Games não são cursos de inglês (e nem deveriam ser)

Aprender inglês jogando? Conversamos com uma professora do idioma e um profissional de tradução para entender um pouco mais dessa necessidade

Felipe Vinha
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• Atualizado há 11 meses
Jogos em inglês precisam ser cada vez mais raros no Brasil (Imagem: Guilherme Reis/Tecnoblog)

Você aprendeu inglês com games? Acha que todos os jogos devem ser traduzidos para o português do Brasil? Ou considera uma besteira desnecessária e que todos devem dominar a língua estrangeira? Vale o mesmo para outros idiomas, como o japonês? Questões deste tipo foram levantadas em mais um debate no Twitter que mostrou a realidade de muitos jogadores e como o acesso a vários títulos famosos ainda é restrito graças a uma inexistência de localização, ou seja, a tradução para o nosso idioma.

Como quase tudo no Twitter, o debate foi fomentado por dois lados inflamados. O pior de tudo: se trata de uma discussão cíclica, que é sempre levantada anualmente, ou de seis em seis meses, também quando um grande lançamento chega ao mercado apenas em inglês ou espanhol, deixando de lado a necessidade da tradução para português ao ser lançado no Brasil.

A verdade é que vivemos em bolhas. Dentro da bolha do Twitter, entre as pessoas que você provavelmente tem mais intimidade, muita gente deve falar inglês. Mas isso representa uma parcela ínfima da sociedade. Uma pesquisa financiada pelo British Council, organização institucional do governo do Reino Unido, já revelou no passado que apenas 5% de adolescentes brasileiros falam inglês. Entre jovens de 18 a 24 anos esse percentual aumenta, mas não muito, e vai para 10%. Já a taxa de pessoas que são plenamente fluentes é de apenas 1%, enquanto a galera que diz ter inglês básico é a maioria – 47%.

Vale avisar que a pesquisa foi realizada em 2013. Ainda assim, quase uma década parece não ter sido o suficiente para melhorar estes números. Índice de Proficiência em Inglês da Education First, empresa de educação internacional, lista o Brasil na posição 60, entre 112, no ano de 2021. Esse indicador tem melhorado desde 2013, mas ainda a passos muito lentos.

Do you speak english? (Imagem: Clarissa Watson)

Só esses números já seriam o suficiente para desmontar qualquer argumento contra localização de jogos. Mesmo produtores pequenos e estúdios independentes têm se esforçado para lançar títulos traduzidos por aqui, o que justifica que uma empresa bilionária e internacional, como a Nintendo, não lance ainda seus games com o nosso idioma? Afinal de contas eles estão oficialmente disponíveis por aqui, mas com raríssimas e inéditas traduções.

Mas vamos tentar expandir os argumentos…

Saber inglês é importante?

A resposta é bem óbvia, mas ao mesmo tempo pode não ser. Saber inglês é importante, mas você, como cidadão brasileiro, não é obrigado. O idioma oficial do Brasil é o português, com algumas outras línguas graças aos povos indígenas originários e também a Língua Brasileira de Sinais, criada para que pessoas com deficiência auditiva possam se comunicar.

Por outro lado, se você almeja trabalhar para uma empresa estrangeira, pode ser uma boa aprender inglês. Se quer viaja para algum país, pode ser uma alternativa na comunicação com os gringos. Mas para jogar videogame? Não deveria ser, certo?

Para ter uma visão de quem trabalha com isso, conversei com Patrícia Pond, que é professora de inglês há alguns anos e que já lecionou em cursos e também no particular. Ela me contou algo curioso: o fato de que muita gente procura curso ou aulas para aprender inglês em prol do lazer, não necessariamente para trabalho.

“Incrivelmente o que eu percebo é que quem quer aprender por diversão acaba aprendendo mais do que quem quer aprender por motivos profissionais, as pessoas aprendem mais pra entender uma letra de música e uma série ou filme do que pra fazer reuniões no Zoom, pois o lazer é mais estimulante, enquanto o outro é tratado como obrigação”, disse Pond ao Tecnoblog.

Aprender inglês é importante? Por que? (Imagem: Pixabay)

Uma linha de pensamento bem surpreendente e fora da caixa, mas que faz sentido. Parando para pensar, neste sentido, os games podem ser aliados, ainda que não a ferramenta principal. Mas a professora concorda que o idioma estrangeiro não deveria ser obrigatório, especialmente pela oferta de produtos culturais localizados que temos no Brasil.

