Dismorfia corporal: como os apps moldaram nossos rostos

Em quarentena, tivemos que nos confrontar diariamente por meio videochamadas – e, aparentemente, não gostamos do que vimos

Ana Marques
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• Atualizado há 1 ano e 5 meses
Dismorfia corporal
Dismorfia corporal (Imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog)

Sim, já é dezembro de 2020 — passamos praticamente um ano interagindo com amigos e colegas de trabalho por meio de aplicativos de videoconferências e redes sociais. É provável que nunca antes tenhamos entrado tanto em contato com nossa própria imagem – e nem sido tão críticos em relação a ela.

O mundo virtual inundou o que chamamos de “real”, e nos colocou cara a cara com aqueles detalhes mais incômodos da nossa aparência, acentuando transtornos de dismorfia corporal.

A dismorfia corporal tem uma relação íntima com a tecnologia

O assunto não é novo – há alguns anos sofremos uma espécie de epidemia de transtornos ligados à saúde mental devido ao uso excessivo de aplicativos e redes sociais.

Desde 2017, os casos de dismorfia corporal associados a apps como Snapchat e Instagram ganharam notoriedade. Também chamada de “síndrome da feiúra imaginária”, essa condição é uma doença mental que leva o paciente a ter foco obsessivo em um defeito na própria aparência – seja ele real ou não.

De acordo com um estudo da Academia Americana de Plástica Facial e Cirurgia Reconstrutiva (AAFPRS) realizado em 2017 com seus membros, 55% dos cirurgiões relataram que a motivação dos pacientes que buscaram procedimentos estéticos era ter uma aparência melhor em selfies – contra apenas 13% em 2016.

Com filtros que imitam procedimentos estéticos, os usuários desses aplicativos (e tantos outros) se divertiram conseguindo resultados milagrosos em fotos e vídeos. Tanto que muita gente por aí se perguntou, em algum momento, “por que Deus não dá asa à cobra, hein?!”.

Recentemente, com a pandemia da COVID-19, a situação tomou proporções ainda maiores. Se por um lado a tecnologia foi grande aliada durante a quarentena, por outro, ela contribuiu para minar a nossa autoestima.

Pessoas que sofrem dismorfia corporal têm dificuldade de aceitar a própria imagem
Pessoas que sofrem dismorfia corporal têm dificuldade de aceitar a própria imagem (Imagem: Min An/Pexels)

Expostos a câmeras durante reuniões de trabalho ou em festas online com amigos e familiares, dessa vez tivemos que encarar a nossa própria aparência, dia após dia. Segundo a AAFPRS, o “novo normal” resultou em uma pressão diária para alcançar um determinado estilo de vida virtual, o que contribuiu para uma demanda por cirurgias estéticas nunca antes vista agora que os protocolos de isolamento estão mais “flexíveis”.

Mark M. Hamilton, presidente do Comitê de Informação Pública da organização, a área mais comumente notada quando estamos em chamadas via Zoom é o pescoço. “Este hiper-foco no pescoço levou a um grande aumento no interesse em lifting facial, com a cirurgia das pálpebras sendo secundária”, explicou.

Todo mundo está usando filtro?

Recursos para suavizar a pele e outros recursos para aplicar “melhorias” estéticas ao nosso corpo chegaram às videochamadas. Você não precisa aparecer com olheiras na reunião de trabalho se não quiser, basta encontrar o filtro adequado no Zoom e voilà! Tudo resolvido – ao menos, momentaneamente.

Entretanto, na ausência de contato presencial, o que se tornou real é o que vemos todos os dias – o virtual. Ao mesmo tempo, distinguir realidade com tantos artifícios pode ter ficado mais difícil.

Videoconferências via Zoom (Imagem: Anna Shvets/Pexels)
Videoconferências via Zoom (Imagem: Anna Shvets/Pexels)

Conversei com a psicóloga Fabíola Luciano, especialista em Terapia Cognitiva Comportamental pela Universidade de São Paulo – USP, para entender como os pacientes têm sido impactados nesse cenário.

Com o aumento nas horas de telas em geral, as pessoas, especialmente as que têm maior sensibilidade ao tema, podem aumentar o comparativo em relação à vida dos demais, “comprando” aquela imagem perfeita da foto do Instagram e sentindo que sua própria vida é um fracasso. Além disso temos consequências como o isolamento, sensação de não pertencimento, estresse, irritação e aumento de sintomas depressivos e ansiosos.

