Estamos cansados de maratonar, Netflix

O binge-watching ajudou a consolidar a Netflix como o maior nome do streaming do mundo, mas também gerou uma série de problemas

Josué de Oliveira
• Atualizado há 1 ano e 5 meses

A pirataria mudou totalmente o jeito de consumir séries. Com a possibilidade de baixar temporadas inteiras, desapareceu a necessidade de assistir um episódio por semana. Uma série que acabou de terminar lá fora poderia ser consumida de uma vez num único fim de semana. Estava inaugurada a era da maratona.

A Netflix conseguiu dar um jeito nisso. Não na maratona, na pirataria: agora, por um preço bem razoável, e sem ter o trabalho de procurar torrents e legendas, o usuário poderia maratonar o que quisesse. A sacada reorientou um mercado que antes estava preso à lógica da programação semanal. Veja o que quiser, na hora que quiser. Tudo está disponível agora, para a sua comodidade.

De modo geral, os demais serviços de streaming seguiram na mesma toada. Séries novas chegavam ao catálogo com suas temporadas completas. E o mesmo valia para as séries originais. Essas duas características – o apelo à comodidade e o acesso a temporadas fechadas – se tornaram os principais selling points do streaming. Parecia que o modelo perfeito havia sido encontrado.

…mas só parecia

Sandman chegou à Netflix no dia 5 de agosto de 2022 após muita expectativa. Foram anos e anos de espera por uma adaptação digna da obra do inglês Neil Gaiman, autor dos cultuados quadrinhos lançados pela DC Comics. Este mesmo Gaiman, inclusive, esteve diretamente envolvido com a criação da série. O Sandman da Netflix chegava, portanto, com sua benção.

E a adaptação foi bem entre a crítica e o público, como indica a página da série no Rotten Tomatoes. Além disso, foi por três semanas a série mais assistida na plataforma. Atualmente ocupa a terceira colocação, com cerca de 361 milhões de horas de visualização. Nada mal para um momento em que tantas séries disputam a atenção do público, certo?

Porém, enquanto este texto é escrito, a Netflix ainda não oficializou o segundo ano de Sandman. O que, obviamente, levanta a pergunta: como a empresa decide o que vai renovar e o que vai cancelar?

O próprio Neil Gaiman jogou um pouco de luz sobre essa questão, respondendo fãs no Twitter. O autor chamou atenção para um dos principais critérios da Netflix para saber se uma série merece uma nova temporada: a taxa de conclusão.

A taxa de conclusão é determinada pela quantidade de pessoas que começou e terminou a temporada de uma série. Uma vez que a temporada sai toda de uma vez, não basta que um grande número de pessoas comece a assistir para indicar que a produção é um sucesso; a Netflix olha para a performance da temporada como um todo. Séries com uma alta taxa de conclusão têm mais chances de renovação.

Ou seja: se você está assistindo Sandman sem pressa, quem sabe até indo devagar para curtir a série por mais tempo, saiba que a Netflix prefere que você corra um pouco mais. A segunda temporada pode depender disso.

Vinte e oito dias decisivos

OK, já entendemos que terminar de assistir à temporada é um critério importante para a Netflix. Mas em quanto tempo? Bem, de acordo com o que a própria empresa já passou a jornalistas, a métrica de tempo utilizada são os vinte e oito primeiros dias após o lançamento. Nessas quatro semanas, a empresa analisa se há, de fato, demanda por novas temporadas.

Pode parecer bastante, mas pense numa série liberada semanalmente. Digamos que ela tenha oito episódios. Serão, portanto, oito semanas. Dois meses. O expectador terá o dobro de tempo para completar a temporada. O modelo padrão da Netflix exige que as séries deem resultados muito mais rápido.

E os problemas disso são óbvios. Há séries que não foram feitas para um consumo tão rápido. Que exigem atenção, construção de mundo e personagens, que pedem ao expectador que aceite um ritmo mais lento. Na Netflix, conteúdos com este perfil podem estar ameaçados, já que o público precisa abraçar a série em vinte e oito dias.

Perceba que isso é uma consequência direta da liberação de temporadas completas. Quando episódios são lançados semanalmente – o modelo “superado” da TV –, uma série pode acontecer ao longo de um tempo maior. Talvez mais de uma temporada seja liberada até que ela encontre seu público. Já a Netflix opera numa lógica de urgência.

Em seus tweets, Neil Gaiman pareceu confiante de que Sandman está no caminho certo para renovação. Ainda assim, a situação indefinida da série manda uma mensagem para outros produtores. Se a sua série não foi feita para ser maratonada, talvez ela tenha problemas.

Séries perdidas em meio ao barulho

Além de ser questionável se quatro semanas são suficientes para definir o futuro de uma série, vale pensar sobre na quantidade de conteúdo disponível. Todos os dias novas séries e filmes pipocam em streamings diversos, que se transformaram numa verdadeira fábrica de FOMO. Em meio a tanto barulho, capturar a atenção do público não é tarefa fácil.

Nesse contexto, disponibilizar uma temporada inteira pode condenar aquele conteúdo à irrelevância. As produções vão se tornando mais fugazes, sem apelo diante de tantas outras opções. Além disso, se a temporada chega completa, a conversa em torno da série fica limitada. Não espaço para criação de expectativas. Aqueles oito ou dez episódios geram um burburinho que surge e some em poucas semanas.

Ganha força, portanto, a ideia de lançar episódios semanalmente. HBO Max, Apple TV+ e Disney Plus seguem esse modelo com suas séries originais. O Prime Video também lançou assim algumas de suas produções mais bem-sucedidas.

Pense em toda conversa, memes e teorias em torno de The Boys e Ruptura, e, mais recentemente, de Os Anéis de Poder e House of the Dragon. A vantagem do lançamento semanal é bem clara: uma boa série ganha um fôlego mais longo, e sua relevância cultural tende a se estender.

A própria Netflix já lançou temporadas em partes, como nos casos de Stranger Things e Ozark. E, entre as séries adquiridas para distribuição internacional, várias já são exibidas um episódio por semana. A empresa já tem experiência com esse modelo mais tradicional, portanto.

A questão é saber se o streaming outrora todo-poderoso está disposto a dar esse passo “atrás” e experimentar com o modelo da TV. Por um lado, esse movimento destoaria de toda sua história. Por outro, suas séries originais podem se beneficiar muito de um tempo maior para encontrar um público que as abrace.

Você também não quer saber de maratonar?

No Tecnocast 258, conversamos sobre a insistência da Netflix no binge-watching, e como ele vem sendo cada vez mais questionado quando o assunto é streaming.

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Josué de Oliveira

Josué de Oliveira

Produtor audiovisual

Josué de Oliveira é formado em Estudos de Mídia pela UFF. Seu interesse por podcasts vem desde a adolescência. Antes de se tornar produtor do Tecnocast, trabalhou no mercado editorial desenvolvendo livros digitais e criou o podcast Randômico, abordando temas tão variados quanto redes neurais, cartografia e plantio de batatas. Está sempre em busca de pautas que gerem conversas relevantes e divertidas.