“Não acho que ninguém hoje em dia é obrigado mais a isso, a cultura da dublagem brasileira virou uma indústria incrível e que funciona muito bem. Pra você ter uma ideia, na Alemanha é tudo dublado. A população quase toda fala inglês pois o ensino lá tem um foco grande nisso, mas mesmo assim preferem assistir dublado por apreciarem a cultural local da dublagem”, revelou.

Você é exceção, não regra

Não pretendo identificar pessoas que participaram das discussões no Twitter sobre a polêmica envolvendo jogos traduzidos ou não, mas alguns dos principais argumentos para defender a não-localização envolvia a afirmação de que os “games ensinam inglês”.

Quem tem 20 anos ou menos pode não ser familiar com a situação, mas ter jogos em português no Brasil era uma raridade extrema. Nos anos 90 apenas alguns pouquíssimos games de computador tiveram este tratamento. Foi somente a partir de 2005 e adiante que títulos começaram a receber a devida atenção em relação a traduções. Isso se deu por conta da presença oficial de empresas no país, como Sony, Microsoft, Warner, Ubisoft e EA, que passaram a lançar alguns de seus principais produtos traduzidos.

Nos anos 80 e 90 éramos obrigados a jogar games em inglês, dos mais simples aos mais complexos. Com a facilidade de acesso à pirataria também não era raro ter algum RPG em japonês na biblioteca, especialmente pela demora que eles levavam para chegar ao ocidente. Isso nos forçava a uma situação: dar um jeito ou não se divertir. Resultado: muitos games que eram jogados, mas não compreendidos. Experiências que podem ter ficado marcadas, mas que seriam muito melhor aproveitadas com tradução apropriada ou conhecimento da língua original.

Jogar RPG em japonês não era raro nos anos 90 (Imagem: Reprodução)

Mas tivemos exemplos de pessoas que aprenderam com isso. Jogadores e jogadoras que, a partir daí, se interessaram pelo inglês e resolveram aprender e desenvolver com os anos – e que hoje falam de maneira fluente e podem sustentar uma conversa ou escrever um texto de alguns parágrafos.

“Eu acho que aprender jogando, lendo, acompanhando algo que tu gosta é uma maneira incrível de aprender. Não quer dizer que você é maior ou menor que ninguém, quer dizer que tu descobriu o que funciona pra você e aplicou”, complementou a professora Patrícia ao Tecnoblog. “Mas tem gente que não sabe aplicar ou não tem interesse. Até porque você não precisa falar uma língua perfeitamente para ser fluente ou se comunicar”, adicionou.

Mas ela bate o martelo: para se aprofundar, só estudando. “Agora, se você quer ensinar, aí tem que estudar, saber os nomes das coisas direitinho, entender de didática, enfim. Logicamente se você tiver alguém pra te guiar, seu aprendizado vai ser mais completo”.

Então sim, é possível que você tenha começado a aprender inglês lá pelos seus 10 ou 15 anos ao jogar uma cópia em inglês de Final Fantasy 8. Mas não quer dizer que ficou fluente ou experiente na mesma época e nem que não desenvolveu mais isso, seja na própria escola – já que inglês é uma matéria até que bem comum na maioria delas, no Brasil – ou em cursos e leituras extras que fez ao longo da vida.

Você é exceção. Não quer dizer que aquilo funcione para todas as pessoas e talvez tenha mais relação com seu contexto social do que com games. Se aconteceu com você, ótimo, mas, via de regra, é necessário aprender inglês por meio de todo um processo educativo ativo e constante. Lembre-se que estamos falando de uma bolha, basta dar uma olhada, de novo, nos números que citei mais acima.

Quanto custa?

Por qual motivo ainda temos empresas que lançam games sem tradução no Brasil, se existe uma clara demanda no mercado, que quer abrigar cada vez mais jogadores?

Traduzir um jogo é caro? Depende de uma série de fatores. Se incluir dublagem, com toda a certeza. Mas vamos partir do princípio que uma empresa queira lançar um jogo apenas com legendas e menus localizados para o português brasileiro – quanto ela iria gastar?