As redes sociais têm um papel muito importante na dismorfia corporal, assim como em outros transtornos psicológicos, como Ansiedade e Depressão. Esse universo vende uma imagem que não é real, momentos e pessoas maravilhosas com suas vidas incríveis. Ninguém vive todo o tempo em plena felicidade, todos temos nossas vulnerabilidades em relação à auto imagem corporal, mas as redes sociais fazem parecer que isso é anormal e que a única pessoa “loser” é aquela que está do outro lado da tela vendo a vida de todo mundo.

Fabíola salienta ainda que as redes apenas acentuam fatores pré-existentes em indivíduos. Para a psicóloga, somente somente a exposição em si, não seria suficiente para o surgimento do transtorno.

Para pessoas com maior sensibilidade, isso pode ser extremamente complicado e desencadear um diagnóstico ou potencializar um quadro já instalado. No decorrer do tratamento, dentre outras coisas, este aspecto perfeccionista e as distorções cognitivas gerados por ele são discutidas.

E fora das telas? Brasil é o país que mais realiza cirurgias plásticas

Mas e quando estamos fora das câmeras e telas? A pandemia, esperançosamente, não irá durar para sempre. Depois de tanto tempo acostumados a esses recursos, quando os filtros não puderem mais esconder aquele detalhe indesejado no nosso corpo durante uma festa ou encontro de trabalho, o que faremos?

Muitas pessoas já pensaram sobre isso e recorreram a procedimentos cirúrgicos com fins estéticos. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica afirmou ainda não ter dados oficiais sobre o impacto da pandemia no setor de cirurgias estéticas no país, mas de acordo com o presidente da regional de São Paulo (SBCP-SP), o Dr. Felipe Coutinho, há uma percepção no aumento de demanda de tais procedimentos.

A incorporação da videoconferência no cotidiano tem influenciado as demandas de pacientes em consultórios de cirurgia plástica. No início da pandemia, as pessoas ainda estavam se adequando às ferramentas para reuniões virtuais. Naquele momento, bastava aparecer e fazer a reunião.

Depois, o olhar foi se tornando gradualmente mais crítico sobre a forma como as pessoas apareciam nas videoconferências. Nesse processo, aprendemos a lidar melhor com a iluminação, o posicionamento da câmera e as demais ferramentas para as reuniões virtuais.

Ao mesmo tempo, passamos a reparar mais no rosto, pois ele fica em evidência. Rugas, a região das pálpebras, o “bigode chinês” (expressão facial ao lado dos lábios), tudo ganhou mais atenção. O uso das máscaras também influenciou as pessoas a observarem mais os olhos.

Dr. Felipe Coutinho, presidente da SBCP-SP

O comportamento não chega a ser uma surpresa: de acordo com os dados mais recentes da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), referentes ao ano de 2018, o Brasil foi o país líder em número de cirurgias plásticas estéticas realizadas, com quase 1,5 milhão de ocorrências. Houve ainda 969 mil procedimentos estéticos não-cirúrgicos.

A psicóloga Fabíola Luciano faz alguns alertas para quem busca cirurgias por sofrer com dismorfia corporal:

Quando há o diagnóstico de dismorfia, o ideal é que o paciente seja acompanhado por um Psicólogo e um Psiquiatra. A ideia é entender a sintomatologia e os fatores ambientais e psicológicos que os mantém de modo a ajudar o paciente num novo olhar sobre si mesmo.

Pacientes com este diagnóstico que recorrem às cirurgias plásticas não só contribuem para a perpetuação dos sintomas, como tem grandes chances de insucesso, porque geralmente, a percepção da pessoa é exagerada sobre sua aparência ou parte do corpo. Consequentemente, ele terá uma expectativa extremamente elevada e irreal, assim como a sua autopercepção. É uma combinação que não tem como dar certo.

A parcela de responsabilidade das empresas de tecnologia

Cientes do cenário e do impacto que podem exercem sobre a rotina de seus usuários, grandes empresas de tecnologia já incluem medidas relacionadas à saúde mental e ao bem-estar em suas políticas.

Um exemplo é o Instagram: em outubro de 2019, a rede social anunciou que removeria filtros relacionados a cirurgias plásticas dos Stories. Se você usava o aplicativo já deve ter visto aqueles efeitos que simulavam linhas de marcação e até mesmo hematomas resultantes de procedimentos cirúrgicos no rosto dos usuários.

