendo abaixasse os preços, olhasse para o Brasil e traduzisse os jogos para português. Mas não é obrigação dela fazer isso, porque ela é uma empresa. Quem sabe as obrigações de uma empresa é ela própria e seus investidores. Quem sou para falar o que ela tem que fazer? É complicado”.
Ricardo Syozi.
Você, leitor, acha que a Nintendo vai começar a pensar fora da caixinha japonesa algum dia? Compartilha com a gente a sua opinião na Comunidade do Tecnoblog!
Jornalista, atua como repórter de videogames e tecnologia desde 2018. Tem experiência em analisar jogos e hardware, assim como em cobrir eventos e torneios de esports. Passou pela Editora Globo (TechTudo), Mosaico (Buscapé/Zoom) e no Tecnoblog, foi autor entre 2021 e 2022. É apaixonado por gastronomia, informática, música e Pokémon. Já cursou Química, mas pendurou o jaleco para realizar o sonho de trabalhar com games.