As decisões que podem abrir um perigoso precedente sobre a liberdade de expressão

EFF alerta sobre riscos após empresas de tecnologia banirem usuários e sites ligados ao movimento neonazista

Felipe Ventura
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• Atualizado há 9 meses
Foto por bohed/Pixabay

Esta semana, diversas empresas de tecnologia se apressaram para banir conteúdo neonazista de seus serviços. Tudo começou quando a GoDaddy e o Google se recusaram a gerenciar o domínio do Daily Stormer, “site republicano mais genocida do mundo”.

Desde então, Facebook e Reddit fecharam grupos associados à supremacia branca; o GoFundMe removeu campanhas de crowdfunding para um participante da marcha de Charlottesville, acusado de atropelar 20 pessoas; e Airbnb e Uber baniram usuários publicamente associados a ideais neonazistas.

A Electronic Frontier Foundation (EFF), organização que defende os direitos dos civis na internet, vê essas medidas com ceticismo. Sim, eles acreditam que todos devem se unir contra os discursos de ódio, mas dizem: “na internet, qualquer tática usada agora para silenciar os neonazistas em breve será usada contra outros, incluindo pessoas cujas opiniões concordamos”.

“Decisão extremamente perigosa”

Esta é uma discussão que foi aberta por Matthew Prince, CEO do Cloudflare. A empresa oferece proteção contra ataques, e esconde o servidor que realmente hospeda um determinado site.

Depois de toda a polêmica, o Cloudflare decidiu não prestar mais serviços para o Daily Stormer, efetivamente retirando-o do ar. Prince diz ao Gizmodo: “eu percebi que não havia como ter uma conversa com pessoas nos chamando de nazistas. O Daily Stormer estava se gabando em seus fóruns que o Cloudflare era um deles, e isso é o oposto de tudo o que acreditamos.”

Prince diz que tomou “uma decisão extremamente perigosa”. Em um comunicado aos funcionários, ele conta que literalmente acordou de mau humor e decidiu barrar um site na internet. “Ninguém deveria ter esse poder”, diz ele — e a EFF concorda.

Infraestrutura frágil

O CEO do Cloudflare diz “que precisamos discutir qual é o limite correto para restringir conteúdo”; enquanto isso não acontece, existe o risco de abusos de poder. “Nós estaríamos cometendo um erro ao assumir que essas decisões de censura nunca se voltariam contra as causas que amamos”, escreve a EFF.

E esses abusos podem facilmente ocorrer na infraestrutura atual da internet, dominada por poucas empresas. Existem diversos intermediários entre o usuário e um site, como o registrador de domínios (GoDaddy, Google Domains); a empresa de hospedagem; a CDN (rede de distribuição de conteúdo), que ajuda na velocidade de carregamento; o provedor de acesso; e até mesmo redes sociais, que ajudam na divulgação dos links.

Todos esses pontos são passíveis de censura. Por exemplo, a China conseguiu barrar centenas de sites ao bloquear um CDN em 2014; alguns dos sites divulgavam notícias negativas sobre o país. E provedores de acesso na Rússia terão que bloquear sites que hospedam VPNs, para impedir acesso a conteúdo banido pelo governo.

Quando um desses elos da internet — por exemplo, registradores de domínio — mostra que tem o poder de banir um site, isso abre um precedente para que governos censurem dissidentes, por exemplo. Além disso, como nota a EFF, “cada vez que uma empresa remove um site neonazista da internet, milhares de decisões menos visíveis são feitas por empresas com pouca supervisão ou transparência”.

O que fazer?

Como as empresas de internet podem evitar decisões excessivas ou arbitrárias? A EFF defende que elas devem sempre seguir um processo consistente e transparente.

A Cloudflare, por exemplo, reconheceu que negar serviço ao Daily Stormer não é a política da empresa, que se orgulha em ser neutra quanto ao conteúdo dos sites que protege. O GoDaddy e o Google também não tiveram um processo adequado, banindo o site neonazista — que existe desde 2013 — apenas mencionando “violações dos termos de serviço”.

Elas tomaram essas decisões após pressão pública, mas deixaram outros sites neonazistas proeminentes no ar. Como nota o The Verge, a GoDaddy ainda presta serviços para o Creativity Movement, alinhado à supremacia branca; e para os sites American Viking e Free American, listados pela Southern Poverty Law Center como grupos de ódio.

Dessa forma, a EFF recomenda os Princípios de Manila Sobre Responsabilidade dos Intermediários, em especial os seguintes pontos:

  • Antes de qualquer conteúdo ser restrito com base em uma ordem ou requisição, o intermediário e o provedor de conteúdo devem receber um direito efetivo de serem ouvidos, exceto em circunstâncias excepcionais, quando uma análise post facto da ordem e de sua implementação devam acontecer o mais rápido possível.
  • Os intermediários devem fornecer, para os provedores de conteúdo, mecanismos de análise para decisões de restringir conteúdo que violem políticas de restrição.
  • Os intermediários devem publicar suas políticas de restrição de conteúdo online, em termos claros e em formatos acessíveis, mantê-los atualizados à medida que evoluem, e notificar os usuários das mudanças quando aplicável.

A EFF lembra que proteger a liberdade de expressão não significa concordar com tudo o que é dito, e sim acreditar que ninguém — nem o governo, nem as empresas — deve decidir o que é dito. As consequências da marcha em Charlottesville mostram, no entanto, que nem sempre está clara a diferença entre liberdade de expressão e discurso de ódio, e que precisamos discutir isso para evitar abusos.

Com informações: EFF.

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Felipe Ventura

Felipe Ventura

Ex-editor

Felipe Ventura fez graduação em Economia pela FEA-USP, e trabalha com jornalismo desde 2009. No Tecnoblog, atuou entre 2017 e 2023 como editor de notícias, ajudando a cobrir os principais fatos de tecnologia. Sua paixão pela comunicação começou em um estágio na editora Axel Springer na Alemanha. Foi repórter e editor-assistente no Gizmodo Brasil.

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