Pois bem, estes filtros com incentivo explícito à cirurgia plástica foram banidos. Entretanto, como é fácil perceber, outros efeitos, como os que afinam o nariz, aumentam os lábios ou suavizam linhas de expressão e rugas ainda são altamente utilizados na rede (e eu falo como uma usuária assídua!).

Instagram Reels e IGTV (Imagem: Claudio Schwarz / Unsplash)
Instagram (Imagem: Claudio Schwarz / Unsplash)

Procurado pelo Tecnoblog, o Instagram esclareceu que esses efeitos mais “brandos” que não incitam procedimentos estéticos explicitamente, são permitidos.

Ouvimos da nossa comunidade de criadores que a alteração facial é usada predominantemente para criar efeitos artísticos, surreais e de fantasia e que estão amplamente disponíveis em outras plataformas. Assim, em agosto deste ano, voltamos a permitir que as pessoas criem e compartilhem efeitos de alteração facial no Instagram, porém eles não ficam disponíveis para serem descobertos em nossa Galeria.

Isso quer dizer que, em tese, você só poderá encontrar esse tipo de filtro ao seguir um criador ou ao “roubar” o efeito de algum amigo no aplicativo.

O Instagram afirma que a rede social é “um espaço para inspirar as pessoas a explorarem seus interesses e descobrirem novas paixões. Não queremos que o Instagram seja um ambiente de competição, mas sim um espaço positivo, onde as pessoas sintam-se livres para se expressarem de forma autêntica, segura e criativa, e tenham uma voz”.

Entre as medidas para preservar o bem-estar de seus usuários, a plataforma destacou também as políticas de publicidade que desde 2019 restrigingiu e removeu posts orgânicos que promovam produtos milagrosos para perda de peso ou cirurgia plástica – a rede afirma ainda nunca permitiu publicidade com estes fins.

Lives também aumentaram a pressão por imagens "perfeitas" no Instagram
Lives também aumentaram a pressão por imagens “perfeitas” no Instagram (Imagem: cottonbro/Pexels)

Em outubro de 2020, foi a vez do Google se posicionar sobre o assunto. A empresa mudou sua postura em relação aos filtros de câmeras no Android após os resultados de uma pesquisa interna que revelou que 70% de todas as fotos armazenadas no app Fotos foram tiradas com a câmera frontal – sendo o total de selfies superior a 24 bilhões, a maioria delas com retoques (filtros) aplicados de forma automática.

Na época do anúncio, o Google afirmou que, após examinar o estudo e conversar com especialistas em saúde mental, resolveu avisar aos usuários de forma mais clara quando um filtro estiver ativo no app de câmera do sistema operacional. A iniciativa começa com os celulares Pixel 5 e 4a – que chegam ao mercado sem filtros de câmeras ativados de fábrica –, e devem se estender a mais modelos em um futuro próximo.

Em comunicado, a empresa explicou que “esses filtros padrão podem definir discretamente um padrão de beleza com o qual algumas pessoas se comparam”.

Equilíbrio é a palavra-chave…

Mas sabemos que é difícil encontrá-lo.

Para amenizar os efeitos que as redes podem exercer sobre a sua saúde mental, é importante estar atento aos padrões de comportamento e à sua rotina.

Com a vida social e o trabalho forçadamente operando no digital, é complicado encontrar os limites, mas como sabiamente resumiu Bruno De Blasi, desconectar-se também é preciso.

Além de procurar tratamento psicológico, você pode seguir algumas dicas de ouro para usar a tecnologia de forma mais saudável, como limitar o tempo de uso de aplicativos e encontrar soluções que ajudam a meditar e relaxar.

E, vale lembrar: estamos todos juntos nessa.

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Ana Marques

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Gerente de Conteúdo

Ana Marques é jornalista e cobre o universo de eletrônicos de consumo desde 2016. Já participou de eventos nacionais e internacionais da indústria de tecnologia a convite de empresas como Samsung, Motorola, LG e Xiaomi. Analisou celulares, tablets, fones de ouvido, notebooks e wearables, entre outros dispositivos. Ana entrou no Tecnoblog em 2020, como repórter, foi editora-assistente de Notícias e, em 2022, passou a integrar o time de estratégia do site, como Gerente de Conteúdo. Escreveu a coluna "Vida Digital" no site da revista Seleções (Reader's Digest). Trabalhou no TechTudo e no hub de conteúdo do Zoom/Buscapé.

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