A resposta é que não há resposta, ao menos padronizada. Custos e valores variam de acordo com o estúdio ou empresa responsável pelas traduções, mas dá para se ter uma ideia. Foi para isso que conversei com uma fonte que prefere não se identificar, que trabalhou em alguns jogos traduzidos e que estão no mercado nacional, mas que vieram de empresas gringas.

“Uma coisa que eu te garanto é que a conta é feita na base da contagem de palavra”, disse a fonte ao Tecnoblog. Assim, um game com bastante texto sempre será mais caro do que um com menos. Ou seja: um RPG no estilo Final Fantasy ou Dragon Quest sempre custará mais do que um game de plataforma tipo Super Mario ou Sonic.

Um jogo como Super Mario seria mais barato de traduzir do que um RPG (Imagem: Divulgação/Nintendo)

Um cálculo que a fonte me forneceu foi de 10 centavos de euro por palavra, ou seja, cerca de R$ 0,60 de acordo com a cotação atual, no momento em que esta matéria foi escrita. Ele me informa ainda que um famoso RPG ocidental estrangeiro teve 2 milhões de palavras no total, o que custaria cerca de R$ 1,2 milhão, com base neste cálculo, apenas para trabalhos de tradução, estimando por alto.

Não me parece um valor baixo, mas temos que lembrar que estamos falando de empresas que relatam lucros cada vez maiores, sem falar no retorno em dinheiro que a venda de um jogo garante. Há ainda o fator do preço flutuante: esta foi a estimativa de uma pessoa que trabalhou em um estúdio, existem muitos outros que podem trabalhar por menos ou trazer condições melhores de precificação. Afinal existem empresas independentes, muito menores do que uma Nintendo ou Sony, por exemplo, que só lançam seus jogos por aqui traduzidos – o custo não é proibitivo, se souber onde e como realizar o trabalho.

O papel dos fãs

Se chegamos na conclusão de que traduzir jogos para o mercado brasileiro é viável e necessário, como vamos direcionar as empresas neste sentido? A boa notícia é que boa parte delas já faz isso. Além de desenvolvedores independentes, companhias como Activision, Ubisoft, EA, Sony e Microsoft têm lançado seus títulos com alguma localização, com raríssimas exceções. A má notícia é que ainda há um longo caminho pela frente.

É aí que entra a comunidade e entram os fãs. Este especial, aliás, foi motivado por campanhas recentes feitas nas redes sociais, além das intermináveis discussões sobre precisar ou não traduzir jogos para o Brasil.

Em meados de 2021 fãs brasileiros da Nintendo iniciaram uma campanha nas redes sociais, em especial no Twitter, para pedir que a empresa traduza mais jogos lançados no Brasil para o português brasileiro. A iniciativa nasceu da comunidade, após o anúncio de que Mario Party Superstars seria traduzido para o nosso idioma.

Fãs pedem, falta a Nintendo atender (Imagem : Reprodução)

De lá para cá a Nintendo pouco fez. Lançou um vídeo no YouTube com um executivo estrangeiro falando português, mas com zero novidades de mais jogos localizados chegando por aqui. Isso também nos levou a outra campanha, mais recente e ainda em andamento, para que The Legend of Zelda: Breath of the Wild 2 seja localizado.

Por ora, a única campanha bem sucedida foi a de Sonic Frontiers. Jogadores pediram para que a Sega olhasse com carinho para os fãs brasileiros e foram atendidos pouquíssimos dias depois, com um anúncio oficial dos planos de tradução.

Pode parecer um papel ingrato, mas que dá resultados. No fim das contas, é com os fãs que está o poder de decisão de compra e de principal influência no mercado. Falta agora que uma parcela da comunidade se conscientize da necessidade de mais este benefício para os jogos no Brasil – e que assim todos cobrem para que as empresas façam o que é preciso.

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Felipe Vinha

Felipe Vinha

Ex-autor

Felipe Vinha é jornalista com formação técnica em Informática. Já cobriu grandes eventos relacionados a jogos, como a E3, BlizzCon e finais mundiais de League of Legends. Em 2021, ganhou o Prêmio Microinfluenciadores Digitais na categoria entretenimento. Foi autor no Tecnoblog entre 2020 e 2022, escrevendo principalmente sobre games e entretenimento. Passou pelos principais veículos do ramo, e também é apresentador especializado em cultura pop.

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