A decadência da Saraiva: de maior livraria do Brasil à luta para não falir
Fortemente endividada, Saraiva fechou lojas, entrou em recuperação judicial e tentou, sem sucesso, vender operações
Fortemente endividada, Saraiva fechou lojas, entrou em recuperação judicial e tentou, sem sucesso, vender operações
Entrar no site da Saraiva causa a impressão de que tudo está bem. A página destaca os livros mais vendidos, há uma área de promoções e um banner chama a atenção para o clássico cartão de crédito da loja. Mas, por trás das cortinas, o clima é de preocupação. Se outrora a Saraiva figurava como a maior rede de livrarias do Brasil, hoje, luta para não falir. O que aconteceu?
A Saraiva é uma empresa centenária. A primeira loja da rede foi inaugurada em 1914, no Largo do Ouvidor, São Paulo (SP). Na época, o pequeno negócio montado pelo português Joaquim Ignácio da Fonseca Saraiva se chamava Livraria Acadêmica, um nome deveras conveniente: o estabelecimento ficava próximo à Faculdade de Direito de São Paulo.
Favorecida pela localização estratégica, a livraria passou a ser muito frequentada por estudantes e professores da instituição. Isso levou Fonseca Saraiva a entrar no ramo de edição de livros, começando por obras da área jurídica, por motivos óbvios.
Os negócios prosperaram nas décadas seguintes, a ponto de, em 1947, já sob direção dos filhos do fundador, a empresa se transformar em sociedade anônima, quando então assumiu a denominação Saraiva S.A. – Livreiros Editores.
Mas foi nos anos 1970, depois que a Saraiva passou a ser uma companhia aberta, que a estratégia de expansão ganhou escala. A livraria começou a formar uma rede de lojas em São Paulo e, na década seguinte, abriu unidades em outros estados.
O final da década de 1990 também foi marcante para a Saraiva. Em 1998, a companhia adquiriu a Editora Atual e, com isso, ampliou a sua atuação no segmento de livros didáticos.
No mesmo ano, a Saraiva transformou o seu site — www.saraiva.com.br — em uma das primeiras lojas online do Brasil.
Nos anos 2000, a expansão continuou, principalmente por meio de aquisições. Era 2007 quando a Saraiva comprou a Pigmento Editorial, editora também focada em livros didáticos. No ano seguinte, a companhia fechou o que talvez tenha sido o seu maior negócio: a aquisição da rival Siciliano, incluindo lojas físicas e site.
Se 2008 não foi o ano mais importante da Saraiva, chegou perto de ser. Em uma apresentação direcionada a investidores, a companhia revelou que, em junho daquele ano, a sua rede era composta por 38 lojas físicas, 21 das quais eram megastores. Já a rede da Siciliano concentrava 50 unidades próprias e 11 franquias (todas foram transformadas em unidades da Saraiva).
No mesmo documento, a Saraiva celebrava a marca de quase 1,6 milhão de clientes ativos registrada em junho de 2008, além de 2 milhões de associados ao cartão Saraiva Plus.
O momento é de ascensão. Por que parar? A Saraiva continuou expandindo os seus negócios nos anos seguintes. Em 2010, a companhia lançou o Saraiva Digital Reader, plataforma de livros digitais; em 2012, surgiu o SaraivaTec, divisão focada em cursos técnicos e graduação tecnológica; em 2014 — ano do seu centenário — a Saraiva lançou o leitor de e-books Lev (lembra dele?).
Uma empresa como essa, em franco crescimento e que diversifica os seus negócios para ficar por dentro das tendências do mercado, não tinha como dar errado, certo? Mas deu.
O último ano “tranquilo” da Saraiva foi 2012, quando a companhia registrou lucro líquido de R$ 78 milhões. Em 2013, o lucro líquido ficou em apenas R$ 13 milhões, mas ainda parecia que tudo estava bem, afinal, o grupo havia inaugurado lojas, investido em um novo centro logístico e comprado a Editora Érica naquele ano.
