Novo Egito: GAS Consultoria cria polo de pirâmides com bitcoin em Cabo Frio
Em meio a denúncias de pirâmides financeiras de bitcoin (BTC), com destaque para o esquema bilionário da GAS Consultoria, Cabo Frio (RJ) foi apelidado de "Novo Egito"
Em meio a denúncias de pirâmides financeiras de bitcoin (BTC), com destaque para o esquema bilionário da GAS Consultoria, Cabo Frio (RJ) foi apelidado de "Novo Egito"
O chefe de uma quadrilha acusada de operar um esquema bilionário de pirâmide de bitcoin (BTC) foi preso no final de agosto durante a operação Kryptos, trazendo a atenção da mídia nacional para Cabo Frio (RJ), agora apelidado de “Novo Egito” por se tornar um polo de golpes financeiros com moedas digitais. Prometendo uma rendabilidade surreal ao investir o dinheiro de seus clientes na criptomoeda, a GAS Consultoria Bitcoin, liderada pelo ex-garçom Glaidson Acácio dos Santos, foi desmascarada pela Polícia Federal como um esquema bilionário de pirâmide financeira.
E, aparentemente, esta não era a única operação em andamento.
Nesse tipo de crime, os golpistas prometem rendimentos a curto prazo muito acima do valor médio do mercado de investimentos para atrair rapidamente clientes. A prática de pirâmide financeira é proibida no Brasil e configura crime contra a economia popular.
Esses esquemas são considerados ilegais porque só são vantajosos enquanto atraem novos investidores. Assim que os aplicadores param de entrar, o esquema não tem como cobrir os retornos prometidos e então colapsa. Portanto, quem está no topo vai lucrar com base no prejuízo de muitos que estão na base da pirâmide.
No caso da GAS Consultoria Bitcoin, a suposta empresa de investimentos em criptomoedas teria movimentado R$ 38 bilhões desde que começou a operar, segundo as autoridades, ainda em 2016. Porém, a companhia afirma estar no mercado há 9 anos.
Durante mandados de busca e apreensão na mansão de Glaidson, foram encontrados e confiscados 591 bitcoins (equivalente a cerca de R$ 150 milhões), 21 carros de luxo, relógios de alto valor, joias e R$ 15 milhões em dinheiro vivo.
Conforme revelou o Ministério da Justiça, o chefe da quadrilha ainda investiu R$ 1,2 bilhão em criptomoedas que foram destinadas para contas próprias e para sua mulher e sócia Mirelis Zerpa, atualmente foragida. O dinheiro teria sido repassado também para outras quatro pessoas, incluindo Tunay Pereira Lima, apontado como outro líder da quadrilha.
Em entrevista ao Tecnoblog, o diretor do Departamento de Combate à Lavagem de Dinheiro e à Corrupção da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Flávio Porto, confirmou que há ao menos dez outras empresas sendo investigadas na região por crimes financeiros, como pirâmides e fraudes. Nem todas elas envolveriam criptomoedas, mas o bitcoin está presente em grande parte das denúncias.
O delegado acredita que o que ocorre hoje em Cabo Frio é uma “situação de oportunidade”. Afinal, por que justamente esse município se tornou conhecido por sediar esquemas de pirâmides financeiras de criptomoedas?
Segundo Porto, o histórico socioeconômico da Região dos Lagos cria um cenário propício para a aplicação de golpes financeiros. Dito isso, ele não acredita que o município apelidado de “Novo Egito” seja um caso complexo ou especial, mas um acaso cujo catalisador foi o grande sucesso da quadrilha de Glaidson.
“Acredito que tudo isso tenha acontecido lá (Cabo Frio) por uma questão de oportunidade mesmo, pelo Glaidson ser morador local e de lá ele conseguir captar essas pessoas com promessas de remuneração alta, mas, a meu ver, poderia ter sido em qualquer lugar. Ele soube explorar a oportunidades do local, que não é um município muito rico e tem suas limitações socioeconômicas… por isso os moradores viram uma grande chance de ganhos fáceis. É uma proposta muito sedutora.”
Flávio Porto, diretor do Departamento de Combate à Lavagem de Dinheiro e Corrupção da Polícia Civil do Rio de Janeiro
A partir daí, outros golpistas enxergaram uma fórmula de sucesso que se manteve por anos. Outras empresas começaram a surgir oferecendo investimentos em bitcoin e outras criptomoedas, prometendo lucros ainda mais surreais do que a GAS Consultoria Bitcoin prometia.
O Tecnoblog identificou ao menos três grupos suspeitos de pirâmide financeira com criptomoedas nas redes sociais. O principal deles, que nem sequer é uma empresa formal, é a chamada Trust Invest Bitcoin, também sediada em Cabo Frio. Em sua página do Facebook, a suposta corretora de ativos digitais promete lucros entre 15% e 20% mensais, com aplicações iniciais a partir de R$ 100. Até o momento, a Trust Invest Bitcoin não é publicamente alvo de nenhuma investigação.
Porto explica que dessas mais de 10 empresas, a maioria está ligada à GAS Consultoria Bitcoin de alguma forma. Alguns CNPJs, por exemplo, se dedicavam exclusivamente a prospectar clientes, enquanto outros possivelmente convertiam e aplicavam o dinheiro obtido. Ele não forneceu nenhum nome das outras companhias envolvidas porque as investigações ainda ocorrem em sigilo.
Segundo um levantamento da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a entidade recebeu um número alarmante de denúncias de esquemas e fraudes financeiras em todo o Brasil em 2020. Somente no ano passado, a autarquia contabilizou 325 comunicados de indícios de crimes financeiros nos Ministérios Públicos Federal e estaduais. Trata-se de um aumento de 75% em relação a 2019.
