Uber usou lobby e práticas ilícitas para entrar em cidades, aponta vazamento
Uber Files revelam que executivos tentaram explorar narrativa de violência contra motoristas e se consideravam "ilegais pra caramba"
Uber Files revelam que executivos tentaram explorar narrativa de violência contra motoristas e se consideravam "ilegais pra caramba"
Você deve se lembrar de como foi a chegada da Uber ao Brasil: confrontos com autoridades e muita revolta de taxistas. Este roteiro foi mais ou menos o mesmo em todo o mundo, e uma nova série de documentos dá uma ideia de como esse processo se deu dentro da empresa. Apelidados de “Uber Files”, os 124 mil arquivos se referem ao período de 2013 a 2017. Eles foram revelados em uma série de reportagens publicada neste domingo (10).
Os documentos incluem e-mails e conversas de WhatsApp e iMessage entre executivos da imprensa, além de memorandos e anotações. Eles foram entregues ao jornal britânico The Guardian, que os compartilhou com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês).
Um dos aspectos revelados pelo vazamento é que os maiores executivos da Uber tinham plena ciência de que seu negócio não estava de acordo com as leis.
Em uma mensagem enviada a um colega em 2014, Nairi Hourdaijan, chefe de comunicações globais da empresa, disse isso com todas as letras: “Às vezes nós temos problemas porque, bem, nós somos ilegais pra caramba.”
Hourdaijan não era o único. Em uma conversa sobre o termo “além da legalidade”, que a companhia vinha usando em suas comunicações, outro executivo afirma, em um e-mail: “Nós nos tornamos oficialmente piratas.”
Os executivos tanto estavam cientes dessa situação que os sistemas da empresa contavam com um “botão de desligar”, a ser acionado caso autoridades fechassem o cerco contra a companhia. Ele que restringiria imediatamente o acesso a dados sensíveis, como a lista de motoristas.
O botão teria sido acionado no mínimo 12 vezes na Europa e na Ásia.
A Uber não arrumava confrontos apenas com a lei. Os taxistas, que até então eram os únicos prestadores desse tipo de serviço, também se revoltavam e protestavam. E Travis Kalanick, co-fundador da empresa e CEO até 2017, não via problema nisso — pelo contrário. Segundo os documentos, ele gostava.
Executivos da companhia alertaram para não mandar motoristas a um protesto na França, porque havia risco de violência por parte dos motoristas de táxi. Kalanick discordou. “Eu acho que vale a pena. A violência garante sucesso.” Kalanick nega ter sugerido isso.
Um ex-executivo sênior disse ao Guardian que a empresa buscava “instrumentalizar” os motoristas e explorar a violência para “manter a polêmica rendendo”.
Em Amsterdã (Holanda), homens mascarados atacaram motoristas da Uber. A empresa encorajou os motoristas a procurarem a polícia e, depois, compartilhou os boletins de ocorrência com o principal jornal da cidade.
Um gerente disse que a Uber deveria “manter a narrativa de violência rolando por alguns dias, antes de oferecer a solução”.
Além da ilegalidade e da violência, os Uber Files jogam luz na relação da empresa com autoridades. A maior delas talvez seja Emmanuel Macron, atual presidente da França. Quando era ministro da Economia do país, em 2014, ele teve papel crucial na legalização do serviço.
Macron e Kalanick teriam se encontrado ao menos quatro vezes. O então ministro trabalhou com a empresa para reescrever a legislação que controlava os serviços. A Uber foi a responsável por dar o “esqueleto regulatório” para o compartilhamento de viagens.
Em junho de 2015, quando taxistas fizeram protestos violentos, Macron prometeu que iria preparar a reforma e corrigir a lei. Ainda naquele ano, ele assinou um decreto relaxando as exigências para motoristas da Uber serem autorizados a trabalhar.
Macron não foi o único. Os arquivos também revelam que Neelie Kroes, ex-comissária da União Europeia, chegou a conversar sobre um possível cargo na Uber antes de deixar seu cargo, além de fazer lobby para a companhia.
Em uma nota publicada em seu site, a Uber diz que “não foram poucos os erros antes de 2017” e que “não tem e não vai dar desculpas por comportamentos passados, que claramente não estão alinhados com seus valores atuais”.
A companhia diz ter passado por um enorme escrutínio público e processos, investigações e desligamento de executivos.
Segundo o texto, a chegada do novo CEO, Dara Khosrowshahi, representou uma mudança nos valores. A empresa destaca que 90% dos funcionários atuais foram contratados pela nova chefia.
Com informações: The Verge, TechCrunch, The Guardian.