Mas, se de um lado a Saraiva aumentava o número de lojas, ampliava a sua infraestrutura e apostava em novos produtos (como o Lev), do outro, se endividava de modo preocupante, embora a situação não parecesse estar saindo do controle.
Mas estava. Para você ter ideia, a empresa terminou o ano de 2014 com lucro líquido de R$ 5,7 milhões, mas uma dívida líquida ajustada de R$ 544 milhões.
Talvez já tentando evitar uma tragédia, a Saraiva tomou uma decisão ousada: em meados de 2015, anunciou a venda de seus ativos editoriais e educacionais por R$ 725 milhões para a Somos Educação (Abril Educação).
Com o negócio, a Saraiva passou a focar toda a sua operação no varejo. Na primeira olhada, fazia sentido, afinal, a sua rede era formada por 112 unidades físicas e a sua loja online despontava como uma grande plataforma brasileira de comércio eletrônico.
À época, já não dava para chamar a Saraiva apenas de livraria. Livros ainda estavam no centro das atenções, mas a companhia comercializava celulares, videogames, notebooks, jogos, entre outros produtos.
Era uma megaoperação, no fim das contas. Dificilmente uma pessoa que parava na frente de uma loja ou entrava no site da Saraiva imaginaria que dívidas se acumulavam nos bastidores.
Bom, quem acompanhava os relatórios financeiros da Saraiva talvez soubesse que a situação não era das mais confortáveis. Mas, àquela altura, a Saraiva era tão grande que parecia imune ao risco de quebrar.
É normal um grande varejista fechar uma ou outra loja de vez em quando. Mas 20 lojas de uma vez? Foi o que aconteceu com a Saraiva em 29 de outubro de 2018. A companhia argumentou que a decisão tinha relação com os “desafios econômicos e operacionais do mercado”.
Na verdade, aquele foi o prenúncio de algo muito mais grave: em 23 de novembro do mesmo ano, a Saraiva pediu recuperação judicial na 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.
O motivo? A Saraiva declarou ter dívidas que somavam R$ 675 milhões. A companhia já vinha atrasando pagamentos a fornecedores, tanto que, semanas antes do pedido de recuperação, propôs um plano de negociação de dívidas ao Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), sem sucesso.
A Saraiva dificilmente conseguiria mais financiamentos. A companhia utilizou empréstimos bancários para expandir as suas operações nos anos anteriores e já não estava honrando esses compromissos. Não por acaso, a lista de credores apresentada pela empresa na ocasião era encabeçada por Banco do Brasil (R$ 90,7 milhões) e BNDES (R$ 41,7 milhões).
Mas bancos podem lidar com isso. Para editoras, o cenário era muito mais preocupante. A crise da Saraiva prejudicou muitas delas, sobretudo as que eram muito dependentes de grandes varejistas (como Saraiva e Livraria Cultura).
A mencionada concorrente pediu recuperação judicial na mesma época. Juntas, Saraiva e Livraria Cultura escancararam uma crise sem precedentes no setor de livrarias no Brasil, que já havia passado por um susto grande com a Laselva: a rede pediu recuperação judicial em 2013 e teve falência decretada em março de 2018.
Mas isso não quer dizer que o setor de livrarias morreu no Brasil. Com mais de 80 lojas espalhadas por 21 estados, a Livraria Leitura cresce de maneira consistente e aproveita parte das lacunas deixadas por Saraiva e Livraria Cultura no mercado. Levemos em conta também que muitas livrarias de porte menor continuam de pé.
Se a crise no setor não é generalizada, tudo sugere que falhas de gestão estão na raiz da decadência das duas gigantes.
No caso da Saraiva, parece ter havido uma preocupação com crescimento rápido. Se, em vez disso, a companhia tivesse focado em crescimento consistente — que inclui análises mais criteriosas dos pontos de vendas ou dos tipos de loja, por exemplo —, talvez não teria trilhado um caminho tão sombrio.
Recuperação judicial é um mecanismo de proteção contra falência. Para ter um pedido do tipo aprovado, a empresa deve apresentar um plano para se reerguer e pagar as dívidas.