O tipo de crime denunciado mais comum é de pirâmides financeiras em geral. Do total de 325 denúncias, 175 apontavam para esse tipo de golpe. Além disso, as criptomoedas se tornaram dominantes nos também chamados esquemas Ponzi.
A CVM realizou uma pesquisa entre as vítimas de pirâmides financeiras e outros golpes similares. O levantamento constatou que 43% dos esquemas usaram especificamente o bitcoin para atrair potenciais investidores. Ainda segundo a Comissão de Valores Mobiliários, a divulgação desse tipo de esquema ocorre majoritariamente pelo WhatsApp, com 27,5% de dominância, ou boca a boca, com 19,7%.
Enquanto esses dados são referentes a todo o Brasil, eles pintam o cenário geral de crimes financeiros no país e explicam em parte como a GAS Consultoria Bitcoin fez Cabo Frio ser apelidado de “Novo Egito”.
A GAS Consultoria Bitcoin atuava desde pelo menos desde 2016, oferecendo lucros de ao menos 10% ao mês com promessas de investimentos em bitcoin. A oferta de rentabilidade estratosférica e discrepante em comparação com o restante das alternativas do mercado financeiro atraiu muitos investidores. Clientes da empresa de Glaidson conversaram com o Tecnoblog sobre como funcionava o esquema, sob a condição de anonimato.
Marcos (nome fictício), disse que confiou por anos na GAS Consultoria e que recebeu todos os retornos prometidos até a prisão de Glaidson, que ocorreu no dia 25 de agosto durante a primeira fase da operação Kryptos. “Cheguei até a vender um terreno que eu tinha para investir na GAS. E eu recebi meus rendimentos direitinho. Fiquei chocado com a prisão do Glaidson, mas eu acredito na inocência dele”, afirmou.
Contudo, Marcos foi sortudo, pois a pirâmide ainda não desabou. Outra pessoa que conversou com o Tecnoblog afirmou que investiu R$ 15 mil na GAS Consultoria. O empresário Caio (nome fictício) explicou um pouco melhor sobre a proposta que a empresa fazia para potenciais clientes.
O valor mínimo para investimentos era de R$ 10 mil, com um prazo mínimo de 30 dias para que o investidor tivesse direito a sacar o rendimento de 10% prometido. Era estabelecido um contrato com um tempo estipulado para a aplicação. No final do período, todo o valor seria devolvido.
Novamente, essa fonte também confirmou que recebeu todo seu dinheiro de volta e que Glaidson cumpriu com suas promessas de lucros mensais. Conforme explicou o delegado Flávio Porto, surgiram carreatas e manifestações em defesa de Glaidson. Essas pessoas, assim como as duas fontes ouvidas pelo Tecnoblog, acreditam na inocência do líder da GAS Consultoria.
Contudo, as investigações da Polícia Federal, em conjunto com o GAECO/MPF e a Receita Federal, revelaram que Glaidson e seus parceiros nem sequer investiam o dinheiro de seus clientes em bitcoin. Na realidade, a maior parte dos investimentos eram direcionados para contas pessoais.
Além disso, as autoridades viram óbvios indícios de pirâmide financeira na operação da GAS Consultoria. Em comunicado sobre o caso, a Receita Federal afirmou:
“Se para todos os clientes houver promessa de rendimentos fixos, há uma pirâmide financeira em operação, cujo lucro virá dos aportes dos novos clientes, e não da própria natureza lucrativa das operações… Isso implica a necessidade de se expandir o esquema, encontrando novos clientes para pagar a rentabilidade aos antigos. Caso contrário, o sistema colapsa”
Porto acrescenta que esses protestos em defesa do criminoso só ocorreram porque a pirâmide da quadrilha chefiada por Glaidson não chegou ao ponto de desabar. Portanto, as pessoas que se beneficiaram durante anos do esquema, sabendo ou não que se tratava de uma pirâmide, ainda confiam e acreditam no preso.
No dia seguinte à prisão, as carreatas e manifestações começaram em defesa do acusado. Em 26 de agosto, Cabo Frio ouviu dezenas de buzinas acompanhadas por faixas com a imagem de Glaidson pedindo por sua libertação. A ação foi organizada por apoiadores do ex-garçom.
O ato teve início com uma queima de fogos e os manifestantes chegaram a estender uma faixa que dizia “Gratidão a GAS”, que depois foi pendurada em um dos veículos da carreata.
Na última quinta-feira, 09 de setembro, a Polícia e a Receita Federal deflagaram a segunda fase da operação Kryptos, que resultou na prisão de Glaidson no final de agosto. Agora, as autoridades estão em busca de outros dois foragidos, João Marcus Pinheiro Dumas Viana e Michael de Souza Magno, ambos ligados ao esquema de pirâmide de bitcoin.
Durante a nomeada operação Kryptos 2, uma força-tarefa saiu para cumprir dois mandados de prisão preventiva e outros dois de busca e apreensão. Uma das equipes realizou a investigação em Cabo Frio, enquanto outra foi enviada para a Península, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Segundo os investigadores, os dois procurados seriam os operadores financeiros do chefe da quadrilha. Uma das equipes vasculhou um apartamento no Edifício Mandarim, um condomínio na Barra da Tijuca. Lá, a PF encontrou apenas documentos e até o momento nenhum dos dois investigados foi preso.
Além dos dois homens, também estão foragidos a mulher e sócia de Glaidson, Mirelis Zerpa, e seu braço direito, apontado como um dos líderes do esquema, Tunay Pereira Lima. Ao menos mais quatro pessoas ligadas à quadrilha estão sendo procuradas pela polícia.