Devido a vários percalços, principalmente impasses manifestados por credores, o plano de recuperação judicial da Saraiva só foi aprovado em agosto de 2019 e homologado no mês seguinte.
Basicamente, a companhia propôs pagar 5% da sua dívida — então atualizada para R$ 684 milhões — em 15 anos e transformar os 95% restantes em debêntures (títulos de dívidas) a serem emitidos em 2035.
Com um plano de recuperação como esse, parecia que o pior havia passado. Mas não havia. Enquanto a aprovação do plano era aguardada, a empresa teve que fechar lojas e lidar com ações de despejo, só para citar algumas complicações.
Tudo isso por uma única razão: a Saraiva continuava fortemente endividada, tanto que, em fevereiro de 2020, declarou a credores ter apenas R$ 15 milhões em caixa. Para piorar a situação, pelo menos 21 editoras foram à Justiça de São Paulo exigir a devolução de estoques de livros.
Como a situação não melhorou nos meses seguintes, a Saraiva pediu um aditamento (ajuste) ao plano de recuperação judicial. Aprovado em fevereiro de 2021 pelos credores e homologado no mês seguinte, o aditamento estabeleceu um plano de venda de lojas e do e-commerce.
Aí veio mais um revés: ninguém quis comprar os ativos da Saraiva.
Foram três tentativas de venda. A primeira, realizada em abril de 2021, tinha como meta a arrecadação de R$ 189 milhões com a venda de 23 unidades físicas ou R$ 150 milhões com a venda da loja online, havendo ainda a possibilidade de combinação das duas operações. Nenhum interessado apareceu.
Na segunda tentativa, em maio do mesmo ano, houve revisão das metas de arrecadação: R$ 113,5 milhões para as lojas físicas ou R$ 90 milhões pelas operações de comércio eletrônico. De novo, nenhum interessado.
A terceira e última tentativa ocorreu em agosto, novamente com as metas de R$ 113,5 milhões para as lojas físicas ou R$ 90 milhões pelo e-commerce. Você já sabe o que aconteceu.
Diante da falta de interessados, a Saraiva ofereceu aos credores as suas próprias ações para quitar os débitos ou a opção de um pagamento escalonado que começaria em 2026 e terminaria em 2048.
Curiosamente, a empresa também apresentou um laudo de viabilidade econômico-financeira assinado pela JVS Assessoria Empresarial que prevê aumento de 80% na receita em 2022 e 83 lojas em operação até 2026 — na ocasião, a rede da livraria era composta por 37 unidades. O documento foi apresentado junto a um novo ajuste no plano de recuperação.
Mas não é tão simples. A verdade é que a Saraiva nunca esteve tão perto de fechar as portas. A Infosys, maior credora depois dos bancos, questionou na Justiça o plano de recuperação apresentado em março de 2021, só para mencionar uma das várias complicações existentes.
Em 7 de março de 2022, um fio de esperança se formou após a companhia conseguir aprovar um aditivo que deu mais fôlego ao seu processo de recuperação judicial. A previsão original era a de que a assembleia com credores para a aprovação (ou reprovação) desse ajuste fosse realizada em novembro de 2021, mas o evento foi adiado várias vezes.
Um dos motivos para tantos adiamentos foi um movimento que resultou na saída do Banco do Brasil do quadro de credores da Saraiva. Por questões de compliance (normas de integridade corporativa), a instituição não poderia votar a favor da aprovação do aditivo.
O crédito do banco, de cerca de R$ 120 milhões, foi transferido para o fundo de investimento Travessia, que pôde dar voto favorável. Se o Banco do Brasil tivesse continuado e votado contra, o aditivo não seria aprovado e, muito provavelmente, esse cenário causaria a falência da Saraiva.
Apesar desse alívio, a situação da livraria ainda é delicada.
O Tecnoblog tentou contato com a Saraiva na época em que este texto foi publicado pela primeira vez, mas não teve retorno.
Última atualização em 8 de março de 2022.